O capitalismo atual é de vigilância

A vigilância está no centro da estrutura organizacional do capitalismo contemporâneo.

Esteban Magnani 21 jul 2020, 16:03

Desvelar os mecanismos que explicam a etapa atual do capitalismo parece ser a obsessão de numerosos pensadores contemporâneos. Assim nascem Capitalismo de plataformas de Nick Srnicek, Realismo capitalismo de Mark Fisher, Capitalismo gore de Sayak Valencia ou o mais explícito ainda Isto não é capitalismo. É algo pior? de McKenzie Wark, para mencionar algumas das mais evidentes tentativas de cortar a essência de uma problemática que transborda qualquer recipiente teórico conhecido. As manifestações de uma crise terminal do sistema tal como o conhecemos se multiplicam. Mas as categorias fazem agora na hora de explicar organicamente fenômenos econômicos, políticos, sociais, psicológicos e ambientais, numa sorte de teoria social do todo.

Entre estas tentativas, todavia, o recente livro, ainda não traduzido para o espanhol ou português, The Age of Surveillance Capitalism [A era do Capitalismo de Vigilância], da professora emérita de Harvard Shoshana Zuboff, se destaca por descrever acabadamente o desenvolvimento histórico e os processos estruturais graças aos quais empresas tecnológicas com poucos anos de existência lideram os rankings das bolsas de valores e marcam o rumo de um novo mecanismo de acumulação. Se em tempos coloniais, o prioritário era a espoliação e o saque de dinheiro, algodão, cacau ou açúcar das periferias geográficas, hoje em dia se extraem dados obtidos às escondidas, sem necessidade de chicotes, de regiões fora do alcance de nossa consciência. Zuboff é psicóloga e doutora em Filosofia, pelo que, diferentemente de outros olhares mais economicistas ou políticos (que a ela tampouco lhe faltam), coloca a ênfase na exploração sistemática das subjetividades.

Na Antiguidade, os que buscavam água sob a superfície e encontravam petróleo se sentiam ludibriados por sua má sorte. Ainda não existia o motor de combustão que desse sentido ao “ouro negro”, como ocorreu no século XX. No século XXI, os fundadores do Google viram que as buscas dos usuários deixavam uma rastro digital que se acumulava. Quando começaram a processar isso, compreenderam sua utilidade para conhecer e segmentar a população, prever comportamentos futuros e, objetivo superior do capitalismo de vigilância, produzi-los. Desde então, como afirma Zuboff no livro, “o capitalismo de vigilância recupera unilateralmente a experiência humana como matéria prima gratuita para traduzi-la em dados de comportamento”. É difícil compreender o poder dos dados em grandes quantidades (o big data) com as categorias conhecidas. O mais parecido na experiência são as pesquisas, rudimentares, bisavós do big data que somente podiam, no melhor dos casos, conhecer mostras daquilo que a gente dizia e pensava. Os dispositivos atuais captam os rastros digitais que deixamos praticamente todos, em tempo real e a cada instante de nossas vidas.

Pokemon Go

Quando se descobrir o poder fluorescente do rádio, um elemento químico radioativo, ele foi utilizado para todo tipo de curiosidades. Uma delas foi tornar visível a hora na escuridão pintando os relógios. No começo do século XX, as operárias passavam língua para afinar o pincel antes de marcar com rádio o quadrante. Não estavam ainda as condições para que suspeitassem o que poucos anos depois se fez evidente: estavam introduzindo em seu sistema um elemento radioativo que as levaria a uma morte dolorosa. De maneira similar, mas mais sutil, poucos dos caçadores de “pokemons” que percorreram o mundo com seu foco no celular para completar um álbum eram conscientes de ser eles as presas cujas peles estavam a venda.

Se a utopia do capitalismo de vigilância é produzir comportamentos nas massas, o futuro já chegou: Pokemon Go é somente uma mostra desta potência amável que nos seduz enquanto escamoteia seus segredos. Reconhecer o desejo e como ele é construído permite convencer milhões de pessoas a seguir um monstro de fantasia até um McDonald’s ou Starbucks, empresas que pagarão uma comissão por cada produto vendido. Mas os algoritmos de inteligência artificial nem sempre atuam de maneira tão evidente. Em geral, aprendem por tentativa e erro, buscando correlações entre milhões de variáveis, e assim encontram o melhor de vender um produto ou um candidato, ou ainda viralizar uma notícia falsa. As poucas vezes que são pegas nas cenas do crime, estas corporações primeiro negam tudo e, caso a indignação seja evidente, reconhecem algum excesso antes de prometer o regresso ao caminho correto. O que nunca farão é renunciar a busca de formas superadoras de acumulação do insumo básico de seu negócio. Quando surge algum caso como os do vazamento de Edward Snowden ou o escândalo da Cambridge Analytica, as corporações tecnológicas podem maquiar os mecanismos de captação de dados ou escondê-los em novas ferramentas que nos deslumbram. Mas a maquinaria não será detida um segundo sequer, como não o faria um camponês com a foice no alto enquanto restem cultivor por colher.

É difícil dimensionar o poder de manipular de corporações que funcionam com uma Câmara  Gesell[1]. Desde o outro lado da tela observam, acumulam dados e mediam com nosso mundo virtual selecionando a que poderemos acessar e como, recortando o mundo acessível de acordo com seu modelo de negócios para ver como respondemos e seguir aprendendo. Do outro lado do espelho se acumula o que Zuboff chama o “texto em sombras”, o que nos resulta inacessível mas permite esboçar os mecanismos de tomadas de decisões desconhecidos por nós. É inevitável nos compararmos com os demais? Dessa maneira poderão mostrar mais publicidade e monetizá-la, sem importar se esses outros num mundo supostamente perfeito nos deprimem. É certo que os estudantes depois do estresse dos exames estão mais dispostos a gastar dinheiro em se permitir um prazer? Esse estresse será vendido por uma comissão a quem saiba transformá-lo em vendas.

Homens-dados

Nos agrada acreditar que sabemos quem somos, pessoas com convicções ou, inclusive, com uma alma, mas o poder destas novas tecnologias põe em dúvida a possibilidade da liberdade em nossas ações. A autora mostra como os objetivos destas empresas se explicam dentro das teorias de Burrhus Skinner, criador do behaviorismo radical. Segundo esta visão do ser humano, a ideia de liberdade individual é produto da ignorância daqueles elementos que realmente condicionam nossas decisões. Skinner punha à prova suas teorias em experimentos com poucas variáveis em jogo: um labirinto, ratos e algumas alavancas. Não podia analisar da mesma forma as decisões humanas, mas isso não significava, segundo ele, que existissem diferenças qualitativas. Desde esta perspectiva, a ideia de liberdade somente serve para ocultar a incapacidade de registrar e processar as variáveis envolvidas no comportamento, algo agora possível. Quanto mais dados, menor a incógnita e, portanto, a ilusão de liberdade. O tipo de serviços que desenvolvem as corporações lhes permitiram localizar-se como intermediárias de todo tipo de atividade humana. Isto é, desde o consumo de produtos ou conteúdos até a amizade, a educação, o trabalho e inclusive a medicina. Tudo para captar os dados e seguir reduzindo a ignorância sobre como produzir condutas humanas em série.

Mas o importante, esclarece Zuboff, não são as “frágeis” teorias sobre a essência do ser humano, mas a potência de algumas práticas capazes de gerar muito dinheiro para reinvestir em novas  tecnologias, num círculo virtuosos que avança rumo à essência humana (se é que existe algo assim): “Da mesma maneira em que o capitalismo estava motivado a uma contínua intensificação dos meios de produção, o capitalismo de vigilância e seus operadores de mercados estão atados a uma contínua intensificação dos meios de modificação de comportamento e de acumulação de poder instrumental”, afirma. Este poder, justamente, busca em manada a uma sociedade que graças à “pressão de pares e a certeza computacional, substitui a política e a democracia, extingue a realidade sentida e a função social de uma existência individual”.

O celular (uma máquina que pensamos estar a nosso serviço) é uma permanente alimentadora do texto que permitirá ler e escrever nossas condutas. Mas não é suficiente. Por isso, a pretexto de nosso bem-estar, criam-se automóveis que se dirigem por si só, assistentes virtuais como Cortana, Alexa ou Siri, aspiradoras inteligentes. Em definitivo, a “internet das coisas”, com seus inumeráveis dispositivos conectados, desde cafeteiras até cortinas ou vibradores e tantos dispositivos mais que, se tivéssemos tempo para compreender realmente o que implicam suas condições de uso, deveríamos abandonar rapidamente. Mas não fazemos isso, porque a tecnologia promete poupar tempo, resolver a incerteza, garantir resultados que em outro momento haveriam dependido de variáveis menos fiáveis, como os vínculos humanos. Também porque nossos breves protestos se veem rapidamente tapados por um ruido a medida de cada ouvido.

Zuboff esclarece: a tecnologia digital poderia prosperar sem o capitalismo de vigilância, mas não poderia acontecer o inverso. Ela nega a inevitabilidade tecnológica tal como ela é apresentada: esse mundo no qual a única opção viável é dizer “sim”; não responder “não” ou perguntar “como”. Sobretudo, porque os jugos como que se nos controla foram desenhados especificamente para nossos pescoços e todas as suas costuras adaptadas para que não as notemos. Contrariamente à metáfora mais difundida, não vivemos em 1984, dirigidos por un «Grande Irmão» ameaçador, mas na novela de Aldous Huxley Admirável Mundo Novo, no qual, em lugar de ser desenhados geneticamente para a felicidade, somos estimulados para que nossos desejos se encaixem nas necessidades desse mundo.

Artigo originalmente publicado em Nueva Sociedade. Tradução de Charles Rosa para a Revista Movimento.

[1]N.d.T: Câmara Gesell é uma sala condicionada para permitir a observação com pessoas. Está conformada por dois ambientes separados por um vidro unilateral, os quais contam com equipes de áudio e de vídeo para a gravação dos diferentes experimentos. O psicólogo e pediatra estadunidense Arnold Gesell (1880-1961) foi o seu inventor, com o objetivo de observar o comportamento de crianças sem que estas fossem perturbadas por elementos exógenos.


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