O Brasil no “modo platô”

Para seguir sua guerra social contra o povo, Bolsonaro reorganiza o desenho de sua política.

Israel Dutra e Thiago Aguiar 19 ago 2020, 21:48

Nas últimas semanas, tem sido utilizada, no debate público sobre a evolução da Covid-19 no Brasil, a noção de “platô” para descrever a macabra situação de “estabilidade” em cerca de mil mortes diárias pela doença. Sua utilização, agora comum também entre especialistas sanitários, remete a uma formação geográfica plana e elevada. Uma estabilidade num patamar alto, no caso da Covid-19, de mortes e casos.

As cidades brasileiras assistem a uma estranha situação, em que não há volta à normalidade por um lado, mas, por outro, governos e patrões atuam para liberar ao máximo a circulação da população, mesmo sem vacina disponível ou sequer um plano coerente de contenção do contágio da pandemia. A naturalização de um alto número diário de mortes – após já terem perecido 110 mil pessoas no país pela doença – encontra no governo um cúmplice. Bolsonaro, responsável maior pela gestão genocida da pandemia no Brasil, busca estabelecer sua própria estabilidade dentro do que quer como “novo normal”.

Para seguir sua guerra social contra o povo, Bolsonaro reorganizou o desenho de sua política, sem perder de vista sua vocação golpista, atuando para recompor aliados no Congresso e sua base social, cujo efeito foi medido na mais recente pesquisa Datafolha. Na Congresso, o governo decidiu aproximar-se do “centrão”, entregando a esta cooperativa de partidos fisiológicos cargos em ministérios e estatais, além de parte das funções de liderança no Congresso. Na liderança da Câmara, foi colocado Ricardo Barros (PP), ex-líder parlamentar nos governos FHC e Lula, além de ministro de Michel Temer, cujo nome é presença recorrente em investigações de corrupção. Ao mesmo tempo, Bolsonaro decidiu amenizar as bravatas e ataques, reunindo-se com Maia e Alcolumbre para reafirmar compromisso com o ajuste fiscal e com o “teto” de gastos.

Há uma mudança na conjuntura, com a qual se fecha o período de crise mais aguda enfrentada pelo governo nos primeiros meses da pandemia, com a queda na popularidade do governo, o crescimento do “Fora, Bolsonaro” e a derrota, pela luta antifascista e antirracista nas ruas, dos ataques da extrema-direita. No entanto, enganam-se aqueles que acreditam que Bolsonaro seja uma fera domada. O escandaloso episódio do último domingo – quando Sara Winter e deputados estaduais bolsonaristas incitaram fanáticos religiosos a investir contra uma criança de apenas dez anos, vítima de estupro por seu tio durante quatro anos e enfrentando uma gravidez de alto risco – aponta a necessidade de seguir o enfrentamento ao bolsonarismo, com seus métodos fascistas e mórbidos.

O “platô” do governo Bolsonaro

Bolsonaro celebra a estabilização e o ligeiro aumento de sua popularidade, que alcançou índices inéditos de apoio a um governo desde o início marcado pela alta rejeição. A última pesquisa Datafolha indicou uma melhora considerável em sua aprovação: houve importante recuo de 10% entre os que avaliam o governo como “ruim ou péssimo”, sendo ligeiramente superados, agora, pelos 37% que o consideram “ótimo ou bom”. O crescimento da aprovação concentra-se na faixa dos mais pobres, nos setores do grande e médio comércio e nos estados onde até então o governo tinha pior avaliação: no Norte e no Nordeste do país.

Tal recomposição é uma inflexão na conjuntura, marcada por três elementos: a capitalização do auxílio emergencial pelo governo, a busca por uma visão mais “contida” de Bolsonaro, em chave com acenos para o “centrão” e a operação político-midiática de naturalização das mortes.

A pandemia levou ao derretimento da economia formal e ao crescimento do desemprego em patamares históricos. A saída de um setor da burguesia – além da importante pressão da sociedade – foi criar a renda básica emergencial para evitar um cenário caótico e convulsivo no país. Tendo a princípio combatido a medida e proposto um valor de apenas R$ 200,00 mensais por três meses, seguindo as orientações de Paulo Guedes, após a derrota de sua posição no Congresso, Bolsonaro não tardou a buscar capitalizar o auxílio, vendo nele uma oportunidade de ampliar sua base social em setores que desde o início o rejeitaram.

Ao mesmo tempo, diante das dificuldades crescentes de seu governo – com precária base parlamentar para enfrentar eventual processo de impeachment, cercado por investigações policiais e processos judiciais –, Bolsonaro buscou uma recomposição com o “centrão” e passou a adorar postura mais branda, após ter preparado, segundo a revista Piauí, uma ofensiva real, em maio, contra o STF. Suas ações mais ostensivas debilitaram-se quando Queiroz foi preso, deixando seu plano de golpista imediato mais isolado e frágil.

O avanço das mortes e do contágio, por sua vez, tem sido naturalizado ao longo das últimas semanas, com a pressão vitoriosa do lobby empresarial, apoiado por governadores e prefeitos, pela reabertura irresponsável da economia.

A crise na “orientação econômica”: rumo a um choque de trens?

O debate político tem-se deslocado para o ajuste e para os ataques ao povo em várias frentes: enquanto ministros como André Mendonça e Damares Alves atacam direitos democráticos – no primeiro caso, com escândalos de espionagem e, no segundo, com o estímulo à organização das hordas extremistas fanáticas do bolsonarismo –, governos, Congresso e patrões unem-se na defesa de ataques aos diretos trabalhistas, ao funcionalismo e aos serviços públicos, exigindo também a aceleração das privatizações do patrimônio público. Há, dessa forma, uma dinâmica contraditória, com Bolsonaro assentando-se em bases frágeis e mirando a reeleição em 2022. Há uma questão aberta: dadas a gravidade da crise econômica e a escala do ajuste e dos ataques em elaboração, até onde irá esta recuperação conjuntural da aprovação do governo?

Além disso, há uma guerra aberta sobre o destino do “teto” de gastos imposto ao país em 2016. Um setor do governo, liderado pelo “centrão” convertido ao bolsonarismo e apoiado pelos militares palacianos, sob comando de Rogério Marinho e de Braga Netto, busca ampliar gastos públicos – para atender as frações empresariais que pedem certa flexibilidade do “teto” diante da crise em curso – e transferências, por meio de um novo programa social que substitua o Bolsa Família em busca da reeleição de Bolsonaro.

Paulo Guedes, por sua vez, apoia-se no capital financeiro, nos bancos e nos “mercados” para reafirmar a linha do ajuste estrutural. Após a “debandada”, em suas palavras, de membros da sua equipe, Guedes chegou a ameaçar Bolsonaro com a perspectiva de impeachment caso pise fora da linha do ajuste. Em comum, todos esses atores articulam, em conjunto com a oposição de direita liberal, o aprofundamento das “reformas” para destruir os direitos do povo e o saque do patrimônio público como forma de criar novos “negócios” lucrativos e mitigar os efeitos da crise.

As conspirações palacianas da camarilha governante e a pauta rebaixada da imprensa burguesa, no entanto, não podem esconder o desastre à vista, com uma situação internacional de crise aguda, índices de desemprego e falências inauditos no país, aumento do endividamento público, entre outras mazelas, entre as quais o próprio governo Bolsonaro e sua destruição nacional.

A esquerda precisa ganhar força social

Para além da leitura da conjuntura, a esquerda e o PSOL devem defender os direitos do povo, resistir aos ataques e preparar-se para as lutas que virão. As últimas semanas, em plena pandemia, mostraram uma série de lutas – fragmentadas, mas necessárias – em curso: vitórias, como dos metroviários de São Paulo e dos metalúrgicos da Renault no Paraná; lutas que não se desenvolveram, como dos aeroviários da Latam; e ataques ferozes, como as reintegrações de posse em Diadema e a grotesca ação policial de Zema no Quilombo de Campo do Meio em Minas Gerais. A atual greve dos Correios iniciou-se com muita força e é exemplar porque fere o coração do ajuste, a privatização de uma das maiores empresas públicas do país – a ECT.

Há muitos outros enfrentamentos importantes, como a luta do movimento de mulheres contra os ataques mórbidos do bolsonarismo e do fundamentalismo religioso; a defesa de uma renda mínima permanente diante do desemprego e da informalidade crescentes; além da defesa da vida e do enfrentamento à pandemia, como agora faz o movimento de professores nas greves pela educação e contra o retorno do ano letivo sem as devidas condições sanitárias.

É preciso derrotar Bolsonaro nas ruas e nas urnas! Nossa alternativa estará apresentada pelo PSOL em centenas de cidades brasileiras, numa luta para ampliar nossa representação nas Câmaras e prefeituras, derrotando as alternativas da extrema-direita e construindo um programa a serviço dos interesses das trabalhadoras e trabalhadores, do povo pobre e da maioria social.


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Pedro Micussi