Papel da esquerda partidária na Baixada Fluminense

Vamos falar de um lugar que desde sempre foi criado como território de exclusão social, política e humana.

Augusto Perillo 20 ago 2020, 17:44

Vamos falar da Baixada Fluminense.

Vamos falar de um lugar que desde sempre foi criado como território de exclusão social, política e humana. Exclusão que remonta aos tempos em que deixou de ser entreposto de escoamento de bens da capital do Império, de um sertão de um país que se construía.

A Baixada existe a partir dessa história: de entreposto comercial, de local de passagem, de desaguadouro da classe trabalhadora graças às reformas urbanas do Rio de Janeiro de Pereira Passos, das notícias da violência armada nos jornais em meados do século passado, das perseguições aos terreiros de macumba, dos grupos de extermínio, de Tenório Cavalcanti e de sua “Lurdinha”.

Uma história de violência que permeia tudo o que temos por aqui. Que se mantém e se reorganiza com as milícias, o tráfico e a falta de tudo o que o Estado não oferece. 

E é importante destacar que nada disso nos destrói. Na verdade, é o que nos constrói.

E é esse o objetivo deste texto: apresentar nosso trabalho na Baixada Fluminense e apontar caminhos de construção.

A direita inviabilizou a democracia na periferia e a esquerda hegemônica constroi projetos pessoais e de poder que pouco modificam a realidade concreta nesses espaços. Esse texto é uma reflexão e uma proposta de como a esquerda revolucionária deve agir para superar entraves institucionais e burocráticos. 

A Baixada Fluminense é responsável por cerca de 20% do PIB do Estado do Rio de Janeiro. Com aproximadamente 4 milhões de pessoas divididas em 13 municípios, o cenário urbano se mistura com o rural, os altos prédios de concreto com as fazendas que outrora davam café e laranja. Mas uma característica perpassa todos esses municípios: a precariedade de direitos.

É possível caracterizar esse histórico de desigualdade, para compreendermos o processo que nos trouxe aos problemas centrais dos dias de hoje, a partir de múltiplos recortes: do regime escravocrata brasileiro (historiadores como Nielson Bezerra, do Museu Vivo do São Bento e da da UERJ, fazem isso), da história de violência (o sociólogo José Cláudio S. Alvez, da UFRRJ, é essencial neste tema²), da concepção de mobilidade urbana, da migração das regiões rurais para as urbanas sem projeto de inclusão e etc.

Mas esse texto, entretanto, tem como objetivo, já que entraremos em processo eleitoral a nível municipal, trazer uma reflexão que aponte caminhos para saídas socialistas de problemas que constroem a realidade – e o imaginário – sobre o local que agrega tantas potências e acúmulos que sobrevivem de forma criativa com a ausência de políticas públicas e direitos fundamentais para a prosperidade da vida humana. O esforço, portanto, é construir uma política da Baixada para ela própria a partir de seus militantes e realinhar o foco de análise: a periferia precisa ser seu próprio centro. 

Ao analisar o Mapa da Desigualdade³, de 2020, da Casa Fluminense, será possível encontrar que “A renda média dos moradores de Niterói é R$ 3.114. 4,5 vezes maior que a dos moradores de Japeri, R$ 694”, “[…] Os niteroienses vivem, em média, 12 anos a mais que os moradores de Queimados”, “Não havia leitos hospitalares em Japeri em dezembro de 2019” e outros mapas que colocam questões pertinentes para os socialistas, entre elas: qual o nosso papel?

Não é irrelevante o fato da região concentrar os menores IDH-Ms da Região Metropolitana do Rio de Janeiro, com Belford Roxo (0,684) e Queimados (0,680)  nos últimos lugares, ocupando respectivamente as 71ª e 74ª posições.4  

É importante não desconsiderar nessa análise que o neoliberalismo coloca os trabalhadores em profunda concorrência entre si ao mesmo tempo que retira subsídios públicos de serviços essenciais. O enfraquecimento da solidariedade de classe, em territórios marcados pela exclusão, é potencialmente mais danosa em uma sociedade periférica, onde a exclusão das políticas públicas é regra. Se, de um lado, podemos acompanhar a retirada de garantias trabalhistas historicamente conquistadas por mobilizações populares, de outro a ideologização capitalista se esforça para o conceito de “classe” ser apagado da linguagem comum dos trabalhadores.

O Brasil foi o país que mais “migrou” no século XX. Em 1950, apenas 36,63% da população brasileira vivia no meio urbano, na idade. Dez anos depois, era meio a meio, e entre as décadas de 1990 e o ano de 2010, o percentual de pessoas vivendo nos meios urbanos alcançou quase 90%. A urbanização acelerada na baixada tem seus próprios desdobramentos, que são distintos das grandes capitais. A ausência de mecanismos de proteção social, de organização e meios de expressão pública, fez com que toda essa migração encontrasse outras formas de sobreviver e resistir. Além de uma mudança na totalidade da vida, formas de trabalho, moradia e família, de relações sociais em geral, e da religiosidade em particular (que passa da hegemonia da igreja católica e seu trabalho rural e popular, para a hegemonia das igrejas evangélicas, da ideologia da prosperidade), compõe um quadro onde a acumulação por espoliação e a superexploração do trabalho aparecem como constituintes de sua formação.

O mundo sem trabalhadores, mas sim, de acordo com empresários, de colaboradores, é uma fantasia pregada 24 horas pela mídia hegemônica e, também, nas igrejas de teoria da prosperidade que se alastram em toda a periferia como uma loja de um futuro melhor, já que a cobiça predatória do Capital expõe rotineiramente o ecossistema e a existência humana a iminência de seu fim.

O governo Bolsonaro, ao agravar suas reformas a favor do Capital faz dos trabalhadores que estão nas margens, na periferia, os maiores golpeados porque, em suas vidas, se somarão as deficiências históricas do seu território com o acirramento da precariedade da condição como classe trabalhadora. Também amplia nessas regiões, e aqui, especificamente, na Baixada Fluminense, o exército de reserva tão fundamental para o controle de salários. E, como é muito bem explicado pelo professor Ricardo Antunes 5, pelo fato que essas regiões já precarizadas permitem ou uma maior exploração de seus trabalhadores (aumentando a mais valia e maximizando o lucro) ou uma expulsão desses trabalhadores do mundo produtivo.

 Se o epicentro do mal-estar sintomático está nas periferias, as saídas precisam estar à altura desse projeto neoliberal. Como apontou Marx, na “Crítica ao Programa de Gotha”6, não são possíveis saídas para os problemas criados pelo Capital dentro da lógica dele próprio. É necessário e urgente parar as engrenagens que reproduzem o capitalismo!

A Baixada Fluminense incorpora em seu histórico lutas fundamentais que apontam esses caminhos. A esquerda socialista organizada precisa urgentemente reconhecer os processos próprios que a periferia produziu para a construção de um projeto que caiba nas demandas de seus trabalhadores, pois é preciso dizer em bom tom que a história, o projeto, a tática e estratégia de luta anti capital é diferente nas periferias.

Exemplificando rapidamente uma especificidade, a pauta da segurança pública recorta absolutamente todas as outras pautas na Baixada. Por que? Porque pelo histórico de invisibilidade que os problemas dessa região somado a política clientelista, é comum o loteamento de hospitais, praças públicas, escolas, repartições municipais e de todos os bens e serviços públicos. 

Ao construirmos um projeto de cidade com uma proposta de democratização de qualquer espaço, é muito provável que a gente esbarre nos interesses privados de algum troglodita político que reconhece apenas a linguagem da bala como resolução de conflitos políticos. Esse enfrentamento é estrutural e permeia a história da Baixada desde, pelo menos, início do século passado, como bem destaca José Claudio Alves.

Neste sentido, a urgência de espaços democráticos amplos para contrapor o autoritarismo junto com formulações atenciosas que não só construam possibilidades do exercício cidadão do território, mas que modifiquem a lógica da periferia a serviço do centro é uma tarefa para militantes socialistas como nós. As experiências militantes do Emancipa em Nova Iguaçu, em Duque de Caxias, e principalmente em Belford Roxo, expressam nossa vontade de construir esse tipo de espaços democráticos e populares, onde através dos Tempos de construção do pré-vestibular, conseguimos participar de diversas manifestações em defesa da Educação Pública, contra os cortes do governo federal em 2019, contra os ataques do prefeito de Belford Roxo ao campus do IFRJ desta cidade, assim como organizar manifestações no centro de Belford Roxo e intervenções nos trens para dialogar com os setores mais prejudicados da população. Além disso, também a participação do coletivo Juntos nas lutas do movimento estudantil, colocando o acúmulo das ocupações de escola como a grande referência de auto organização popular, e colaborando com as organizações de grêmios.

A necessária construção de uma alternativa para os trabalhadores na Baixada Fluminense passa por construir um partido político que parta das demandas mais concretas e imediatas como emprego, segurança, transporte, equipamentos culturais etc. E que também consiga apontar um caminho diferente dos que já foram tomados até agora pelos diversos governos capitalistas: este é o caminho do socialismo democrático, enraizado nas mais diversas experiências de auto-organização popular. 

É a partir destas tarefas que nós, militantes do PSOL e do MES, chamamos a todos os lutadores e lutadoras a se organizar porque precisamos construir pontes entre nossas lutas. Parafraseando Mano Brown7,

“Senhor de engenho,
Eu sei,
Bem quem você é,
Sozinho, cê num guenta,
Sozinho,
Cê num guenta a pé.”

Referências:

1 BEZERRA, Nielson Rosa. A Cor da Baixada: Escravidão, Liberdade e Pós-Abolição no Recôncavo da Guanabara. Duque de Caxias, RJ: APPH-Clio, 2012

2 ALVES, José Cláudio Souza. Dos Barões ao Extermínio. Uma história da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias, APPH-CLIO, 2003.

3https://www.casafluminense.org.br/wp-content/uploads/2020/07/mapa-da-desigualdade-2020-final_compressed.pdf

4 Disponível em: https://www.wikirio.com.br/IDH_das_cidades_do_Estado_do_Rio_de_Janeiro

5ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 10. ed. São Paulo: Boitempo, 2009. 2. reimpr. rev. e atual.

6 MARX, K. Crítica ao Programa de Gotha, 1875. Portal Domínio Público. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000035.pdf

7 Racionais MC’s. Negro Drama. Nada como um dia após o outro. São Paulo, Cosa Nostra Fonográfica, 2002.


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