Reflexões de um ecossocialista em tempos sombrios
Um depoimento a partir da relação de moradores do município mineiro de Ibirité com o meio ambiente
Os moradores mais antigos daqui do bairro devem recordar das várias vezes em que avistaram meu avô subindo o morro da rua Marajó com o carrinho cheio de lenha. Nosso fogão a lenha era frequentemente usado e coisas como cozinhar o feijão ou o franguinho frito dos finais de semana eram feitas graças aos pedaços de troncos e galhas podres que ficavam pelo chão das matas, sendo recolhidos por nós.
Talvez seja em razão dessas andanças pelas matas que desenvolvi profundo respeito e afeto por cada área verde que se conserva em pé no município de Ibirité. Conheci os antigos muros – construídos por escravos, segundo meu avô – e as diversas trilhas abertas há muito tempo por outras famílias que preservavam o costume de visitar as matas para recolher lenha, o que também ajudava na economia do gás de cozinha. Meu avô me mostrava uma gama de plantas. Muitas delas serviam para tratar doenças, outras causariam alergia se nelas encostasse.
A mata era um universo e meu avô conhecia quase todos os passarinhos, comentava sobre o rastro de animais que ele encontrava pelo chão. Sabia até distinguir qual buraco de tatu estava sendo usado e qual havia sido abandonado, conhecimento muito útil nas caçadas de que participou quando novo, em uma época na qual se achava que o rio, a mata e os bichos nunca teriam fim.
Lembro que em um trabalho escolar precisei comprar argila, vez que estávamos estudando os fósseis e faríamos uma experiência que usaria aquele famoso ossinho da “aposta” da galinha e argila. Ninguém sabe, mas a argila que levei saiu do brejinho que tinha aqui perto de casa. Levei essa argila morrendo de vergonha para a escola, com medo que os professores a rejeitassem. Ocorre que a quantidade levada foi suficiente não só para mim como para outros amigos. Com o tempo, o brejinho e as nascentes foram soterrados. Estão agora debaixo das construções de um novo bairro.
Assim como perdemos esse lugar do qual meu avô retirava argila, estamos perdendo as áreas verdes da cidade. Esse movimento é agressivo para mim, que sinto perder, ao mesmo tempo, uma parte da minha história. Imagino sentir um pouco do que se passava com Chico Mendes quando este tentava explicar para os poderosos que o “desenvolvimento” deles – que desmatava a floresta e matava os animais – não traria benefícios, mas, pelo contrário, colocaria em risco a existência dos povos da floresta. Refletindo agora, vejo que as áreas verdes da cidade começaram a ser destruídas, de fato, quando perdemos os nossos vínculos com elas. Algo se quebrou quando passamos a temer a mata e os seres que nela habitam. O triste resultado desse processo é que não nos vemos como parte, olhamos para a natureza a fim de dominá-la.
Hoje meu coração sangrou mais uma vez ao ver a proposta da prefeitura municipal que partirá no meio mais uma dessas áreas verdes. A justificativa para tanto é que a obra trará desenvolvimento e emprego. Trata-se, segundo o Município, de uma aposta do setor privado na cidade. Hipócritas! Tal projeto, na verdade, descaracterizará a área e facilitará o loteamento da região.
Cabe destacar que Ibirité já enfrenta graves problemas sociais e mais loteamentos trará para a região uma população que será, assim como nós, vítima da falta de saúde pública de qualidade, pleno emprego, educação, lazer. Eles negociam o nosso bem-estar em troca do lucro dos donos de terrenos e pelo apoio financeiro e eleitoral.
Nesses momentos, o meu estômago embrulha, dá vontade de desaparecer. Tento não esquecer do conselho que Sara Azevedo me deu uma vez: política não se faz com o estômago e sim com a cabeça. Portanto, preciso de algum modo racionalizar isso tudo. Retomo as leituras ecossocialistas, leio de novo algum texto, procuro renovar meu compromisso com o socialismo, tento acalmar a mente e o coração. Mas confesso que não é fácil continuar lutando em tempos tão sombrios!