A vigência de Salvador Allende 50 anos após o triunfo da Unidade Popular

Sobre a atualidade do pensamento socialista do líder chileno

Paula Vidal Molina 3 set 2020, 20:34

Nossa via será também da igualdade.

Igualdade para superar progressivamente a divisão entre chilenos que exploram e chilenos que são explorados.

Igualdade para que cada um participe da riqueza comum de acordo com o seu trabalho e de modo suficiente para suas necessidades.

Igualdade para reduzir as enormes diferenças de remuneração para as mesmas atividades laborais.

A igualdade é imprescindível para reconhecer a todo homem a dignidade e o respeito que deve exigir. (Salvador Allende, 1970)

Há mais de oito meses do 18 de Outubro de 2019, em que o povo chileno se cansou do neoliberalismo extremo e disse querer transformar a sociedade colocando no centro a justiça e a igualdade social “até que se torne habitual”, hoje se somam as consequências da crise sanitária, económica, social e política na qual nos encontramos como país (mas também em escala global), crise que pagam diretamente milhares de trabalhadores e trabalhadoras precarizados, desempregados e empobrecidos, junto a famílias populares cada vez mais endividada e obrigadas a expor sua vida para conseguir o sustento diário dos seus. Isso nos traz de volta à pergunta sobre o tipo de sociedade que queremos construir, quais os fundamentos ou princípios e sobre quais estratégias e táticas políticas devemos avançar. O triunfo da Unidade Popular expressa o caminho escolhido pelo povo chileno há 50 anos, tendo Salvador Allende como líder, para avançar na justiça e na igualdade social, por isso, revisitar algumas das ideias sobre igualdade concebidas por Salvador Allende pode nos dar luzes acerca da vigência destas fontes de inspiração para impulsionar transformações no Chile.

Esboço de um lutador social e uma noção da igualdade

Salvador Allende nasceu em 1908 e morreu em 1973, em circunstâncias conhecidas por todos. Sua vida foi retratada muitas vezes como um gesto heroico, apesar de que nunca pareceu ter o caráter de um herói dramático, como disse Tomás Moulian. Assim, o próprio Allende, em seu último discurso no Palácio de La Moneda, em 11 de setembro de 1973, sela sua vida não como a de um “apóstolo, messias ou mártir, mas sim de um lutador social”. Desde os anos 30 ele participa da política chilena, e como militante socialista na eleição presidencial de 1958 é candidato pela Frente de Ação Popular (FRAP), obtendo a segunda maioria. Depois disso, é eleito senador em 1961, é novamente candidato presidencial pela FRAP em 1964 e em 1969 com a Unidade Popular. Entre 1967 e 1970 executa o cargo de presidente do Senado e assume também a presidência da Organização Latino-americana de Solidariedade (OLAS).

Entre suas ideias – explícitas desde o ano de 1939 no Discurso na Câmara dos Deputados, em 7 de junho e o Informe ao IV Congresso do PS em 1943- está a necessidade da undiade social de partidos, sindicatos e movimentos cívicos em função de servir aos “intereses do povo”. Da mesma forma, está levantada a recuperação por parte do Estado das fontes de matérias primas, como eixo sobre o qual se sustenta o que Allende define como a “independência econômica”. Neste horizonte, se atribui um papel estratégio central ao controle do Estado sobre as indústrias fundamentais, meio necessário para o “desenvolvimento industrial e a libertação econômica” dos povos do Chile e da América Latina. A democracia política burguesa também não fica excluida de seu olhar crítico a partir dos anos 40, reconhecendo precocemente que esta não é suficiente para defender as liberdades individuais e sociais, que exigem efetivamente uma “democracia econômica e social”. Neste sentido, para Allende, a democracia plena não é realizável sob o capitalismo.

Depois do triunfo da Unidade Popular, em 1970, seus discursos adquirem uma imensa significação porque vão em uma linha de defesa e aprofundamento das mudanças sociais reais que a UP implementa – como um novo e único caminho neste momento no mundo – na construção do socialismo. O socialismo chileno, diz Allende, é marxista e humanista, em suas palavras: “O socialismo está impregnado de um profundo sentido huamnista”, onde o materialismo dialético é seu fundamento filosófico. Também é a sociedade onde se expressa a máxima liberdade e o respeito do indivíduo, através da eliminação das classes sociais, a socialização dos meios e instrumentos de produção e o direito à propriedade privada respeitando os “bens de uso e de consumo”. No econômico, a produção planificada caracteriza uma sociedade socialista, capaz de fabricar bens de uso que devem ser distribuidos de acordo com a quantidade de trabalho realizado por cada homem. Allende conhece a máxima marxista para a distribuição da Crítica do Programa de Gotha, o princípio de contribuição adequado para a primeira fase da soceidade comunista. A respeito da igualdade social também explicita que não serve de nada o reconhecimento dessa se “o homem nasce e vive” em uma sociedade que o obriga a sofrer as limitações derivadas de sua origem socioeconomica e cultural. Eles se opõe a compreender a igualdade na sociedade socialista como homogeneização das pessoas, e ratifica isso ao assinalar um lugar, na sociedade socialista, para a meritocracia. Então, a igualdade contempla a meritocracia que, diferentemente do sentido que assume em uma sociedade de classes, é possível onde existe a socialização dos meios de produção e se erradicuou a exploração do homem e as desigualdades atribuidas segundo a estrutura social a qual pertence, isso permite associa-la ao desenvolvimento das capacidades e esforços de cada um, em harmonia com uma comunidade maior. Assim, a igualdae social no socialismo significa que todos contam com as mesmas possibilidades para desenvolver-se alcançando diversas escalas segundo as capacidades, esforços e a iniciativa de cada sujeito. Um ponto central é que a igualdade social não é se despojar da individualidade de cada um; ao contrário, é considera-la em sua plenitude e integralidade. Allende reitera e complexifica o uso da noção de igualdade ao calor do próprio processo histórico. Desde o começo adverte, ao tomar posse do governo em 1970, sobre a brutal desigualdade que sofre o povo chileno, a  ganância, violência, sofrimento, desemprego, privações frustrações e dependência, herdadas da larga história social e política do país, que ofereceu a população uma existência idade e que o governo popular se compromete a transformar:

Herdamos uma sociedade dilacerada pelas desigualdades sociais. Uma sociedade dividia em classes antagônicas de exploradores e explorados.

Uma sociedade em que a violência está incorporada às próprias instituições, e que condena os homens â ganância insaciável, às mais inumanas formas de crueldade e independência ante o sofrimento alheio.

Nossa herança é uma sociedade sacrificada pelo desemprego, flagelo que lança a uma desocupação forçosa e à marginalidade de massas crescentes de cidadãos; massas que não são um fenômeno de superpopulação, como dizem alguns, mas as multidões que testemunham, com seu trágico destino, a incapacidade do regime para assegurar a todos o direito elementar do trabalho.

Nossa herança é uma economia ferida pela inflação, que mês após mês recorta o mísero salário dos trabalhadores e reduz a quase nada – quando chegam os últimos anos de sua vida – o ingresso de uma existência de privações.

Por conta desta ferida sangra o povo trabalhador do Chile; custará cicatriza-la, mas estamos seguros que conseguiremos, porque a política econômica do governo será ditada a partir de agora pelos interesses populares.

Nossa herança é uma sociedade dependente, cujas fontes fundamentais de riquezas foram alienadas pelos aliados internos das grandes empresas internacionais. Dependência econômica, tecnológica, cultural e política

Nossa herança é uma sociedade frustrada em suas aspirações mais fundas de desenvolvimento autônomo. Uma sociedade dividida, na qual se nega à maioria das famílias os direitos fundamentais para o trabalho, a educação, a saúde, o lazer, e até mesmo a esperança de um futuro melhor. (Salvador Allende, 1970)

Para Allende, a “via chilena para o socialismo”, ou “o socialismo com empanadas e vinho tinto”, é a expressão da vontade “do povo transformado em governo” de satisfazer suas necessidade “materiais e espirituais”, é o caminho escolhido para lutar pela “igualdade e justiça”, o que permitirá assegurar por igual a todos “direitos, seguridades, liberdades e esperanças”, sem ter que recorrer à exploração do homem pelo homem.  

Allende apela à moralidade, a novas condutas que devem ser assumidas pelo povo para a transformação social e a construção do socialismo. Não é tarefa de alguns poucos, nem dos partidos marxistas exclusivamente: é tarefa de todo o povo. Explicitamente, designa um lugar à moralidade no interior do marxismo e da construção socialista – já que não é suficiente – como disse Adolfo Sánchez Vásquez (2006) – ter consciência da necessidade de realizar certos valores e fins, como também o dever de contribuir para realizarmos.

Para Allende, a tarefa essencial do novo governo, portanto, é a construção de um Estado justo, um Estado capaz de ter um progresso continuado no “econômico, no técnico e no cientifico” cujos objetivos alcancem toda a população, e que ademais seja capaz de gerar as condições para o desenvolvimento dos intelectuais e artistas do país. Esta situação, nunca alcançada nem aproximadamente na história anterior do país, começaria a ser construída com a força do povo e a mão do novo governo, agora nas mãos da UP. O progresso, nesse contexto, significava abarcar a totalidade da população, permitindo este desenvolvimento no econômico, cultural e no técnico-cientifico. Mesmo assim, a primeira mensagem que realiza no Congresso Pleno, em maio de 1971, diz respeito às características particulares do processo chileno, qualificando-o como um modelo novo para construir uma sociedade socialista, baseada em uma via pluralista. As tarefas que empreende neste modelo são de diversas ordens, mas não se podem resumir em romper com os fatores causadores do atraso social e edificar uma nova estrutura socioeconômica, capaz de prover o bem-estar coletivo. Em suas palavras, a condução deste processo passa pela “fidelidade ao humanismo de todas as épocas, particularmente o humanismo marxista”. Allende considera que atender as necessidades populares é a forma de solucionar também os grandes problemas humanos, já que nenhum valor universal merece esse nome se não é redutível ao nacional, ao regional e às condições locais de existência das famílias. Esta relação entre valores e tradução no âmbito concreto da vida social se distancia da visão abstrata do valor, incapaz de tocar a vida cotidiana das pessoas.

Ao assumir o governo da UP, ele insiste que as liberdades políticas se fazem reais e tangíveis na medida em que se alcança a liberdade e a igualdade econômica. Em função disso, podemos ler no discurso de comemoração do Dia do Trabalhador, em 1971, a confiança que o governo da UP começou a estabelecer na relação entre as liberdades políticas alcançadas com as liberdades sociais. Nesse caminho, Allende é um defensor da ideia de resgatar o melhor do sistema burguês, para supera-lo e assim ampliar as conquistas logradas pela luta do povo, tanto no âmbito do político como do econômico. Em suma, Allende não concebe a realização da democracia plena no interior do capitalismo nem sob o domínio burguês, porque este sistema permite que uma minoria se aproprie das fontes e recursos econômicos, gerando uma desigualdade social que afeta a grande maioria da população. Uma sociedade socialista – ao ter novas bases para o desenvolvimento econômico – permite que o afã do lucro, o individualismo, a concorrência e a exploração sejam erradicadas e substituídos por outras formas de sociabilidade humana, onde a igualdade e o progresso para todos são fundamentais,

 “estamos criando as bases econômicas de uma sociedade mais justa, mais igualitária e mais capaz de um progresso que seja generalizável para toda a população. Mais justa porque não se funda no privatismo, movido pelo afã do lucro, baseado na concorrência econômica e na exploração do trabalho alheio, mas sim nos principais opostos, de solidariedade, responsabilidade social e defesa dos supremos interesses nacionais e populares. Uma estrutura econômica caracterizada pela propriedade privada dos meios de produção fundamentais, concentrados em um grupo reduzido, é a própria negação da democracia. Um regime social é autenticamente democrático na medida que proporciona a todos os cidadãos possibilidades equivalentes, o que é incompatível com a apropriação por uma pequena minoria dos recursos econômicos essenciais do país. Avançar pelo caminho da democracia exige superar o sistema capitalista, consubstancial à desigualdade econômica (Salvador Allende, 1972).  

Em definitivo, muitos dos elementos que sustenta a crítica ao sistema capitalista colocados por Allende hoje se mantêm e se amplificam, como também sua visão – entre muitas outras – acerca da democracia econômica e social, da igualdade, da liberdade e o mérito é substantiva para um projeto emancipatório no Chile contemporâneo, ainda tendo em conta os limites acerca da noção de progresso que é reivindicado, porque hoje sabemos dos limites do planeta na atualidade. Há 50 anos do triunfo da Unidade Popular, revisitar o pensamento de Salvador Allende hoje se faz mais necessário do que nunca depois de observar o manto de barbárie social que apresenta e acrescenta a sociedade neoliberal.

Este artigo é uma contribuição para a Revista Movimento e não reflete, necessariamente, nossas posições. Contribua você também com nosso site enviando seu artigo para redacao@movimentorevista.com.br. Tradução de Pedro Micussi.

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