As eleições nos EUA: a democracia burguesa entre a digitalização e a geopolítica
Não e a tecnologia por si que constitui a ameaça à democracia burguesa, mas o projeto e o intuito dos grandes capitais.
As tecnologias da informação e comunicação (TIC) ganharam destaque nas últimas eleições dos EUA com a atuação da Cambridge Analytica concorrendo para a vitória do atual presidente Donald Trump. Durante as eleições e ao longo da gestão Trump, afirmaram-se na esfera da política governamental processos já muito comuns na atuação das grandes empresas de tecnologia para a venda de mercadorias: a alavancagem da coleta massiva de dados e seu tratamento por algoritmos para definir segmentos populacionais mais suscetíveis a retóricas específicas, produzindo conteúdos e discursos ajustáveis e personalizáveis. Propagandas e ataques políticos baseados em “fake news”, impulsionados por grandes investimentos em aparatos tecnológicos de propagação de informações, incluindo robôs (mas não apenas), disseminaram-se pela vida política e social em grandes proporções no mundo, particularmente no Brasil. Atualmente, há uma crescente percepção e preocupação de que as TIC seriam uma ameaça e/ou minariam as democracias. Ao mesmo tempo, o crescente protagonismo da China na economia e no cenário internacionais, reforçado no contexto da pandemia, vem sendo mobilizado pelos EUA como uma grande ameaça autoritária às democracias ocidentais, recolocando as TIC no centro do debate e das crescentes tensões EUA-China, na medida em que elas são postuladas como canais de vigilância, influência e ingerência, inclusive militar, de um governo autoritário sobre sociedades democráticas.
Nesse contexto, as eleições nos EUA oferecem-nos a oportunidade de fazer uma reflexão sobre até que ponto essas são verdadeiras dicotomias e de como esses processos tendem a se desdobrar a despeito das eleições, colocando injunções ao próximo governo dos EUA. Mesmo no mar de incertezas e angústias gerado pela pandemia do SARS-Cov2 e sua expansão descontrolada nos EUA, uma coisa é certa: os EUA seguirão sendo uma ameaça à democracia no mundo, particularmente nas periferias, como a América Latina ou o Oriente Médio. Seja via intervenções militares e guerras, seja pela desestabilização de regimes políticos nacionais – com a associação e financiamento de setores das classes dominantes locais alinhados e subordinados ao projeto estadunidense – , o revezamento entre democratas e republicanos no governo produziu alterações na retórica e no peso maior ou menor que se conferiu às diferentes modalidades de ingerência, mas não modificações substantivas na atuação estadunidense neste campo. As possíveis alternativas a essa atuação historicamente tendem a ser filtradas antes das eleições nas convenções partidárias, como a campanha de Bernie Sanders construída a partir das lutas da juventude endividada e de um movimento multiétnico de trabalhadores, e na inviabilidade eleitoral fora do bipartidarismo, o que produz uma versão um tanto peculiar e restrita da democracia burguesa.
Há, entretanto, um elemento de transformação estrutural que vem ocorrendo e se consolidando nas últimas décadas que, em si, reduz em escopo e efetividade o espaço para qualquer noção, mesmo que a mais restrita, de democracia burguesa: a chamada “nova economia digital”, que emerge e se desenvolve pelo vínculo entre o setor militar dos EUA e os grandes capitais estadunidenses, vínculo esse mimetizado pela China. A digitalização não é um processo novo, mas ganhou uma tal maturidade – pela vasta difusão da infraestrutura que a sustenta e dos dispositivos eletrônicos pessoais, particularmente dos telefones celulares – que agora constitui a base para a nova onda associada à renovação da infraestrutura de telecomunicações e à automação fundamentada nos recentes avanços em inteligência artificial. Essa nova onda resulta de ambições e projetos que são nada menos que a mediação digital de tudo: da agricultura à manufatura, da infraestrutura urbana e arquitetônica aos serviços públicos e da esfera pública à domiciliar.
A mediação digital de tudo é simultaneamente a busca por novas esferas de acumulação pelas Big Tech dos EUA, em um empreendimento levado a cabo em estreita associação com o Estado americano. Já discuti aqui anteriormente[1] as TIC enquanto tecnologias de uso civil-militar, e sua alavancagem pelos grandes capitais para tecer seus aparatos digitais de vigilância e colocarem-se enquanto parceiros essenciais no atual processo de upgrade tecnológico e espraiamento dos aparatos estatais de vigilância e controle social em suas dimensões domésticas e imperiais. Não são as TIC por si que constituem a ameaça à democracia burguesa ou reduzem qualquer significado que essa possa ter, mas o projeto e o intuito dos grandes capitais e do Estado americano na conformação do desenvolvimento tecnológico, uma busca que engendra a maior repressão e controle sobre os trabalhadores dentro e fora do processo de trabalho, aumentando a taxa de exploração e o instrumental repressivo para conter as massas precarizadas. É ainda uma busca pelo aumento de seu potencial bélico e pelo domínio sobre a rede mundial de comunicações, englobando cidadãos estrangeiros, governos, organizações internacionais, empresas e entidades científicas de países rivais e aliados. Esse projeto perpassa as distintas administrações dos EUA no século XXI.
As transformações elencadas tendem a aprofundar-se e colocam-se como eixos da concorrência intercapitalista e interimperialista entre EUA e China, possivelmente aumentando as tensões. Antes da pandemia, já estava em curso um processo de exportação de pacotes tecnológicos e concorrência em terceiros mercados das grandes empresas americanas e chinesas, em grande medida conduzido e viabilizado por seus Estados. Em janeiro de 2020, às vésperas da chegada da pandemia aos EUA, a Comissão de Revisão Econômica e de Segurança EUA-China do Congresso Americano debruçava-se sobre um relatório a respeito do desenvolvimento da China em smart cities, para instruir medidas de fechamento do mercado americano e sua concorrência em terceiros mercados. Sob a alcunha de smart cities, esses grandes pacotes tecnológicos e de infraestrutura de alta tecnologia, que incluem sensores, câmeras de vigilância, telecomunicações, sistemas de software, chips e inteligência artificial tornaram-se um importante vetor de expansão das Big Tech e das startups unicórnios, bem como da indústria de segurança, na qual a automação e digitalização estão a pleno vapor. As ramificações e consequências desse processo no aprofundamento da dependência dos países receptores desses pacotes, altamente integrados às infraestruturas críticas governamentais e civis, quando não militares, são ainda incalculáveis. Mas, frente às tensões postas pela ofensiva do capital sobre o trabalho nas últimas décadas, esses pacotes aparecem como soluções de tecnologia estatal repressiva para que os governos lidem com as tensões e conflitos de classe que se acumulam e tendem a se expandir.
Tal é o cenário que encontra a crise corrente na acumulação de capital, de dimensões avassaladoras, no contexto de uma crise sanitária que é produto dos desequilíbrios ecológicos engendrados pelo capitalismo. Há de se recordar que, em momentos de crise na acumulação de capital, a concorrência entre os grandes capitais apoiados em seus estados nacionais tende a se acirrar, já que os espaços de valorização ainda possíveis são bruscamente reduzidos. É aqui que a esfera digital e toda a infraestrutura que a sustenta e a automatiza tende a ter seu protagonismo reforçado e a acumular ainda mais tensões. A pandemia abriu o caminho para o crescimento explosivo das atividades online, da migração e digitalização de diversos serviços e da produção de conteúdo digital, acelerando o desenvolvimento da automação algorítmica e do enquadramento do trabalho intelectual ao capital e concorrendo para a repentina abertura de diversos e vastos mercados nacionais, incluindo as meninas dos olhos, os serviços públicos de saúde e educação. Por meio das compras governamentais de pacotes das Big Tech, esses serviços desfiguram-se em telessaúde e teleducação, sendo privatizados por dentro, precarizados e barateados, enquanto isolam e vigiam os usuários dos serviços e os profissionais da saúde e da educação. É uma situação “ganha-ganha” para os Estados e os capitais bem posicionados na “economia digital”. Para as Big Tech, a pandemia é verdadeiramente “a dream come true”, ainda que os filhos de empresários do Silicon Valley frequentem escolas sem ou com pouco uso de dispositivos eletrônicos. Com um sopro de ar virulento, o capital consegue avançar sobre o resultado das lutas que as classes trabalhadoras tiveram que empreender para a construção e defesa de Estados de bem-estar social onde esses existiram, mesmo que já muito combalidos. Assim, além das infraestruturas de telecomunicações, da segurança pública e da gestão do espaço urbano, subitamente estão sobre a mesa a saúde e, especialmente, a educação como mercados de peso na concorrência intercapitalista entre EUA e China mediada pelo desenvolvimento das TIC, num cenário onde a crise de acumulação se instaurou em distintos setores.
Um dos últimos relatórios do Conselho de Consultores para a Ciência e Tecnologia para a presidência Obama colocava a necessidade de assegurar a supremacia dos EUA em semicondutores e alertava para as políticas industriais chinesas. Essas vinham atingindo grandes resultados nas TIC, num quadro em que as ambições e determinação do partido-Estado não mostravam sinais de arrefecimento se deixadas por si. Trump vem mobilizado o tensionamento da disputa tecnológica com a China para fins eleitorais, mas suas políticas reverberam preocupações profundas do establishment americano. As formas e medidas poderão ser distintas do atual governo, todavia, o próximo governo deverá implementar uma estratégia para conter a China nas TIC, e os semicondutores continuarão tendo o potencial de estrangulamento industrial chinês. Entrementes, a democracia burguesa tende a ser ainda mais esvaziada pelas transformações estruturais discutidas. Certamente, a liberdade de expressão e de cátedra e o fim da retórica aberta de extermínio racista, xenófoba, machista e homofóbica de inspiração fascista na Casa Branca, com um governo Biden, são importantes para que a luta da classe trabalhadora se dê em melhores termos. Entretanto, para países periféricos, tudo isso pode rapidamente se dissolver sob uma chuva de mísseis teleguiados ou pelas desestabilizações de regimes políticos nacionais. Destarte, nem os democratas nos EUA nem o capitalismo chinês do partido-Estado constituem alternativas, pois as dinâmicas e transformações discutidas resultam de compulsões impostas pela concorrência intercapitalista e interestatal no processo de acumulação de capital e de militarização. Não há alternativas de fato a esse cenário que não venham de baixo, das classes trabalhadoras, tanto nos EUA e na China, como no Brasil.
Originalmente publicado em: Jornal dos Economistas, setembro de 2020. Disponível em: https://www.corecon-rj.org.br/anexos/4291BF4A6B2DA562EB5BB22BC49FF795.pdf
[1] MAJEROWICZ, Esther. As tecnologias da informação e comunicação na disputa entre China e Estados Unidos. Jornal dos Economistas, março de 2020. Disponível em: https://www.corecon-rj.org.br/anexos/AE0CAE24632CF7C215D42F9F3F19360C.pdf