Bolívia: abuso do sistema de justiça para perseguir opositores

O governo interino de Bolívia abusa do sistema de justiça para perseguir colaboradores e partidários do ex-presidente Evo Morales.

Human Rights Watch 21 set 2020, 12:46

O governo interino de Bolívia abusa do sistema de justiça para perseguir colaboradores e partidários do ex-presidente Evo Morales, que enfrenta acusações por terrorismo que, à luz das provas, parecem responder a motivações políticas, assinalou Human Rights Watch num informe divulgado hoje.

O informe de 53 páginas, “La justicia como arma: Persecución política em Bolívia”, documenta processos promovidos pelo governo interino com acusações infundadas ou desproporcionais, violações do devido processo, cerceamento da liberdade de expressão e uso excessivo e arbitrário da detenção preventiva. Human Rights Watch também apresenta casos de abuso do sistema de justiça contra opositores a Morales durante o seu governo.

“Os procuradores podem e devem investigar, se têm informação crível, um delito cometido por quem seja, incluindo altos ex-funcionários públicos”, disse José Miguel Vivanco, diretor para as Américas de Human Rights Watch. “Entretanto, é crucial que a procuradoria e os juízes atuem de maneira independente, respeitem os direitos fundamentais e não sejam uma ferramenta para perseguir opositores políticos do governo de turno”.

Morales se viu obrigado a renunciar e abandonou a Bolívia em novembro de 2019, enquanto que em todo o país se realizavam protestos motivados por denúncias de fraude eleitoral – que agora têm sido questionadas – e depois que os comandantes das Forças Armadas e da Polícia lhe pediram que deixasse o cargo.

A ex-senadora Jeanine Áñez, atual presidenta interina, teve a oportunidade de romper com o passado e assegurar a independência judicial. Entretanto, seu governo pressionou de forma pública procuradores e juízes para que atuem de maneira favorável a seus objetivos, dando lugar a investigações penais contra mais de 100 pessoas vinculadas ao governo de Morales ou simpatizantes por supostos delitos de sedição ou terrorismo. Dezenas mais estão sendo investigadas penalmente por suposto pertencimento a uma organização criminosa, descumprimento de deveres e outros delitos. À luz da evidência, muitos dos casos parecem perseguir fins políticos.

Human Rights Watch examinou milhares de páginas de documentos judiciais e informes policiais em 21 desses casos, e em fevereiro de 2020 teve acesso a todo o expediente da investigação por terrorismo contra Morales, conformado por mais de 1500 folhas. Human Rights Watch também entrevistou 90 pessoas, entre elas o ministro de governo, Arturo Murillo; a defensora do povo, Nadia Cruz; procuradoras, advogados defensores, pessoas que participaram em bloqueios de estradas e manifestações (a favor e contra Morales), testemunhas de ocorrências de violência e familiares de manifestações assassinados.

Em alguns casos, os procuradores apresentaram acusações por terrorismo contra pessoas pelo simples de fato de haver tido contato telefônico com Morales, concluiu Human Rights Watch. A outras pessoas foram imputados delitos por haver exercido sua liberdade de expressão ao publicar críticas contra o governo na internet.

No informe se descrevem, entre outros, os seguintes casos:

– A procuradoria imputou a Patrícia Hermosa, apoderada e ex-chefa de gabinete de Evo Morales, os delitos de terrorismo, financiamento do terrorismo e sedição, exclusivamente com base no contato telefônico que manteve com Morales depois de que este renunciasse. Ela foi detida em 31 de janeiro de 2020 e esteve em detenção preventiva até em 5 de agosto sem acesso à atenção médica, apesar de estar grávida. Em março, teve um aborto espontâneo.

– A procuradoria imputou a Mauricio Jara, um simpatizante de Morales, os delitos de sedição, instigação pública a delinquir e atentado contra a saúde pública, ao parecer por haver exercido sua liberdade de expressão. Como prova de sua participação em atividades delitivas, a polícia manifestou que Jara supostamente havia qualificado ao governo de “tirano” e “ditatorial”, havia se referido à morte de ao menos 10 manifestantes em Senkata em novembro de 2019 como um “massacre”, havia “desinformado” e havia exortado a que se levassem a cabo protestos. Jara se encontra atualmente em detenção preventiva.

– O juiz Hugo Huacani, em cumprimento de leis bolivianas que formalmente salientam a que se dite detenção preventiva, outorgou a detenção domiciliar a outra pessoa cujo caso está descrito no informe: Edith Chávez, a qual trabalhava como empregada doméstica para um ex-ministro do governo de Morales. Algumas horas depois, dois advogados do governo denunciaram o juiz ante a polícia por sua suposta “falta de independência”. A polícia apreendeu o juiz, que esteve detido até o dia seguinte, quando outro magistrado resolveu que sua detenção havia sido ilegal. O Ministério de Governo apresentou uma denúncia penal contra o juiz Huacani por suposto descumprimento de deveres e por tomar decisões contrárias à lei.

A procuradoria imputou a Morales, quem se encontra exilado na Argentina, os delitos de terrorismo e financiamento do terrorismo, apenados com até 20 anos de cárcere cada um. Morales também está sendo investigado em outras causas, mas a procuradoria não apresentou acusações contra ele nesses processos por agora.

As acusações de terrorismo contra Morales se baseiam numa chamada telefônica realizada em novembro de 2019, dias depois de que Morales deixasse a acusação, na qual uma pessoa que supostamente seria Morales instou a um colaborador a mobilizar manifestantes para que bloqueassem estradas de acesso a algumas cidades e impediram o ingresso de alimentos. Na chamada, a pessoa diz: “combate, combate, combate” e insta a “dar dura batalha à ditadura”, em referência ao governo interino da presidenta Áñez.

Os manifestantes na Bolívia frequentemente utilizam os termos “combate” e “batalha” em alusão a seus protestos. O bloqueio de estradas também é uma forma de protesto comum na Bolívia e outros países da região. Durante as mobilizações de outubro e novembro, tanto simpatizantes de Morales como opositores bloquearam estradas a modo de protesto. Depois da renúncia de Morales em 10 de novembro, seus partidários intensificaram os protestos e bloquearam as estradas principais. Isso provocou escassez de combustível e comida que incrementaram os preços destes produtos em algumas zonas.

Ainda que a maioria dos protestos se desenvolveram em forma pacífica, alguns manifestantes a favor e contra Morales supostamente sequestraram pessoas associadas com o bando contrário, queimaram moradias e outros edifícios, e cometeram outros atos de violência, incluindo o assassinato de dois manifestantes contrários a Morales na localidade de Montero por supostos simpatizantes de Morales.

Na gravação da conversa, que supostamente teve lugar em 14 de novembro, depois destes incidentes violentos, as pessoas que falam não se referem ao uso da violência nem à participação em algum dos atos violentos que se haviam produzido.

Os procuradores sustentam que Morales ordenou que se cometessem atos de violência. Entretanto as provas incluídas no expediente às quais teve acesso Human Rights Watch – que consistem, principalmente, nessa única chamada telefônica – não dão o menor sustento a essa acusação.

“As declarações atribuídas a Morales são, sem dúvida, preocupantes, e é razoável que os procuradores investiguem se constituem um delito conforme ao direito boliviano”, destacou Vivanco. “Mas, aplicar a definição de terrorismo da legislação boliviana, que é excessivamente ampla, para conseguir uma condenação a 20 de cárcere contra Evo Morales não guarda nenhuma proporção com a conduta refletida na chamada telefônica e parece mais um ataque político contra Morales e seus partidários”.

Washington D.C.

Artigo originalmente publicado no site do Human Rights Watch. Reprodução da tradução realizada por Charles Rosa para o Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


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