Um outono decisivo
A crise econômica e as falhas estruturais no sistema espanhol que se revelaram nestes meses vêm de muito antes.
Entramos num outono decisivo. A crise sanitária está longe de ter sido superada e se anuncia uma segunda onda que pode voltar a colocar em tensão a sociedade, sobretudo, a gente trabalhadora dos bairros operários. A esta situação se soma a incerteza por uma situação econômica que se prevê catastrófica: uma crise sem precedentes que cai sobre uma população já empobrecida por décadas de políticas neoliberais que somente cortaram direitos sociais.
É evidente que a crise sanitária foi inesperada. Nesse sentido, é compreensível que o governo tenha atuado com atraso e na defensiva, ainda que depois de três meses de pandemia, a impressão que dá é que não se tiraram lições em absoluto e que o caos administrativo é total. Todas as comunidades autônomas, seja qual for a coloração, assim como o governo central, se mostram paralisadas e sem capacidade para dar soluções a problemas urgentes, como por exemplo, a volta às aulas. A conclusão é clara: os partidos sistêmicos, seja qual for a coloração, são incapazes de abordar os desafios urgentes, e o Estado em suas múltiplas ramificações (exceto na repressiva, onde segue mantendo intactas suas atribuições), aparece ante a sociedade como uma maquinaria impotente ante os problemas que vão aparecendo.
Mas a crise econômica e as falhas estruturais no sistema que se revelaram nestes meses vêm de muito antes. Infelizmente, não podemos dizer que o governo PSOE-UP, autoproclamado como o governo mais progressista dos últimos 40 anos de democracia, tenha abordado esses problemas. Frente a uma direita radicalizada, mas dividida, em minoria parlamentar e sem um rumo claro, o Governo apostou por não abordar as questões econômicas, políticas e sociais, colocando em seu lugar remendos extremamente débeis e insuficientes, que não tardarão em se fazer presentes.
O exemplo do famoso “escudo social” é paradigmático. Num país democrático, devem existir direitos que não estejam sujeitos aos interesses dos mercados. Num contexto no qual o desemprego começou a aumentar de forma exorbitante e milhões de pessoas não podem assegurar sua renda através do trabalho (por culpa do sistema e não das pessoas), é fundamental que o Estado se ocupe de evitar que se agudize a miséria e o desespero. A Renda Mínima Vital está sendo um absoluto fracasso: não somente pelo ralo de sua quantia e o restrito de seu alcance, também por uma gestão desastrosa produto da condicionalidade e o conservadorismo do Governo, que fez com que somente chegue a 1% de 600 mil solicitantes.
Este fracasso tem a ver com o aspecto de fundo do problema. O Governo não pode abordar a crise social porque se nega a assumir decisões que levem a confrontar com as grandes multinacionais e os milionários e, assim, poder redistribuir a riqueza. Empresas como Amazon ou Mercadona aumentaram suas receitas de forma brutal nesta crise, arruinando dezenas de milhares de pequenos empresários e sem melhorar as condições de seus trabalhadores e trabalhadoras. É covarde e e incompreensível que um governo que se diz de esquerda não tenha implementado um imposto extraordinário aos ricos e as grandes empresas com lucros para gerar um fundo de coesão social, que ajude a toda a gente que o necessita. Não estamos propondo uma medida revolucionária (que também fazem falta, sem dúvida): são simplesmente medidas que tratam de evitar que a sociedade se despenque para o abismo. Caso não levadas a cabo, é por inutilidade ou por falta de vontade política? Ambas as respostas são preocupante.
Há outros temas que urge abordar. A moradia é um deles: estamos num país onde milhões de moradias estão vazias e são propriedades de grandes fundos de investimento que somente as utilizam para especular e aumentar os preços dos aluguéis. A inação dos poderes públicos é inaceitável: não somente deveria ser implementada uma proibição indefinida dos despejos, mas que deve ser abordada de forma urgente a criação de um parque público de moradia que utilize como bem social todas essas propriedades dos bancos, os quais, por certo, não devolveram os 65 bilhões de euros com os quais foram resgatados na crise passada.
No terreno da saúde, da estrutura pública de cuidados e da educação, não parece que os poderes públicos vão afrontar suas obrigações com a população. Não há nem planos de investimento público nem reforço de pessoal e de suas condições laborais para afrontar os problemas d efundo que diariamente sofrem o professorado e os usuários e usuárias. Num contexto de profunda crise social, isso significa que as famílias trabalhadoras terão que enfrentar sozinhas as consequências da precariedade do setor público, sendo as mulheres as que mais vão pagar esta paralisia governamental. O anúncio do PSOE de buscar pactos com Ciudadanos, em vez de buscar uma aliança social forte, contando com a opinião ativa dos funcionários públicos, para sustentar um projeto que fortaleça os direitos sociais, não augura vontade política para resolver este tema. É incompreensível, por exemplo, que neste contexto, PSOE, UP e ERC tenham mantido o financiamento à educação concertada, em vez de direcionar todos os recursos à educação pública.
Outro grande problema tem a ver com a indústria. É óbvio que há uma crise que vem de longe, produto do esgotamento da rentabilidade de certos setores outrora motores da economia, como a automação. Os ERTES podem ser um mecanismo temporal para evitar demissões (ainda que sem uma reforma fiscal que aumente as receitas do Estado, a longo prazo arruinarão a caixa da seguridade social), mas não solucionam o gotejamento de quebras de empresas ou deslocalizações. Nissan foi o primeiro aviso do que está por vir. Cada empresa fechada deve se converter em pública e colocar-se a serviço de um plano de produção de bens sociais, que garanta o emprego e a transição ecológica. O palavreado não vai solucionar um problema que arrasta muitas zonas para o deserto econômico.
Além disso, a destruição sem alternativa de comunidades articuladas em torno da indústria conduz para a atomização social, debilita a classe trabalhadora como força política e, portanto, a democracia. Já ocorreu na França, EUA ou Reino Unido, onde a pulverização destas comunidades foi o prelúdio da aparição dos monstros políticos. Tudo isso tem relação com o legítimo medo à direita que hoje domina a esquerda. Não se pode ser antifascista sem combater com políticas públicas as condições que facilitam sua ascensão. Numa sociedade densa, onde a segurança vital esteja garantida pela comunidade, o fascismo é um fenômeno marginal.
Nesse sentido, o velho lema de “somos 99%” parece assumir hoje todo seu sentido, sob condição de interpretá-lo como uma metáfora de como setores cada vez mais amplos da população são condenados à precariedade. As mulheres trabalhadoras (num sentido também reprodutivo do termo), os trabalhadores e trabalhadoras da indústria, o precariado urbano, o pessoal público cada vez mais afogado pelas políticas de desinvestimento, as pessoas migrantes e a grande maioria da juventude (estamos falando de condenar uma geração inteira!) fazem uma grande maioria ameaçada por um sistema em decadência e por uma classe política a seu serviço, ou no melhor dos casos, incapaz de lhe colocar limites.
Por isso, resulta preocupante a lógica do mal menor que se impôs majoritariamente na esquerda. Fiar todo um governo sem vontade, preso por seu medo e fidelidade aos grandes poderes financeiros, somente nos conduz ao colapso. É preciso romper essa inércia com urgência: somente passando à ofensiva e exigindo através da mobilização que este governo timorato, incapaz de cumprir por si mesmo promessas como a revogação da reforma laboral, aplique políticas sociais fortes e gerar condições que evitem cenários piores. Estamos num momento decisivo. Virão meses difíceis. Não devemos afrontá-los desde a passividade.
Artigo originalmente publicado em El Diario. Reprodução da tradução realizada por Charles Rosa para o Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.