Uma guerra de facções e camarilhas em meio à crise
A combinação de crise econômica e crise política seguirá abrindo caminho para novos conflitos no aparelho de Estado.
Wilson Witzel teve sua queda consolidada no final do mês passado. Eleito na esteira do bolsonarismo e defensor aberto da ação policial contra a juventude na periferia com seu slogan mórbido “atirar na cabecinha”, Witzel vibrou com a ação do BOPE na Ponte Rio-Niterói, em 2019, e estava no mesmo palanque, sorrindo, em que os facínoras do PSL quebraram a placa de Marielle num comício em 2018. Rapidamente, no entanto, Witzel vive seu ocaso, em conflito com a família Bolsonaro, isolado e acusado de se beneficiar de um esquema de desvio de verbas da Saúde. Afastado do governo fluminense pelo STJ, Witzel aguarda a decisão de processo de impeachment em tramitação na ALERJ.
Na cidade do Rio, por sua vez, é Marcelo Crivella quem enfrenta sérias acusações, após conseguir se livrar por pouco de um pedido de impeachment motivado pela denúncia da ação de seus “guardiões”, funcionários comissionados utilizados para ameaçar jornalistas e usuários do sistema de saúde carioca. Em outros estados, como Santa Catarina, há pedidos de impeachment em andamento. Tudo isso mostra a instabilidade do atual momento, também presente no terreno da disputa entre os partidos políticos. Num contexto de crise econômica profunda, tem sido recorrente a atuação de facções do aparelho de Estado para beneficiar aliados e prejudicar adversários nessa etapa de decomposição do regime de 1988.
O Rio de Janeiro é um caso exemplar: não sobra para ninguém, como mostram as novas denúncias contra Crivella, reveladas pelo empresário Rafael Alves, que afirmava “ter a caneta” da prefeitura e poder para realizar nomeações e influenciar contratos. Segundo o Ministério Público, em mensagens de celular, Alves chega a ameaçar “destruir a igreja” – insinuando possível lavagem de dinheiro desviado da prefeitura pela Igreja Universal – caso visse seu poder na prefeitura ameaçado. Mesmo Eduardo Paes, que aparecia nas pesquisas como favorito na disputa eleitoral, viu acelerarem procedimentos investigatórios que dormitavam nas gavetas do Ministério Público, tendo se tornado, agora, reú na Justiça Eleitoral por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e falsidade ideológica, em denúncias relacionadas a repasses milionários da Odebrecht em forma de doações ilegais. Não por acaso, a recente pesquisa Atlas mostrou que 22,7% dos entrevistados na cidade votariam em branco ou anulariam o voto na próxima eleição. O Rio é o ponto alto da crise do regime e de sua expressão na eleição municipal de 2020.
Queremos chamar a atenção para dois aspectos da luta política: apesar da unidade chefiada por Rodrigo Maia no Legislativo ao redor do ajuste, a disputa eleitoral e a dinâmica estrutural da crise abrirão ainda mais fissuras e disputas entre frações da burguesia, de seus partidos políticos e das camarilhas, máfias e milícias que orbitam a seu redor: esta será a tônica dos próximos meses.
Nas profundezas da crise orgânica
É fundamental reafirmar que uma das marcas da situação nacional é a crise orgânica do regime nascido em 1988, um resultado da combinação das crises econômica, social e política que há anos se desenvolvem sem perspectiva de resolução.
A saída de Sérgio Moro do governo – consumada após a crise da reunião ministerial e da acusação, por Moro, de que Bolsonaro busca controlar a Polícia Federal e a Justiça, além de visar governadores de oposição – abriu uma nova etapa na crise. Ficaram para trás os dias em que o bolsonarismo conseguia capturar, quase exclusivamente, o mal-estar das camadas médias com os escândalos de corrupção, facilitado, além disso, pelas manipulações e manobras para impedir a candidatura de Lula e por sua rede de fake news.
Anteriormente, o mal-estar com a política burguesa corrupta e falida expressara-se de modo multifacetado nas Jornadas de Junho de 2013 e em momentos posteriores, com uma parte da direita indo às ruas para capturar a insatisfação popular. Sua ação terminou bem-sucedida também como resultado dos erros de parte majoritária da esquerda, que menosprezou a importância dos acontecimentos de Junho.
A vitória de Bolsonaro, no entanto, rapidamente colocou à luz seu passado e o de sua família, envolvida em denúncias de desvio de verbas de gabinetes parlamentares e de proximidade com o esgoto das milícias do Rio de Janeiro. Buscando salvar seu clã, Bolsonaro logo voltou a sua velha família do centrão e organiza acordos pela salvação de acusados de corrupção. A luta pelo controle da Polícia Federal e a nomeação bolsonarista de Alexandre Ramagem para comandá-la devem ser vistas como parte desta disputa, que também se manifesta no interior da burocracia estatal e no ativismo de membros do Judiciário e do Ministério Público. Como escreveu Honório Oliveira, dirigente do PSOL-RJ, a respeito do caso do Rio de Janeiro:
“Antes do afastamento de Witzel e da prisão do pastor Everaldo, o vice Cláudio Castro, homem da ala conservadora da Igreja Católica do Rio de Janeiro, esteve reunido com Bolsonaro. Existe uma série de interesses do clã Bolsonaro que se cruzam neste processo. O principal deles é a ação que corre contra Flávio Bolsonaro no Ministério Público do Rio de Janeiro. O caso Queiroz é um dos calcanhares de Aquiles do atual governo. A decisão monocrática do ministro do STJ em relação ao governador afastado muito provavelmente tem interferência da família Bolsonaro”.
O que queremos alertar, portanto, é que tal combinação de crise econômica e crise política seguirá abrindo caminho para novos conflitos no aparelho de Estado. Ainda que a unidade burguesa ao redor da retirada de direitos exista, a luta entre facções e camarilhas no terreno eleitoral deve impor-se, também recrudescida pela nova legislação eleitoral que estimula uma já prevista fragmentação partidária. A disputa eleitoral, como se tem visto nas últimas semanas, trará ainda mais tensões, com prováveis desdobramentos em novas operações policiais, judiciais e prisões.
É preciso apontar outro caminho
Por tudo isso, a esquerda socialista precisa aprofundar a defesa de uma agenda independente e popular contra a corrupção, para além da simples demarcação, denunciando as formas de dominação e de governo da burguesia e o apodrecimento do aparelho de Estado, com presença crescente de camarilhas, máfias e milícias que disputam, por meios legais e extralegais, para ampliar a captura dos fundos públicos. Na disputa eleitoral, também será o momento de propor mecanismos mais reais de participação popular e de controle democrático de instituições públicas.
Ao mesmo tempo, é preciso aproveitar a brecha dos enfrentamentos, buscando o protagonismo popular, por meio da defesa de novas eleições para governador, no caso do Rio, além da ação independente para denunciar e ampliar as contradições das facções burguesas, como mostrou Roberto Robaina, em Porto Alegre, em sua atuação como presidente da recente CPI que indiciou o prefeito Nelson Marchezan Júnior (PSDB).
Nas eleições e nas lutas, defenderemos um programa para dialogar com a maioria social, valorizando o serviço público, a participação popular e apresentando a necessidade de um novo regime, realmente democrático, para o Brasil. Eis o papel que o PSOL desempenhará nas eleições municipais de 2020.