A Bolívia por um fio

A tensão está presente no ar de La Paz.

Bruno Magalhães 18 out 2020, 15:06

Desde La Paz, Bolívia*

A tensão está presente no ar de La Paz. Hoje, a capital do país amanheceu com as ruas cheia de policiais e militares enquanto o povo boliviano vai às urnas pela primeira vez após o golpe de estado de 2019, que derrubou o presidente Evo Morales e levou a direitista Jeanine Áñez ao poder. A incerteza sobre o desfecho do processo eleitoral, sobre o qual pairam suspeitas que movimentaram dezenas de observadores internacionais de todo o mundo rumo a Bolívia, pode levar o país a um perigoso impasse nos próximos dias.

Concorrendo ao pleito estão Luis Alberto Arce, ex-ministro de Morales e candidato do Movimento ao Socialismo (MAS), Carlos Mesa, ex-presidente boliviano derrubado por mobilizações populares em 2005, e Luis Camacho, líder da extrema-direita na província de Santa Cruz e um dos protagonistas do golpe do ano passado. As últimas pesquisas eleitorais colocam Arce em primeiro lugar com 42%, Mesa em segundo com 33% e Camacho em terceiro com 16%, indicando um cenário de segundo turno que pode aumentar o conflito social no país. Entretanto, qualquer previsão é impossível tendo em vista a regra eleitoral do país, na qual o primeiro colocado pode vencer no primeiro turno não somente conquistando mais de 50% dos votos, mas também através de uma vitória com mais de 40% dos votos e 10 pontos percentuais de diferença do segundo colocado.

Não se sabe se haverá um segundo turno ou não, o que aumenta bastante os níveis de incerteza sobre o que acontecerá no pais nos próximos dias. As dúvidas sobre a transparência e legitimidade destas eleições, realizadas por um governo direitista em um contexto de repressão aos movimentos sociais e políticos, aumentam a possibilidade do cenário de conflito que surge no horizonte. A polarização política, que repete um movimento similar ao de outros países onde a extrema-direita se fortaleceu após anos de governo de frente popular, é a marca da situação política do país.

O golpe de 2019

A crise que levou ao golpe de 2019 se iniciou justamente após as últimas eleições gerais bolivianas em outubro deste mesmo ano, que deram a vitória ao então presidente Evo Morales para um quarto mandato. Este novo mandato de Evo foi permitido por um referendo constitucional realizado em 2016 que, entre outras coisas, removia as restrições sobre o número de mandatos presidenciais permitidos anteriormente.

Imediatamente após as eleições de 2019, a Organização dos Estados Americanos (OEA) divulgou um relatório alegando irregularidades no processo que serviram como justificativa para uma exigência de renúncia de Morales feita pelo comando do Exército. Esta situação desencadeou uma série de motins policiais e levou também à perseguições contra a militância do MAS por grupos direitistas, como no triste caso de Patricia Arce, prefeita masista da cidade de Vinto que foi raptada e humilhada publicamente, sofrendo agressões e tendo os cabelos cortados em um fato que evidenciou a postura racista e misógina da direita golpista.

Neste cenário de hostilidade e violência – e sem a retaguarda decisiva de apoiadores históricos do MAS – como a Central Operária Boliviana (COB) e outras organizações populares – Evo renunciou juntamente com seu vice Garcia Linera e a jovem presidente do Senado, Adriana Salvatierra. O golpe de estado então se consolidou com a posse da segunda vice-presidente do Senado, Jeanine Áñez, em uma rápida sessão sem quórum nem apoio da maioria dos parlamentares.

Luis Camacho, apelidado de “Bolsonaro boliviano” devido ao estilo belicoso e ao fundamentalismo religioso, é hoje o principal líder de uma extrema-direita profundamente racista e patriarcal que representa os interesses dos grandes proprietários latifundiários e financistas dos país, buscando anular a participação das camadas populares na política e até mesmo acabar com o caráter plurinacional do estado boliviano. Seu papel como representante dos “comitês cívicos” de Santa Cruz demonstra a política das oligarquias desta região, que já defenderam até mesmo a separação da “meia lua boliviana” (as províncias de Pando, Beni, Santa Cruz e Tarija) das províncias andinas do país.

Um dos principais alvos simbólicos dos golpistas foi a Wiphala, bandeira indígena que representa o estado plurinacional e foi queimada por diversas vezes durante o golpe. A famosa entrada de Luis Camacho no Palácio Quemado (sede do governo), ajoelhando-se com uma Bíblia sobre a bandeira boliviana tradicional e declarando que “Pachamama nunca mais voltará ao palácio de governo”, assim como a homenagem feita por Áñez aos militares assassinos de Che Guevara em 1967, também deixam claras as posições dos golpistas e o papel da extrema-direita no governo atual.

Esta extrema-direita tem fortes traços fascistas, representados por organizações como a União Juvenil Crucenha, de Santa Cruz, ou a Resistencia Juvenil Cochala, de Cochabamba, que atuam sistematicamente através de agressões e são hoje protagonistas da violência política que avança a passos largos, recusando qualquer via eleitoral para a solução da questão política e apostando na radicalização fundamentalista de seu discurso.

O impasse não acaba hoje

As eleições de hoje acontecem em profunda apreensão, com o MAS encarando a votação com bastante desconfiança e o governo golpista buscando legitimar o processo a todo custo. Enquanto se faz propaganda da “festa da democracia”, um toque de recolher paralisa todo o transporte público no país e impede a circulação até mesmo de táxis e carros de passeio não autorizados. Policiais e militares se movimentam fortemente armados e em grande número, aumentando ainda mais o clima tenso.

A chegada de inúmeros observadores internacionais nos últimas dias não amenizou a situação, pelo contrário. Ao mesmo tempo que busca valorizar a presença de organismos internacionais como a ONU e a OEA (que legitimaram o golpe de estado), o governo e a grande mídia atacam delegações de observadores independentes. Foi notória a declaração recente do ministro da Justiça, Arturo Murillo, ameaçando expulsar ou prender observadores internacionais convidados pelo MAS, assim como a retenção no aeroporto do deputado argentino Federico Fagioli em sua chegada a La Paz. Também foram noticiadas ameaças a observadores internacionais que foram à Santa Cruz.

A questão que pode explodir o barril de pólvora das eleições bolivianas é relativamente simples. Devido à sua desconfiança do processo – totalmente justificada, diga-se de passagem – o MAS provavelmente não aceitará como legítimo um resultado que leve ao segundo turno. Por outro lado, a direita representada por Mesa e a extrema-direita de Camacho não podem tolerar um resultado que dê uma vitória a Arce em um primeiro turno depois de todo o esforço golpista do último ano. Se Arce vencer no primeiro turno, a direita rapidamente elevará o tom contra o novo governo. Se não vencer, o MAS irá as ruas denunciar o processo, rompendo o toque de recolher. Ou seja, o acirramento do conflito é praticamente certo.

Existe ainda um outro elemento complicador. Carlos Mesa procura se apresentar como um burguês moderado, mas será inevitavelmente empurrado ainda mais para a direita em caso de um segundo turno porque precisará do apoio de Camacho, o que colocará ainda mais combustível na disputa. Se somarmos esses elementos a um cenário político já extremamente polarizado, teremos ainda semanas ou meses de bastante luta política (e violência) na Bolívia.

Aparentemente, a única saída para este impasse está nas mãos da classe trabalhadora boliviana e de sua organização como ferramenta para enfrentar a burguesia e a extrema-direita, historicamente organizada e combativa. Apesar de todos os crimes da diretas, não se pode negar que a crise política de 2019 foi também consequência do desgaste e dos grandes erros dos anos de governo de Evo Morales (o papel da COB naquele momento é prova disso), mas a vanguarda política de esquerda na Bolívia passa por uma grande renovação dentro e fora do MAS, e jovens lideranças enraizadas no movimento popular despontam dispostas a avançar nas conquistas obtidas pelos trabalhadores e trabalhadoras nas décadas de luta passadas. Não há caminho de vitória para o povo boliviano que não passe por sua própria autoorganização e pelo papel desempenhado por esta nova geração de lideranças populares.

*Bruno Magalhães está em La Paz com a delegação do PSOL acompanhando as eleições bolivianas.

Artigo originalmente publicado no site do Observatório Internacional da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco.


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