O fetichismo do “evangélico”

Sobre o sentido da presença do “evangélico” nas eleições e as tarefas da esquerda.

Luiz Fernando de Souza Santos 16 nov 2020, 17:56

Uso a expressão fetichismo aqui no sentido que Karl Marx a empregou para nos levar da aparência à essência da mercadoria. A mercadoria nos aparece primeiramente como fetiche, como feitiço, e se não desvelarmos o que esse manto de névoa encobre, ficamos prisioneiros da aparência. É o que acontece quando, remoendo as dores dos reveses na disputa política, o dito “esclarecido” aponta o dedo acusatório: “isso foi por conta do voto dos evangélicos!”.

O fetiche do “evangélico” é suficiente, infelizmente, para compor narrativas que “explicam” a eleição de prefeitos e vereadores. Cada um precisa de um bode expiratório que melhor lhe convém. Quando Dilma Roussef foi eleita para um segundo mandato de presidenta da República, a direita acusou: “isso é culpa dos nordestinos!”. Agora, a “esquerda” e “progressistas” tem um bode expiatório para chamar de seu: “os evangélicos”. Em Manaus, meu lugar paralático de reflexão, essa acusação progressista é bem recorrente.


Os dedos acusatórios se contentam com o fetiche e ignoram as estruturas de formação da nação, assentadas no ódio-pânico que os donos do poder têm dos fodidos da sociedade brasileira. E isso é tão marcante na formação da nação que estava explícito na Constituição de 1824, outorgada por Dom Pedro I no Império: só os cidadãos “justos”, homens acima de 25 anos, brancos e ricos, poderiam votar e ser votados. Essa Constituição é, desse modo, o modelo típico-ideal para as tomadas de decisão política pela ótica das elites, pois só os bem nascidos tinham legitimidade para disputarem o poder político nas instâncias estatais.

Para o acúmulo histórico de ódio das elites brasileiras, essas determinações da Constituição de 1824 foram sendo desmontadas, ao menos juridicamente. Assim, trabalhadores, negros, mulheres, jovens foram conquistando o direito ao voto. Em 1988, os analfabetos também conquistaram (e foi conquista mesmo, arrancada apesar das elites!) esse direito. Mas esse foi um processo que sempre envolveu dedos em riste apontando culpados que vão sempre estar localizados nas posições mais subalternas.

Quando as elites paulistas, na década de 1920 denunciavam a crise da Primeira República, o faziam apontando o Nordeste e o Norte como um peso morto que a Federação carregava. Na verdade, no Brasil dessas elites só cabia São Paulo, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Minas Gerais. O resto era atraso. Basta ler os artigos publicados no Estadão sobre a política brasileira daquele período para encontrar tal disposição de espírito. E tal perspectiva não desapareceu. Ela se metamorfoseou, se reatualizou, ganhou pinceladas de contemporaneidade que lhe dá um tom reacionário e/ou progressista que passa despercebido, mas está num lugar cativo na visão de mundo brasileira e vai sempre se manifestar em momentos de comoção política.

Nos dias seguintes a uma eleição, essas chaves de construção das representações dos responsáveis pelo voto em candidaturas de direita, contrárias a um programa político democrático, progressista, à esquerda, são ativadas ferozmente. Claro que a direita também faz uso dessas chaves, com seus culpados adequados ao preconceito que lhes forma o espírito. Mas essa não me interessa aqui.

Para a defesa de um programa autenticamente anticapitalista que cale fundo no coração da periferia, a esquerda está desafiada a ir além dos fetiches, particularmente aquele que é taquigrafado como “evangélico”. É que esse “evangélico” é resultado da perpetuação do medo-pânico que as elites têm dos que estão na periferia do sistema. Por esse medo-pânico, roubaram dos subalternos as Comunidades Eclesiais de Base e sua reflexão embalada pela Teologia da Libertação, transformaram as associações de moradores em clube de narcotraficantes ou milicianos, as escolas públicas da comunidade foram reduzidas a galpões insalubres sem estrutura para uma educação libertadora, o núcleo do partido político no Bairro desapareceu porque a militância de base foi aparelhada pela burocracia estatal na chegada de partido de esquerda ao poder. O trabalhador na periferia ficou sem espaços onde podia estar com a vizinhança e formadores populares de outros lugares da cidade e fazer a experiência sobre a reflexão de sua condição de classe em-si e para-si. Esses espaços de sociabilidade comunitária foram erodidos, mas, como apontou o jovem Marx, o homem é um ser genérico, social, e, nos interstícios do vazio de vivência coletiva, ele vai assegurar o que for possível. A igreja evangélica é um espaço que restou. E sem esse espaço, a vida seria ainda mais doída, vazia, solitária, no chão da quebrada.

O militante tosco -que é a melhor forma que encontro para traduzir Der Rohe, conforme posto por Marx em Ökonomisch-philosophische Manuskipte (Manuscritos Ecconômicos-Filosóficos- no entanto, não vacila em assinalar que a eleição de candidatos reacionários, conservadores, de direita, é decorrência do voto do “evangélico”. E nem se dá conta que esse reducionismo é a ativação das estruturais e estruturantes revoltas elitistas contra o fim da hegemonia dos “homens justos” da primeira Constituição brasileira. O evangélico na quebrada é trabalhador precarizado, negro, indígena, caboclo, mulher etc. e, reduzido a fetiche na narrativa do militante tosco, é apenas um manto de névoa desencarnado, sem materialidade, sem história.

E não vamos derrotar o bolsonarismo –uma disposição política conservadora e reacionária que considero maior que Bolsonaro, pois é o velho ódio-pânico que tem as elites dos subalternos- com as referências fetichizadoras ao segmento evangélico. Como é possível disputar sua consciência com os dedos em ristes de acusador a dizer “evangélico” como um sujeito do medievo que apontava para aquele que lhe causava pavor: e gritava “leproso!”? O evangélico é o ser social na periferia tal qual nos versos de um poema de Drumond de Andrade:

Ó solidão do boi no campo,
ó solidão do homem na rua!
Entre carros, trens, telefones,
entre gritos, o ermo profundo.
Ó solidão do boi no campo,
ó milhões sofrendo sem praga!
Se há noite ou sol, é indiferente,
a escuridão rompe com o dia.
Ó solidão do boi no campo,
homens torcendo-se calados!
A cidade é inexplicável
e as casas não têm sentido algum.
Ó solidão do boi no campo!
O navio-fantasma passa
em silêncio na rua cheia.
Se uma tempestade de amor caísse!
As mãos unidas, a vida salva…
Mas o tempo é firme. O boi é só.
No campo imenso a torre de petróleo.

O militante tosco invariavelmente vai dar de ombros em relação a esses apontamentos e até citará uma frase famosa de Marx: “a religião é o ópio do povo”. Mas, como apontou Michael Löwy num texto intitulado “Marxismo e Teologia da Libertação” um Marx assim é uma redução iluminista, mecanicista, só passível de ser obtido num uso descontextualizado da frase. Essa frase vem num parágrafo maior, dialético, posto que desvela a disposição contraditória do fenômeno religioso:

A angústia religiosa é ao mesmo tempo a expressão da angústia real e o protesto contra essa angústia real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração, assim como é o espírito de uma situação sem espiritualidade. Ela é o ópio do povo.

No lugar do dedo em riste, a esquerda deve ter a tarefa de reconstruir as pontes com o chão da quebrada, de se tornar chegante lá onde o evangélico constrói os laços de sociabilidade possíveis para um ser em “angústia real” e, aí, disputar com agentes efetivos do reacionarismo, dialogar sobre um horizonte não coisificado, não aprisionado por figuras como Edir Macedo, Crivella, Silas Câmara, Everaldo, Malafaia, Valdemiro Santiago e tantos emissários daqueles que têm medo-pânico dos periféricos.


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