Pandemia, eleições e ciclos políticos: sete notas breves sobre a situação continental
Os impactos das disputas eleitorais sobre o continente americano.
Escrevemos essas breves notas na semana em que se conhecem os resultados da eleição boliviana, o resultado do plebiscito sobre a nova constituição chilena e quando restam poucas semanas para a eleição estadunidense. Donald Trump já emitiu seu voto antecipado. Mais que do comentar sobre um ou outro desses processos, nosso interesse é trazer uma posição mais geral sobre a conexão entre esses eventos e as tarefas que se abrem a partir da realidade dinâmica. Assim que, sendo a edição impressa de Movimento trimestral, parte dos leitores já terá conhecimento de novos resultados eleitorais e de processos. Vale registrar isso para uma leitura mais condizente do artigo e dos diversos artigos que são parte dessa edição.
Estamos diante de acontecimentos impensados, de uma hora para a outra, tal qual uma tempestade, o conjunto da vida social foi alterado: hábitos, metas e condições políticas foram deixadas de lado, por conta da pandemia inédita e, sobretudo, por seus desdobramentos num mundo de incertezas e com contornos díspares.
A pandemia da Covid-19 paralisou as principais cidades e economias do mundo, os hábitos estão a se reorganizar, mas evidenciou outros três “vírus” inerentes ao capitalismo em sua fase de decadência: o desemprego, a desigualdade e a fome. Até o final do ano teremos a retração de 500 milhões de postos de trabalho. Apenas na América Latina, teremos a redução de 12,1% do total da renda do trabalho. Os dados da Oxfam apontam que os 73 maiores bilionários do continente aumentaram suas fortunas em US$ 48,2 bilhões durante a quarentena. Enquanto isso, a FAO trouxe o prognóstico de que se pode dobrar o número de famintos em todo planeta. Em nome da pandemia, estão se impondo, em todo mundo, novas legislações trabalhistas, onde primam a precarização e a flexibilização de direitos do trabalho.
Para discutir o atual estado da situação política, optamos por enfocar o continente como um todo. O processo de luta de migrantes e a presença de latinos nos Estados Unidos, bem como a rebelião negra que se iniciou em Minneapolis, conferem cada vez mais um caráter de unidade ao continente, onde Trump se entrincheira para organizar sua política e seu programa.
Os próximos acontecimentos devem condicionar todo o debate sobre as disputas que virão pela frente: o “pós-pandemia”. Para tanto, é fundamental localizar onde estamos, do ponto de vista dos ciclos políticos e do “interregno” que marca a situação, a partir dos diferentes processos políticos que compõem uma nova totalidade em desenvolvimento.
1) Uma nova escala na disputa interestatal mundial
Há uma nova escala na disputa mundial entre as potências. Antes da pandemia, as últimas reuniões do G20 já eram palcos para a disputa da guerra comercial entre China e Estados Unidos. O ambiente da geopolítica mundial está fértil para novas disputas. Há uma disputa maior e maior competição, evidentemente, entre Estados Unidos e China, na frente principal. Há disputas entre o imperialismo dos EEUU e de potências de menor alcance como Irã, Rússia e Turquia. Tais temas ganham mais peso quando envoltos nas competições comerciais e diplomáticas sobre o controle das informações e das novas formas de reprodução do capital. A era Trump chocou-se contra diversas instituições internacionais – em primeiro lugar contra a própria OMS, retirando-se desta instituição no auge da pandemia.
O trumpismo expressa uma nova doutrina e atitude diante do conjunto dos países. Ao dividir a política entre “globalistas” e “patriotas”, apura uma guerra política e comercial em várias frentes, contra o que chama de “multilateralismo”. Trump abandonou, além da OMS, o Tratado Trans-Pacífico e faz da OMC um foco de crises e atritos.
O trumpismo joga na ofensiva contra China, seja para angariar votos na reta final eleitoral, seja para dar um marco comum para a articulação da extrema-direita que emana de Washington. Além de atacar a OMS e a China, chegando às raias do surreal ao falar do “vírus chinês”, a disputa para além da vacina tem como lugar central a disputa sobre o comércio e a tecnologia 5G. O controle sobre a quinta geração de tecnologia – um salto no encaminhamento, memória e processamento de dados – é a disputa para quem irá sair na frente na nova “corrida tecnológica”.
A China é a potência que está disputando um lugar na crise de hegemonia dos Estados Unidos. Consegue avançar em diversas zonas de comércio internacional, baseada em seus planos como a “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative) e “Made in China 2025”, acumulando posições para se instalar de forma mais decisiva no mercado mundial e no tabuleiro da geopolítica. A forma como a China lidou com a pandemia, ainda que tenha sido a fonte inicial de contágio, conferiu-lhe vantagens enormes sobre as outras potências competidoras. Contudo, mesmo a crise econômica e a própria pandemia não deixaram a locomotiva chinesa de fora: o número de desempregados bateu recorde, com dezenas de milhões em cifras do primeiro semestre. Em que pese a recuperação posterior de parte desses empregos, os novos postos são mais precários e com salários mais baixos.
Outros conflitos se seguem: o dos Estados Unidos com Irã, Rússia e outras potências secundárias, como a Turquia. O recente conflito militar entre Azerbaijão e Armênia projeta a multiplicação de focos de crise desse tipo. No entanto, dentro de países como Rússia, Irã e Turquia, que se habilitam como potências regionais ou secundárias, suas contradições internas cobram um alto preço. O repúdio às práticas autoritárias, como as de Putin e seus aliados, ecoam por toda a região: o caso mais emblemático é o levante em curso em Belarus contra o ditador Lukashenko.
No eixo da extrema-direita, o Estado de Israel se joga por Trump, após lograr reconhecimento e um acordo de relações diplomáticas com o Bahrein e os Emirados Árabes Unidos, como forma de buscar estabilizar o Oriente Médio após Netanyahu sobreviver à ofensiva opositora em seu país. Uma derrota de Trump também seria um reposicionamento nas peças do Oriente Médio, com um novo revés para a direita sionista, que precisa sair do impasse para progredir em seus planos de anexação e de comércio de um novo tipo de tecnologia militar e de inteligência.
Tudo isso ocorre nos marcos de uma crise ambiental sem precedentes, quando a própria reprodução da espécie humana é discutida, mesmo entre os Estados e como resposta às mobilizações mundiais pelo clima que exigem medidas concretas dos países centrais.
2) A questão do “interregno” e dos novos ciclos
Temos defendido um repertório sólido para encarar fenômenos tão complexos e atuais. Além de conceitos como “crise orgânica” para designar o atual estado da arte de vários regimes políticos, trabalhamos com muita força com a noção de “interregno”. Essa categoria central parece-nos chave para explicar a presente situação.
Para acessar a categoria ampla de interregno, devemos localizar a definição de Gramsci, usual para o período das primeiras décadas do século XX, mas que nos ajuda a compreender o que está se passando: “O ‘velho’ morria e deixava de orientar os indivíduos, ao passo que o ‘novo’ já anunciado ainda não pudera nascer, interregno no qual se verificavam (…) desde fenômenos mórbidos[1], até fenômenos onde (…) as massas, até então passivas, entram em movimento, (…) um movimento caótico e desordenado, sem direção, isto é, sem uma precisa vontade política coletiva” e as forças antagônicas “mostram-se incapazes de organizar em seu benefício tal desordem de fato”[2].
Houve o esgotamento do ciclo político conhecido como “pós-neoliberal” ou “progressismo”, por mais ambivalentes e vagos que sejam ambas as referências. Este ciclo foi marcado por uma ampla maioria continental que se postulava crítica aos partidos centrais da elite e levou à emergência de governos que prometiam resgatar o caráter “social” dos planos econômicos. Como não se trata de fazer aqui um balanço detido do que foi essa experiência, apenas assinalamos que conviveram, com unidades e contradições, duas grandes correntes no ciclo anterior, chamado “progressista”, na América Latina: o social-liberalismo encarnado pelo PT, os Kirchner e a Concertação chilena; e o chamado “bolivarianismo”, liderado por Chávez, o MAS boliviano e a primeira fase do governo de Correa no Equador, pautando uma maior nacionalização da economia, ampliação de direitos e novas constituições.
Há quem advogue que, após a derrota o ciclo da centro-esquerda, consolida-se um projeto continental de governos conservadores. Tal análise baseia-se em elementos corretos, como a existência de uma ofensiva real da extrema-direita, resgatando traços neofascistas e com elementos antissistema. Diferentemente do fascismo do século XX, não existe uma guerra mundial em curso e no horizonte. Pensamos que não se pode subestimar a força da ofensiva da extrema-direita, contudo não consideramos correto apontar a consolidação de um novo ciclo homogêneo e sólido como o que percorreu os últimos quinze anos no continente.
Assim, separamo-nos de duas vertentes que marcam o pensamento político, ambas marcadas pelo impressionismo: a que afirma existir uma “onda conservadora”, amplamente difundida entre círculos de esquerda e da centro-esquerda; e a outra, marcante em setores mais minoritários, que avalia estarmos num ciclo de rebeliões e na iminência de situações revolucionárias.
Não nos parece que, por agora, teremos um novo ciclo consolidado. O que vai primar vai ser o hibridismo entre tendências: de um lado, assonadas golpistas e giros repressivos; e, de outro, respostas populares. Também não se pode afirmar que vai existir uma estabilização da democracia liberal burguesa, numa forma “normal”, com a linha anteriormente batizada de “reação democrática”. Há que se olhar de perto, em outro artigo, o lugar que cumprem os governos que não são alinhados com a extrema-direita, provenientes de oposições com vínculos com os anteriores “progressismos”, como o caso de Argentina e México, dois países centrais para o continente.
A dinâmica é de maiores tensões, com uma relação de forças instável, na qual fenômenos em cada país ou mais localizados podem desequilibrar para o lado da reação ou do avanço das forças populares, que ainda contam com fragilidades organizativas e um atraso de consciência herdado do fracasso do stalinismo e da ideologia da fragmentação do capitalismo tardio. O signo será o de maior polarização.
3) Estados Unidos, o epicentro da polarização
Estamos diante da eleição presidencial mais importante da história dos Estados Unidos. Os olhos do mundo estarão voltados para o dia 3 de novembro, com amplos setores da opinião pública torcendo abertamente para que se confirme a derrota de Donald Trump. O trumpismo é um projeto com traços neofascistas, com controle parcial do Estado e que precisa avançar seu programa contrarrevolucionário. Como definiu Roberto Robaina em artigo na última edição da Revista Movimento,
“Quando Trump ordenou a repressão aos manifestantes que protestavam diante das grades da Casa Branca, para que pudesse atravessar a rua e ser fotografado posando com a Bíblia em punho, em frente à Igreja Saint John’s, estava apresentando simbolicamente a essência de seu programa para enfrentar a crise em geral e, em particular, a rebelião negra e juvenil que explodira dias antes nos EUA”[3].
As contradições geradas pela presente situação política fizeram com que os EEUU combinem elementos que fazem do país não apenas o epicentro do mundo capitalista, o coração do desenvolvimento das forças produtivas, a primeira potência político-militar do mundo, como também o epicentro da luta de classes, que em outros momentos esteve nos países da periferia. A resistência alcançou seu momento mais alto na rebelião antirracista de 2020. Como afirmou Luana Alves, também em artigo na última edição da Revista Movimento:
“O linchamento público de George Floyd – nomeação interessante utilizada por parte da vanguarda, pois afirma o laço histórico entre o ocorrido em 25 de maio de 2020 e a prática de linchamentos de pessoas negras, típica dos séculos XIX e XX nos EUA – incendiou a indignação popular, em especial da juventude norte-americana, e colocou novamente o movimento de ruas como elemento importante e decisivo na conjuntura globalmente. A partir de Minneapolis, onde a radicalidade foi vitoriosa e colocou os governos em defensiva, a mobilização pela defesa das vidas negras foi se espalhando por cidades e países, com a palavra de ordem ‘Não consigo respirar’ sintetizando a atual condição da maioria da classe, em especial da juventude: esmagada entre uma crise econômica avassaladora, uma pandemia global perigosa, sofrendo com a violência policial racista, e sob governos neoliberais, reacionários e antipovo”[4].
Trump tem perdido espaço. A extrema-direita cada vez mais se articula ao redor de grupos de choque, nas ruas e nas redes, onde se espalham grupos anticiência e contra a razão, como o movimento “QAnnon” e as milícias supremacistas que recrutam adolescentes para atirar em ativistas do Black Lives Matter. A esquerda social e política, apesar de incipiente, segue crescendo nos processos de luta: o Democratic Socialists of America (DSA) ganhou projeção eleitoral e segue arrebatando novos filiados e simpatizantes.
Biden não resolverá nenhum grande problema e sua participação nos debates confirma isso. Se vencer, o imperialismo postulará uma linha de seguir o cerco aos povos, mas podemos afirmar que será uma mudança de signo e uma derrota mundial para toda a extrema-direita. O dia seguinte à eleição, caso se confirme a derrota de Trump, será visto como festa e alegria em todos os países do mundo. Vai ter um sentido similar à queda de um tirano.
Vale notar que a luta vai seguir: tanto no âmbito geral para a conversão do trumpismo num movimento político de oposição transgressora, alimentando o racismo e o ódio policial, através de milícias paramilitares, quanto no âmbito mais imediato, diante da hipótese da não aceitação do resultado eleitoral, como já ensaiou Trump em suas falas. Com a morte e a substituição da juíza Ruth Ginsburg por Amy Barret na Corte Suprema do país, essa hipótese voltou a ser discutida pelos analistas políticos. Isso torna necessário, para derrotar Trump nas urnas, que aconteça um amplo movimento para se respeite o resultado eleitoral caso os Republicanos busquem fraudar a vontade popular.
A polarização vai subir muitos degraus e organizar uma esquerda radical, no campo social e político, na esteira da grande rebelião negra e do espaço aberto por Bernie Sanders, pelo DSA e pelo “novo socialismo” é uma tarefa inadiável, que está prestes a explodir, após a eleição.
4) A Bolívia abre um caminho
Diante do levante chileno e equatoriano, que sacudiram as estruturas políticas do continente, os setores golpistas, após o revés na tentativa de desestabilizar Maduro, jogaram suas fichas sobre a Bolívia. Marcado pelo mais alto nível de consciência e auto-organização dos países latino-americanos, a Bolívia passou a ser uma espécie de “prova dos nove” da relação de forças regional. O golpe consumado foi violento, derrubando e exilando Evo e Linera, e gerou uma repressão feroz contra movimentos sociais e populares opositores, sob uma controversa aliança que envolvia setores neofascistas do oriente boliviano, com as milícias ligadas a Luiz Camacho.
A chave da luta política foi que o movimento popular não abandonou a trincheira da resistência em nenhum momento, tendo dois picos importantes de mobilização para impedir que o governo Áñez institucionalizasse o estado de exceção, que poderia abrir caminho para um novo regime que liquidaria as conquistas da Constituição Plurinacional. O primeiro foi a ação heroica de Senkata, distrito petroleiro de El Alto, e de Sacaba, localidade em Cochabamba, que se jogaram para resistir ao golpe de Áñez. A entrada do Exército deixou 36 mortos e centenas de feridos, manchando de sangue as mãos do “governo interino” e chamando a atenção do país e do mundo para o que estava ocorrendo. O segundo gesto combativo foi a greve geral de vários dias, com bloqueios de estrada, no começo de agosto desse ano, que terminou por garantir o atendimento das reivindicações mínimas para que o pleito pudesse ocorrer.
A chapa do MAS foi formada com vistas à renovação: Luis Arce e David Choquehuanca têm perfis diferentes: Arce é economista e visto como “pragmático”; Choquehuanca é considerado um intelectual com ligações estreitas com o movimento camponês e indígena, com os quais atuou por várias décadas.
A eleição encerrou-se com uma votação avassaladora. A chapa do MAS recebeu 55,10% dos votos no primeiro turno, seguido por Comunidad Ciudadana (CC), de Carlos Mesa, com 28,83% e a aliança Creemos, de Luis Fernando Camacho, com apenas 14%. O MAS venceu em seis das regiões do país, com destaque para grandes votações em La Paz, Cochabamba, Potosí, Oruro e com uma vitória acachapante na comunidade boliviana no exterior. Terá a maioria no Senado e na Câmara dos Deputados.
Foi a maior vitória popular dos últimos anos e, nesse sentido, foi uma vitória estratégica que significa levantar a cabeça e renovar um enclave dos movimentos sociais, diante da ofensiva da extrema-direita e do esgotamento de processos que envelheceram e se burocratizaram como Maduro na Venezuela.
Esse novo impulso traz novas contradições, como aponta uma grande responsabilidade para as novas gerações que conduzem um processo revolucionário democrático: aprofundar e radicalizar a defesa dos direitos da maioria, levando em conta a necessidade de controlar as lideranças e exercer a democracia através de espaços extraparlamentares e institucionais.
5) Chile: plebiscito e vitória popular
Como alertamos mais acima, escrevemos esse artigo quando o plebiscito está sendo levado a cabo, fruto da pressão popular que ganhou sua expressão melhor acabada no levante popular mais importante do país, que teve lugar em 18 de outubro de 2019. O plebiscito sobre a constituinte, realizado em 25 de outubro de 2020, foi precedido por grandes demonstrações de rua no aniversário do levante de 18-O. Após um ano, as ruas de Santiago e de todo Chile voltaram a ficar tomadas, com mais de 100 mil pessoas na capital, além de manifestações em inúmeras cidades importantes.
O plebiscito validou a aprovação de uma nova constituinte e sua elaboração por uma convenção com deputados eleitos de forma exclusiva para a mesma por quase 80% dos votos, numa vitória maiúscula. O plebiscito cumpriu um papel progressivo, pois é parte da luta contra o regime herdado da ditadura pinochetista. Os dados mostram um contundente triunfo das duas opções pelas quais se jogou a esquerda e uma enorme participação, ao contrário da forte abstenção que a democracia chilena verifica desde há muitos anos nos pleitos eleitorais.
A dialética da limitação do plebiscito é que se trata de uma enorme conquista, por um lado, mas também foi parte do acordo feito para encerrar o ciclo de mobilização, aceitando parte das reivindicações, mas colocando travas no processo constituinte, como a cláusula de mudanças por 2/3, bem como a aprovação à época da “lei antibarricadas”. A potente mobilização chegou ao seu estágio superior, na maior greve geral da história do país, em 12 de novembro de 2019. É importante apontar que a esquerda da Frente Ampla e o PC não participaram da mesa de negociações que buscou o “cessar-fogo” em 15 de novembro de 2019. Há também duas importantes heranças dos combates de outubro: registraram-se as maiores manifestações da história do Chile, com mais de um milhão de pessoas em Santiago e se colocou, para setores de massa, o questionamento a ação dos “carabineiros”, a polícia militar chilena, que deixaram com lesões visuais centenas de ativistas, levando a ampla maioria da população chilena a repudiar a violência policial.
O processo de mobilização, após o esfriamento da sua fase aguda, seguiu forte nas organizações de base da sociedade, nas associações comunitárias e sindicais. Surgiram novos embates e atores políticos, num processo iniciado desde o ascenso estudantil de 2011, com muito peso das mulheres em luta, como acúmulo da construção das coordenadoras do 8-M. Além disso, a bandeira dos mapuches foi o símbolo do levante de outubro e se resgatou a esperança na auto-organização popular.
Há que seguir como os efeitos da pandemia vão atuar sobre o movimento de massas. Piñera, ainda que tenha recuperado pouco de sua popularidade, segue sendo um governo completamente nas cordas. A queda na economia vai gerar ainda mais embates, com um sentido comum para lutar por direitos, abrindo a discussão sobre a constituinte para milhões de chilenos.
Em 25 de outubro, em mais uma noite de festa e ocupação das ruas chilenas, após encerrar-se a votação do plebiscito, enterrou-se a constituição de Pinochet. A eleição constituinte marcada para abril de 2021, seguida do embate da eleição presidencial de novembro do mesmo ano, será chave para uma nova esquerda real afirmar-se como defensora dos direitos de todo o povo chileno, aproveitando o processo que segue em curso, numa dinâmica com elementos revolucionários, ainda em aberto, mas com enorme energia política.
6) Brasil e Equador: urnas e descontentamento popular
Haverá, ainda, outros processos eleitorais nos próximos meses: as disputas regionais no Brasil em 15 de novembro e a eleição presidencial no Equador, marcado pela experiência com o governo de Lenín Moreno e pelo levante popular do ano passado, que deve ocorrer em 7 de fevereiro de 2021.
No caso brasileiro, a tendência será uma eleição multipolar, sem que Bolsonaro possa avançar, com uma oposição desunida e uma maior disputa pela hegemonia no campo progressista. Como a eleição ocorre em dois turnos, com a apatia geral do movimento de massas e com os efeitos da pandemia, a marca será a imprevisibilidade de uma eleição com características inéditas, em que o período de campanha foi muito curto e com expectativas de uma abstenção recorde. O que se indica, até pelas pesquisas, é o já assinalado repúdio ao discurso bolsonarista. Ainda que seja um ator ativo, disputando para ir ao segundo turno em parte expressiva das capitais e se beneficiando do voto atrasado dos interiores, o bolsonarismo está longe de ser a onda eleitoral que foi avassaladora e turbinada pelas fake news em 2018. As pesquisas mostram dificuldade dos candidatos bolsonaristas nas principais capitais do sul, sudeste, norte e nordeste.
No Equador, a incipiente discussão aponta para a hipótese de derrota dos candidatos identificados com o governo e com seu programa neoliberal. A oposição também se apresenta dividida, com projetos muito díspares, mas com chances reais de vitória: o correísmo leva na cabeça de sua fórmula – pela impossibilidade de Correa concorrer por ter tido seus direitos políticos cassados – Andrés Arauz, o favorito nas pesquisas. Já o movimento indígena, através de Pachacutic, apresenta como candidato o ex-prefeito de Azulay, Yaku Pérez. A burguesia, que vem se diferenciando do governo Lenín Moreno, aposta suas fichas em Guillermo Lasso.
A grande rebelião popular do ano passado deixou uma senda de combate. Os movimentos populares estão organizados, seja no âmbito rural e indígena, seja no âmbito urbano. A derrota do modelo de Lenín Moreno terá efeito nas urnas, abrindo uma nova e interessante situação no Equador.
O Brasil tende a ter uma eleição menos previsível e menos definidora. Os impactos da crise econômica brutal que começa a ser sentida – nos altos índices de desemprego e na queda na renda – foram retardados com o programa de renda emergencial, já cortado pela metade. O final de ano espera novos conflitos com as condições de vida piorando num período sensível para a maior parte da população.
O ano de 2021, depois da eleição equatoriana, terá vários outros processos eleitorais na região. Além das já mencionadas eleições chilenas em abril e novembro, haverá eleições gerais no Peru em abril.
7) As tensões não serão dissipadas nas urnas
Podemos assinalar que é necessário se preparar para tensões que não serão resolvidas pelas urnas, ainda que o resultado das tendências políticas e eleitorais vá contribuir para definir a dinâmica geral do próximo período. A derrota eleitoral e o enfraquecimento da extrema-direita deve representar uma janela de oportunidades para reverter a defensiva em que se encontra hoje o conjunto do movimento de massas. Devemos afirmar, sem confiar nos atores políticos do establishment, que nossas forças sociais são capazes de derrotar a extrema e seus projetos reacionários.
Em dinâmica, pode-se dizer que a pandemia e o agravamento das condições de miséria devem levar a maiores choques e conflitos em toda linha, o que colocará a defesa dos direitos básicos na ordem do dia, com milhões lutando contra o desemprego e a fome. O papel do sistema de saúde, da pesquisa e da ciência será central, como parte da agenda de lutas e do programa.
Além disso, as condições para a construção de uma esquerda renovada e ciente de suas potências, limites e tarefas estão sendo reatualizadas. Novos fenômenos, como a ofensiva da contrarrevolução vista nas milícias racistas do oriente boliviano ou as novas gerações da KKK nos Estados Unidos, colocam novas tarefas para os ativistas, como a auto-organização protagonizada pelo movimento indígena na Bolívia, Equador e Chile e a rebelião negra nos Estados Unidos, para mencionarmos apenas alguns dos exemplos mais relevantes.
Nos últimos meses, o mundo conheceu processos de rebelião em múltiplos países, alguns já citados, mas também no Líbano, na Tailândia e na Nigéria. Na América Latina, houve protestos importantes em países como a Costa Rica, contra o pacote do FMI, e a Colômbia, contra o governo direitista de Iván Duque e a violência policial.
Nesse momento, de tensão e recomeço, há um espaço para organizar um debate programático que extraia a fundo as lições da etapa anterior; que aposte na auto-organização e na luta pela conquista de governos que rompam os regimes da democracia burguesa limitada; que prepare o confronto com a classe dominante; e que enfrente de forma altiva o verdadeiro furacão político em que o planeta apenas começa a ser tragado.
[1] Aqui se encaixariam o trumpismo e bolsonarismo a nosso ver.
[2] GRAMSCI apud NOGUEIRA. Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451998000100005
[3] ROBAINA, Roberto. Trump, o pensamento nazista e a necessidade de combatê-lo: o que isso tem a ver conosco? Revista Movimento, ano 5, n. 17, abr./jun. 2020, p. 8 – 16.
[4] ALVES, Luana. Luta antirracista brasileira e estadunidense: nossas tarefas no combate internacionalista ao racismo e ao neoliberalismo. Revista Movimento, ano 5, n. 17, abr./jun. 2020, p. 42 – 55.