A bancada negra de Porto Alegre e sua resistência política ao hino rio-grandense: um paralelo com a Marselhesa e o povo árabe

Bancada se recusou a se levantar e cantar o hino rio-grandense.

Gilvandro Antunes 4 jan 2021, 14:37

No dia primeiro de janeiro os vereadores eleitos por Porto Alegre tomaram posse na Câmara Municipal. Em um dos momentos da solenidade, a bancada negra de cinco vereadores e eleitos (termo que deveria ser vereadoras eleitas, pois são quatro mulheres entre os cinco), se recusou a levantar e cantar o hino rio-grandense. Esta postura de resistência política causou grande polêmica e polarizou ambos os lados. Uma parte, reivindicava a ação dos novos parlamentares. Outra, se sentia ofendida e, em muitos casos, procurou reparar-se de tais “ofensas” ofendendo em dobro. Algumas dessas ofensas podem ser tipificadas como injúria racial.

O centro da polêmica foi a parte que diz: “povo que não tem virtude, acaba por ser escravo”. Ora, sabe-se que em três séculos e meio de escravização negra no Brasil, cerca de 4,8 milhões de africanos e africanas vieram em condições brutais de desumanidade, acorrentados em navio negreiros através da costa atlântica da África à costa atlântica ao leste da América do Sul. Ainda que essa parte do hino não tenha sido pensada diretamente aos negros e sim à necessidade de resistência ao império brasileiro em tempos de guerra civil farroupilha (sim, guerra civil, não foi uma revolução. Mas isso é tema para outro debate), sabe-se que a escravização negra teve como componente discursivo, portanto legitimador, a desumanização do negro, o esvaziamento discursivo de suas virtudes, tanto culturais, econômicas e religiosas. Assim, a virtude era escravizar e a falta de virtude era ser escravizado. Não à toa, que senhores e senhoras de escravos são nomes de ruas, avenidas, prédios públicos, etc. neste país. Ao passo que em um Estado nacional onde mais da metade da população é negra, são poucos os homenageados com tal envergadura. “Povo que não tem virtude, acaba por ser escravo” não condiz mais com os estudos feitos pela historiografia, pela sociologia e pelo bom senso contemporâneos.

Mas porque tanta polêmica? Bem, primeiro porque os hinos nacionais ou regionais são partes de símbolos de identidades coletivas onde uma nação define seus traços visíveis que ela deseja demonstrar aos seus e aos outros. Assim é com sua bandeira, sua língua e sotaques (algo um pouco mais complexo que os demais), religião, etc. Estes símbolos, por sua vez, estão solidamente alicerçados em nossa cultura e são cultivados e cultuados de forma coletiva e individual e são transmitidos pelas gerações. Segundo, porque há uma zona de conforto do nosso ego que refuta informações mais complexas que nos fazem ter que refletir sobre nós mesmo de forma mais severa, nos gerando um conflito maior com o tão fiscalizador superego. Ou seja, podemos perder a empatia e a proteção social dos nossos pares e, em alguns casos, até do Estado. Terceiro, porque estes símbolos coletivos de unidade, incluindo o hino, não são decididos coletivamente e sim por membros da classe social dominante. Neste caso, homens brancos ricos de pensamento conservador. Para eles seu pensamento de nação deve ser abraçado por todos como se fosse uma unidade uniforme. Deve ser concebido como um patrimônio da nação, portanto, de todos. Mas a nação nunca foi de todos.

Vamos agora a questão da França, da guerra por independência argelina e o caso do ex-jogador seleção francesa e atacante do Real Madrid, Karim Benzema. Benzema gerou grande polêmica ao não cantar o hino francês durante os jogos da seleção. A deputada de direita Nadine Morano, conhecida por suas declarações por uma França branca, pediu sua exclusão permanente da seleção em 2015. Ok, mas porque Benzema, não cantava a Marselhesa, o hino mais aclamado do planeta, fruto de uma das revoluções mais importantes da história moderna ocidental, junto com a russa de 1917? Karim Benzema é filho de argelinos, país árabe africano que após quase 130 anos de dominação colonial francesa se libertou somente com uma guerra civil de 8 anos, de 1954 a 1962, que lhe custara 500 mil vidas. O jogador francês argumentava que o hino francês incita a guerra. Ademais, sabe-se que a Marselhesa era usada como instrumento psicológico da dominação francesa na África. Onde todos os dias, por mais de cem anos de dominação o hino francês era tocado nas escolas para dizer que: aquelas terras ao sul do Equador, no continente africano, não eram dos árabes ou dos senegaleses, ou dos marfinenses, etc., mas dos franceses. Na França, a Marselhesa é o símbolo da liberdade, nas colônias era o símbolo da dominação.

Bom, para muitos gaúchos, a guerra civil farroupilha é a sua Revolução Francesa não parida. Liberdade contra opressão, o povo contra o império, os novos tempos contra os velhos tempos, etc. Não obstante, para muitos negros e negras gaúchas, sobretudo jovens que tiveram acesso a uma educação mais crítica, a guerra civil farroupilha não era uma guerra entre o bem e o mal como se comemora todos os anos aqui no Rio Grande do Sul no mês de setembro. Senão, uma luta entre uma elite regional, com seus anseios legítimos, contra o poder central. E mais, a luta entre escravocratas com visões distintas de poder e desenvolvimento econômico.

Durante a guerra civil farroupilha, foi prometido aos negros combatentes sua liberdade ao final desta em troca de seu árduo combate ao lado das tropas de Bento Gonçalves. A parte dos negros foi rigorosamente cumprida. Mas a dos brancos estancieiros não. É conhecida entre nós gaúchos a Batalha de Porongos, onde o regimento conhecido como Lanceiros Negros foi traído em um acordo entre David Canabarro e Duque de Caxias e levado a um massacre cujo resultado foi a morte de cem combatentes desarmados e o julgamento em corte dos sobreviventes.

Desse modo, estamos do lado dos que não se sentem obrigados a cantar o hino rio-grandense na posse dos vereadores ou em outro lugar qualquer, dos que não cantam a Marselhesa em estádios de futebol. É fácil reivindicar um passado que nunca existiu para os vencedores ou hegemonistas. Difícil, porém necessário, é reconstruir o passado para mudar o presente. Afinal, a virtude não está no hino, mas na luta.

Para terminar, toda a pessoa que cantar o hino do Rio Grande do Sul será considerada racista? Óbvio que não, pois sabemos que a cultura não se altera por decreto, mas por um longo caminho onde o debate de ideias é fundamental. Agora, são traidores os que não cantam? Primeiro: traidores de que cara pálida? Segundo, a pior traição pode ser o silêncio.

Vamos à luta! Viemos para ficar! Vidas Negras Importam!


TV Movimento

Roberto Robaina entrevista Flávio Tavares sobre os 60 anos do golpe de 1º de abril

Entrevista de Roberto Robaina com o jornalista Flávio Tavares, preso e torturado pela ditadura militar brasileira, para a edição mensal da Revista Movimento

PL do UBER: regulamenta ou destrói os direitos trabalhistas?

DEBATE | O governo Lula apresentou uma proposta de regulamentação do trabalho de motorista de aplicativo que apresenta grandes retrocessos trabalhistas. Para aprofundar o debate, convidamos o Profº Ricardo Antunes, o Profº Souto Maior e as vereadoras do PSOL, Luana Alves e Mariana Conti

O PL da Uber é um ataque contra os trabalhadores!

O projeto de lei (PL) da Uber proposto pelo governo foi feito pelas empresas e não atende aos interesses dos trabalhadores de aplicativos. Contra os interesses das grandes plataformas, defendemos mais direitos e melhores salários!
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 28 abr 2024

Educação: fazer um, dois, três tsunamis

As lutas da educação nos Estados Unidos e na Argentina são exemplares para o enfrentamento internacional contra a extrema direita no Brasil e no mundo
Educação: fazer um, dois, três tsunamis
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 48
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Edição de março traz conteúdo inédito para marcar a memória da luta contra a repressão