Avançar, nos organizar e aquilombar: desafio na construção do trabalho racial no período de levante negro em curso

É preciso ampliar as fileiras do PSOL para a periferia e para o povo negro.

Um Terremoto Negro Sacode as Placas Tectônicas do Racismo no Mundo

“Eu não consigo respirar”, essa foi a frase dita por George Floyd, homem negro assassinado por policiais brancos com requintes de crueldade na cidade de Minneapolis, no dia 25 de maio, de 2020. As imagens desse assassinato rapidamente se espalharam pelas cidades do Estados Unidos e depois no mundo inteiro. De imediato, Minneapolis entrou em chamas, logo depois, dezenas de cidades norte-americanas entraram na mesma onda. Não se tratavam de protestos isolados. Mas de gigantescas mobilizações entoando gritos e segurando placas dizendo “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam) e “No Justice, no Peace” (Sem Justiça, Não Há Paz). Neste momento, o movimento negro estadunidense, o mais organizado e forte do mundo, daria a tônica do que viria a ser uma onda mundial de protestos. Mas por que houve mobilizações tão fortes e tão espalhadas pelo mundo?

O racismo é parte fundamental do sistema capitalista. Afinal, é com ele que o capitalismo divide suas classes sociais para além da objetividade do trabalho, ou seja, dá componentes classificatórios desumanizantes a milhões de trabalhadores e trabalhadoras; e é com ele que o capitalismo justifica um sistema político e econômico internacional desigual, onde cabe as nações brancas a dianteira e às nações não brancas, sobretudo negras, as posições caudatárias. Assim podemos dizer que no capitalismo sempre houve racismo e sempre houve luta antirracista. De outra parte, não há racismo sem violência. Em última análise, uma sociedade se define antes pela violência do que pelos seus pontos de unidade e de consenso.

Ocorre que a luta antirracista, como todas as outras, passa por fluxos e refluxos, determinados por um conjunto de fatores históricos e estruturais que definem o salto de qualidade de cada período de ascensão. As lutas das décadas de 1950 e 1960 lideradas por Martin Luther King, Malcolm X e o Black Panthers Party significaram um salto de qualidade que enterrou de vez com o racismo estabelecido no apartheid nos Estados Unidos. Lembremos que nos estados sulistas norte-americanos havia bairros, escolas, clubes, bares, etc. só para brancos ou só para negros. De lá pra cá, a luta negra nunca mais foi a mesma no mundo todo. No Brasil, em plena ditadura civil-militar de 1964, a luta do movimento negro foi extremamente significativa, sobretudo na década de 1970 onde, em 1978, no dia 07 de julho, uma grande manifestação nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo culminou na formação do Movimento Negro Unificado (MNU). Nesta ocasião, foi o assassinato, por policiais, do trabalhador negro Robson Silveira da Luz na zona Sul da capital paulista que serviu de estopim.

Na Europa, a luta antirracista possui um forte componente anticolonialista devido à dominação territorial por parte das principais potências econômicas na África. Todavia, por ter uma classe trabalhadora negra mais reduzida e composta por imigrantes. A luta antirracista europeia acaba ficando subsumida em outras pautas da esquerda, como a questão climática, por exemplo. Entretanto, não é possível afirmar que não há lutas. Ocorre que um negro no Brasil é um brasileiro, um negro nos Estados Unidos é norte-americano. Não obstante, na Europa, um negro sempre é considerado um africano. Sua cidadania sempre é posta em dúvida. O tempo todo.

Dessa forma, temos lutas antirracistas cotidianas espalhadas pelo mundo que foram alimentadas nas grandes etapas dessa mesma luta que proporcionaram saltos de qualidade que colocaram as mobilizações em outros patamares.

Bem, dito isso, é preciso analisar a luta negra de 2020, como um momento de acúmulo de forças onde diversos fatores históricos e estruturais potencializaram um novo e possível salto de qualidade. Entretanto, enquanto marxistas, temos que definir quais foram esse conjunto de fatores que culminaram na maior onda de protestos dos últimos 50 anos.

Crise Capitalista, Neofascismo, Saída pelo Ódio e a Luta Negra

A muito debatemos que o sistema capitalista tem esgotado cada vez mais sua capacidade de renovação. As chamadas crises cíclicas possuem intervalos cada vez menores e são mais duradouras. Não à toa, os níveis de salário e emprego não retomam os patamares da época de ouro do pós-guerra. Pelo contrário, a decomposição do nível de vida se acelera. Mesmo nos países subdesenvolvidos onde a industrialização e a expectativa de vida aumentaram, a miséria e a violência aumentaram também, alguns desses países, vivem assolados por sangrentas guerras civis. Assim, o sistema capitalista não pode mais oferecer o tão sonhado bem-estar que um dia chegaria a todos os países. Pelo contrário, para que as nações mais ricas e seu 1% de bilionários sigam dominando é preciso mais guerras e mais espoliação. Dados do ACNUR (agência para refugiados da OUN) estima que o mundo vive a maior crise humanitária desde a segunda guerra mundial. Dessa forma, ainda que se mantenha dominante, o discurso neoliberal burguês se desgasta. Infelizmente, esse discurso não se desgasta só em prol da esquerda. Mas também para grupos fascistas que veem na violência étnico-racial, bem como xenofóbica, uma saída para a crise do capitalismo. Na Europa e nos EUA, crescem os discursos de ódio contra os imigrantes. No Brasil, país racista que até pouco tempo negava sê-lo, o discurso de ódio se mostra sem carapuças. Para esses grupos, a única saída possível só pode ser o ódio e a violência. De modo que a culpa da crise é da vítima.

Todavia, esse discurso encontra seu oposto nas mulheres, nos jovens, na negritude e mesmo em homens brancos que sabem que a saída da crise não é a segregação. Mas a união do povo trabalhador contra o 1% que acumula riqueza às custas da pobreza de bilhões de pessoas. A derrota de Donald Trump não se explica senão pelo conflito entre o discurso do ódio e o ascenso da luta negra. A luta do Black Lives Matter quebrou o tom de normalidade eleitoral dos Estados Unidos. Afinal, um mês antes do início da corrida presidencial as cidades estavam em chamas e onde o presidente era a gasolina do ódio racista. Trump convocou as milícias racistas a defenderem a ordem e o movimento negro não recuou, foi até às portas da Casa Branca. O próprio discurso conciliador de Joe Biden foi o reconhecimento de que as coisas não poderiam voltar ao que eram antes, pois ali havia um salto histórico de qualidade.

Não é possível afirmar que o discurso do ódio e o neoliberalismo foram derrotados, pelo contrário, o ódio aos negros, aos imigrantes, às mulheres que se impõem aumentará. Mas o medo, que é o que eles querem não aumentará, pois milhões de pessoas estão dispostas a sair às ruas, mesmo com a pandemia e os cuidados que isto requer, para dizer fascistas, racistas, machistas não passarão.

O Brasil de Bolsonaro e a Luta Negra

O Brasil não ficou imune ao discurso de ódio e à ascensão de uma extrema direita. Aqui, a tônica também foi o moralismo ideológico, onde os problemas do país como corrupção, violência e desemprego foram tratados como questões a serem enfrentadas por um governo “forte” que age acima de todos, sobretudo do povo. Para isso, Bolsonaro não mediu esforços, tratou de aliar suas palavras de ódio contra negros, mulheres, homossexuais, sindicalistas, ativistas do meio ambiente, etc. com uma agenda neoliberal levada por seu banqueiro Paulo Guedes. Enquanto ataca os trabalhadores e as trabalhadoras, por outro lado, o presidente proto-fascista não mede esforços para livrar seu filho da cadeia.

Para piorar, o desempenho deste governo quanto ao combate à pandemia é uma catástrofe humanitária, até agora, são quase 220 mil mortos e a campanha de vacinação, na qual muitos países estão em fase adiantada, é simplesmente boicotada pelo chefe do executivo federal.

Felizmente, os movimentos sociais estão respondendo aos ataques. Ainda nas eleições o movimento feminista saiu às ruas liderando as mobilizações do “Ele Não”, em 2019, foi a vez dos estudantes tomarem às ruas contra os ataques às universidades públicas. Em 2020, em que pese a pandemia, a luta foi protagonizada pelas mobilizações antifascistas que se mobilizaram em torno de dar respostas às mobilizações isoladas de setores bolsonaristas contrários às regras de isolamento social.

Neste mesmo contexto de 2020, a luta negra no Brasil eclode junto com as mobilizações iniciadas em Minneapolis. A luta contra o genocídio da juventude negra tomou às ruas de várias capitais e cidades médias do país. Em cada mobilização. Fotos e nomes de vítimas da violência policial como a menina Agatha, assassinada por uma ação da PM/RJ na comunidade da Fazendinha; menino João Pedro, assassinado por PMs em São Gonçalo; as nove vítimas jovens de Paraisópolis, em São Paulo; menino Miguel Otávio, morto por racismo estrutural na forma de negligência em Recife, engenheiro Gustavo Amaral, assassinado no Rio Grande do Sul ao ter seu celular confundido com uma arma por um policial, etc. Em todos esses casos, cartazes com “Vidas Negras Importam”, “Parem de Nos Matar” foram erguidos. No final do ano, em uma loja do Carrefour de Porto Alegre, o cidadão negro Beto Freitas foi brutalmente assassinado por seguranças. Mais uma vez o movimento negro deu sua resposta. Em todas essas mobilizações negras, a militância do MES esteve presente, seja na sua militância orgânica seja através do Juntos Negros e Negras.

Aqui no Brasil, é possível afirmar que a luta negra deu um salto de qualidade. Não só pelas mobilizações iniciadas em Minneapolis. Mas por todo o acúmulo dos últimos anos que culminaram com o acompanhamento ativo do levante negro de 2020. Ainda que este levante não tenha sido diretamente contra o Bolsonaro e, portanto, não tenha tido como eixo o Fora Bolsonaro, inegavelmente atuou como forte oposição ao que este governo representa, que é justamente uma apologia à violência policial, apoiada por governadores de direita e por uma parcela racista e fascista da sociedade. Nesse sentido, a luta negra é uma luta democrática e antirracista contra o fascismo.

Eleições Municipais e o Avanço da Representatividade Negra

O aumento da representatividade negra de esquerda é fruto do salto de qualidade a que nos referimos. A luta politica ocorre por saltos que estão diretamente ligados a dinâmica da luta social em curso.

Em se tratando de PSOL, a luta negra antirracista resultou no crescimento da bancada. Em São Paulo, temos como representantes na Câmara Municipal a Luana Alves, Érika Hilton, Eliane do Quilombo Periférico. Em Porto Alegre, Karen Santos e Matheus Gomes. Em Fortaleza, Adriana do Nossa Cara. Em Recife, Dani Portela. Em Salvador, Laina, do mandato coletivo Pretas por Salvador. Em Belo Horizonte, Iza Lourenço. No Rio de Janeiro, Thaís Ferreira. Em São Gonçalo, Professor Josemar. Em Vitória, Camila Valadão. Em Belém, Lívia Duarte e Vivi Reis (Deputada Federal). Esses números, demonstram a potencialidade eleitoral da negritude dentro do PSOL. Soma-se a isso, a importância de Márcio Chagas, ex-árbitro de futebol no Rio Grande do Sul, ativista antirracista que teve um papel fundamental na chapa junto com a Fernanda Melchionna à prefeitura de Porto Alegre.

O desafio central dos mandatos Negros do PSOL é combinar a luta racial aos preceitos históricos da classe trabalhadora. Precisamos construir um polo dinâmica no parlamento que tenha na utopia socialista sua estratégia e a mobilização e organização permanente como tática superior de nossas ações.

Por Um Movimento Negro Socialista e Revolucionário

A luta do movimento negro, como dissemos, é uma luta democrática antirracista e antifascista dada atual conjuntura. Sendo assim, ele é amplo, com diversas palavras de ordem, táticas e visões. Isso é muito importante, pois lutas democráticas devem ter seu leque ampliado o máximo possível.

Todavia, a posição dos socialistas e revolucionários dentro de uma luta democrática não pode ser confundida. Os revolucionários devem ser os primeiros a reivindicar a amplitude tática das mobilizações, como abordamos anteriormente. Afinal, não queremos estar sozinhos com a nossa verdade, não somos uma seita. Trabalhamos efetivamente por um partido de massas. Mas ao mesmo tempo, não nos diluímos como se a luta democrática tivesse um fim em si. Em nossa estratégia, a democracia é um valor inalienável. Entretanto, defendemos a democracia operária e camponesa, que englobe a juventude, as mulheres, os homossexuais e todos que são pisoteados pelo regime capitalista.

Não se trata aqui de reivindicar um socialismo negro. Somos socialistas. Mas é preciso termos uma coluna negra forte e obstinada que lute pelo fim do capitalismo. É preciso uma direção negra consciente de suas tarefas revolucionárias que possa atuar no movimento de massas sem sectarismo e sem oportunismo.

Para isso, é preciso combater a visão liberal de movimento negro que atua como se o crescimento da posição social de negros e negras seja um objetivo em si. Esse é o movimento negro defendido pelos meios de comunicação, por exemplo. Para não haver confusão interpretativa do que estamos dizendo, cabe frisar que queremos e lutamos por mais jovens negros nas universidades, em postos de comando de empresas, nos serviços públicos de visibilidade, etc. Lutamos pelo aumento da renda das famílias negras dentro da economia nacional. No entanto, fazemos oposição a uma visão liberal que deixa 99% dos negros e negras para trás. De modo que não lutamos para que alguns busquem um lugar ao sol em uma sociedade excludente. Mas que o sol seja um lugar para todos. Essa, talvez, possa ser uma polêmica dentro do PSOL, ainda que com um viés de esquerda.

Nossas Tarefas Imediatas

Este texto teve a preocupação de traçar um caminho da análise e da caracterização da conjuntura. Onde definimos que, no marco da luta se que se trava diante da crise do capitalismo e da ascensão de posições neofascistas, a luta negra deu respostas de mobilização em nível mundial nunca vistas desde as mobilizações pelos direitos civis da década de 1960 e que isto significou um salto de qualidade, onde no Brasil teve reflexo direto no crescimento de uma bancada negra combativa, com destaque para o PSOL.

O racismo é internacional e luta contra ele também. Precisamos construir laços internacionais com movimentos e organizações negras de todo o mundo. Militância internacionalista ativa é um ponto de partida pétreo. Construção de atividades e redes de solidariedade comuns são exemplificação do que estamos abordando.

Enquanto, marxistas revolucionários negros no Brasil, nosso primeiro objetivo que temos é de perseguir constantemente autoorganização dos nossos frente a sociedade capitalista que nos oprime e nos explora. Para isso é necessário construir espaços de formação, acolhimento e reflexão. Enegrecer nossas pautas e apresentar um olhar racializado para a nossa atuação é fundamental. Como dizia Marighella, “a revolução socialista no Brasil será negra ou não acontecerá”. Não podemos perder a dimensão de que os negros e negras são maioria no Brasil, logo todas as pautas nos competem.

Do ponto de vista politico, também não podemos esquecer a necessidade urgente de enfrentamento contra Bolsonaro e seu projeto racista e genocida. Falar de negritude sem colocar “Fora Bolsonaro” como tarefa imediata, é cair no diletantismo. E não entender a natureza de protofascista deste governo. Construir frente únicas com diversos setores, sem perder a dimensão estratégica é fundamental.

Não temos nada a perder, porque historicamente tudo nos foi negado. É preciso construir um polo dirigente dinâmico que conduza todas as pautas que nos envolve. É preciso ampliar as fileiras do PSOL para a periferia e para o povo negro. Com disciplina militante e compreensão justa das tarefas avançaremos.


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Pedro Micussi