Cerrado: o berço das águas e a luta pela vida
Você conseguiria pensar em algo mais precioso que a água? Foi a água que possibilitou a vida e é ela quem a mantém. Sem ela não plantamos, as árvores morrem, os rios secam. Os animais morrem de sede e, por incrível que pareça, também somos animais. Um bem preciosíssimo. Infelizmente, entre água e capital, os poderosos escolhem o capital.
É preciso lembrar que a água não é uma invenção humana, não a criamos e agora ela faz parte do nosso cotidiano. Ela é o que fundamenta a vida no planeta. É impossível pensar em qualquer forma de sobrevivência que não envolva o uso da água. Dado o tratamento adequado, podemos usufruir de várias fontes como geleiras, rios, mares. Não é só para o uso direto, como tomar um banho ou um copo de água, que precisamos dela. A água é necessária para a pesca, a agricultura que põe a comida na mesa, o lazer, a flor que nasce no jardim, a fruta do café da manhã, o café coado.
É importante pensar no trajeto dos rios, nas suas histórias, nas vidas e sabedorias que os cercam, seus encontros e desencontros. É algo rico e cheio de beleza. Os rios desembocam no mar, nesse caminho criam culturas, modelam paisagens, carregam a vida e interagem com ela. Para cruzar essa longa jornada e encontrar seu fim, precisam nascer em algum lugar.
As nascentes são a nossa principal fonte natural de água potável. Água cristalina, cheia de vida para oferecer. É no Cerrado que encontramos grande parte das nascentes que alimentam nosso território. Ele é o segundo maior bioma do país, ocupa 24% do nosso território e oito das doze principais regiões hidrográficas do país dependem do bioma.
‘ a bacia Amazônica (rios Xingu, Madeira e Trombetas); a do Rio Tocantins-Araguaia (rios Araguaia e Tocantins); a Atlântico Nordeste Oriental (Rio Itapecuru); na Bacia do Parnaíba (rios Parnaíba, Poti e Longá); na do São Francisco (rios São Francisco, Pará, Paraopeba, das Velhas, Jequitaí, Paracatu, Urucuia, Carinhanha, Corrente e Grande); na do Atlântico Leste (rios Pardo e Jequitinhonha); na Bacia do Paraná (rios Paranaíba, Grande, Sucuriú, Verde e Pardo); na do Paraguai (rios Cuiabá, São Lourenço, Taquari e Aquidauana)’ [1].
Não podemos nos esquecer da região das Águas Emendadas no DF, importante para o abastecimento dos rios Tocantins e Paraná , fundamentais para a manutenção da nossa matriz energética. Outro rio que depende do Cerrado e é importantíssimo para nosso abastecimento de energia é o São Francisco.
Sua importância vai além das águas superficiais, três dos mais importantes aquíferos do país se encontram total ou parcialmente no bioma: Bambuí, Urucuia e Guarani. Sendo este último o segundo maior aquífero conhecido do mundo[1] e o maior transfronteiriço; cruzando Brasil, Paraguai, Uruguai e Argentina[2]. Além disso, o pantanal, maior planície de inundação do mundo, é extremamente dependente dos ciclos hidrológicos do Cerado.
A dinâmica de funcionamento das águas é complexa e a manutenção do ciclo hidrológico depende de inúmeros fatores ambientais. As águas são vivas, ao mesmo tempo que possibilitam nossa vida, precisam da vida para sobreviver. As matas ciliares, a dinâmica relacional entre a fauna e flora, tudo influencia sua preservação. As comunidades indígenas buscam demarcar os territórios envolvendo as nascentes pois compreendem a sua importância e a de sua manutenção.
Entretanto, a lógica, antropocêntrica e capitalista, dominante em nossa sociedade não opera para a manutenção da vida e sim para a manutenção do lucro. O Cerrado, segunda maior região biogeográfica da América do Sul e formação savânica mais biodiversa do planeta [3], já teve cerca de 50% do seu território desmatado e vem sofrendo cada vez mais com a expansão das fronteiras do agronegócio, em especial a agropecuária. Cerca de 60% da produção agrícola brasileira vem do Cerrado[1] e de acordo com o MapBiomas 43,7% do bioma é utilizado para atividades relacionadas à agropecuária, como pastagens e plantação de soja[4].
Ter metade do segundo maior bioma do país sendo utilizado para a manutenção do agronegócio é absurdo. Espero que isso seja um consenso entre os ambientalistas, assim como deveria ser entre os socialistas. Essa dinâmica de funcionamento é insustentável seja do ponto de vista ambiental, econômico ou social – até porque todos estão intrinsecamente relacionados.
Os órgãos de monitoramento medem a porcentagem de expansão do agronegócio, que cresceu 12,3% entre 2019 e 2020 no Cerrado[4]. Não existe retração. Enquanto ele se expande, o bioma é destruído. A região de Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia) é a que mais vem sofrendo com a expansão das fronteiras agrícolas. Ela abriga 46 unidades de conservação, 35 Territórios Indígenas, 781 assentamentos de reforma agrária[5] e correspondeu a 62% da área afetada pela expansão agrícola em 2019[6].
O agronegócio mata os povos tradicionais e suas culturas, os animais, as plantas, as águas. A monocultura em larga escala é regada de veneno, tivemos 493 agrotóxicos liberados só em 2020[7], é a principal responsável pelo desmatamento do Bioma e pela alta concentração de terras nas mãos da burguesia.
A lógica da produção latifundiária é insustentável, a terra é usada de maneira completamente inconsequente até seu esgotamento. À medida que os níveis de produção vão baixando é preciso expandir para áreas onde o solo ainda possui nutrientes. Muitas vezes aproveitam o período de queimadas naturais do bioma para ‘mascarar’ incêndios criminosos. Esse oportunismo individualista faz parte da formação do pensamento burguês.
Em 2020, tivemos o maior número de áreas queimadas no Distrito Federal desde 2012, com 18,6 mil hectares até o mês de setembro[8]. No bioma inteiro foram mais de 21 mil focos de queimadas[9]. De acordo com o sistema ALARMES, do LASA-UFRJ, tivemos mais de 3 milhões de hectares -maior que o estado de Alagoas- queimados dentro de regiões de preservação. Os Territórios Indígenas são os que mais sofrem com esses ataques, das 10 áreas que mais queimaram 7 são TIs[10].
Os povos têm seus territórios e modos de vida ameaçados e a perda de nossa fauna e flora ocorre a olhos vistos. A TI parque do Araguaia teve 483 mil hectares (36% do território) afetados por incêndios e, ao lado, o Parque do Araguaia teve 171 mil (31%). Os Xavantes do TI Parabubure viram 72% do seu território queimar em 2020, cerca de 163 mil hectares atingidos[10].
Não existe nenhum interesse por parte dos latifundiários de aliar seu crescimento econômico com modos de vida sustentáveis. A bancada ruralista do congresso nacional e o governo federal são exemplos bem claros do projeto de destruição ambiental capitalista. O interesse é a expansão e geração de lucro, dinâmica que prejudica a qualidade de vida da população local e ainda agrava as já precárias condições ambientais.
No ano passado, quando as queimadas no Pantanal e Amazônia chocaram o país, o ministro do Meio Ambiente chegou a mandar interromper o serviço dos brigadistas alegando ‘falta de recursos’[11]. Em 2019 ele deixou de executar 28% do total disponibilizado para a pasta[12]. Em pleno processo de desmonte, o ICMBio teve suas 11 coordenações regionais fechadas e o que resta do instituto fica nas mãos de militares. Por sua vez, o IBAMA teve 21 dos 27 superintendes exonerados já no começo da gestão Salles e terá um déficit de 2.821 funcionários em 2021, possuindo mais cargos vagos que ocupados.[13].
Enquanto isso, os povos originários e tradicionais, que compreendem as dinâmicas de funcionamento do ambiente e buscam interagir com o meio de forma harmônica, seguem na luta pela sobrevivência. A diversidade de povos que vivem no Cerrado é algo maravilhoso, são eles que buscam manter a vida no bioma. Seus territórios ajudam a formar corredores -indispensáveis- entre áreas de preservação. Temos agricultores familiares e comunidades tradicionais, como quebradeiras de coco babaçu, quilombolas -44 territórios-, geraizeiros, comunidades vazanteiras, indígenas -83 etnias e 216 TIs- [14].
A guerra injusta e desleal entre o agronegócio e esses povos não é nenhuma novidade no cenário nacional e tampouco deixou de fazer parte dele nos governos progressistas. Entretanto, o que antes era necessário ser feito debaixo dos panos agora é explicitamente encorajado pelo governo federal. O mundo pode ter aberto os olhos para a Amazônia e agora luta pela sua preservação, mas a atenção para o Cerrado ainda é extremamente precária, não só internacional como nacionalmente.
Essa invisibilidade é uma das grandes ameaças para o bioma. O Estado e a burguesia atiram para todos os lados, mas a resistência geral está muito mais presente na defesa de outros espaços. As fronteiras agrícolas e a monocultura se aproveitam ao máximo da situação para passarem a boiada por aqui. Não sobreviveremos com a preservação ilhada de matas, o funcionamento do ecossistema precisa de integração.
Não podemos nos esquecer de algo tão essencial como o Cerrado. Seu papel é indispensável na manutenção da nossa matriz energética, abriga diversas culturas riquíssimas, possui uma fauna e flora extremamente diversificadas e com espécies endêmicas da região, cachoeiras maravilhosas e é o grande responsável pelo abastecimento de água e manutenção da vida no país. A defesa do Cerrado é fundamental para a defesa da vida.
Referências:
[1] Berço das Águas – ISPN
[2] Hidrografia
[3] Projeto Monitoramento do Cerrado – FIP FM Cerrado
[4] Desmatamento no Cerrado volta a crescer em 2020
[6] Desmatamento no Cerrado se concentrou no Matopiba
[7] Número de agrotóxicos registrados em 2020 é o mais alto da série histórica
[8] DF tem terceiro recorde de queimadas em uma década
[9] Avanço do desmatamento: Cerrado tem mais de 21 mil focos de queimadas
[10] Mais de 3 milhões de hectares já queimaram em áreas protegidas no Cerrado em 2020
[11] Brigadistas estão desde setembro sem receber diárias para pagar alimentação e estadia
[12] MP pede ao TCU que analise impacto de ‘baixa’ execução orçamentária na área ambiental
[13] Como o desmonte de órgãos ambientais tem relação direta com o fogo nas florestas
[14] Povos e Comunidades Tradicionais do Cerrado – ISPN