A negação do racismo e o mito da democracia racial

Até quando teremos que lutar para que os assassinatos sistemáticos de negros nas mãos da polícia acabem? O racismo brasileiro está impregnado em todos os tecidos da sociedade.

Danilo Serafim 26 abr 2021, 16:31

“O conceito de raça é um dos mais difíceis de definir cientificamente. Se admitirmos, como a maioria dos especialistas posteriores a Darwin, que a espécie humana pertence a um único tronco, a teoria das “raças” só pode ser desenvolvida cientificamente dentro do contexto do evolucionismo” J.Ki-Zerbo (Teorias relativas às “raças” e história da África)

Em História Geral da África, “África do Século XIX À Década de 1880”, Serg Daget (Especialista em história do tráfico de escravos africanos século XIX, professor de história na Universidade de Nantes, falecido em 1992) faz o seguinte registro: “Nunca a participação africana nesse tráfico foi geral. Certos povos do interior o ignoravam. Sociedades costeiras destruíam os navios e saqueavam os equipamentos dos navios negreiros. Para outras, o tráfico agitava as estruturas socioeconômicas e políticas. Outras ainda se fortaleciam com uma gestão autoritária e exclusiva do sistema. Então, os interesses negros e brancos coincidiam num tráfico florescente. Produtores e distribuidores africanos de mão de obra exportável prosperavam graças a este ramo da economia e ao comércio exterior da costa. Durante o século XVIII, foram comercializados cerca de 7 milhões de indivíduos contra 300 milhões de piastras (libras) em mercadorias específicas no “comércio da Guiné”, das quais talvez 80 milhões em armas de fogo. No mesmo período, o tráfico transaariano deportava mais de 700.000 pessoas, e o comércio pelo Oceano Índico ao redor de 200.000. Na outra extremidade da travessia atlântica, os negociantes negreiros trocavam os 6 milhões de africanos sobreviventes – 40% de mulheres e crianças – pelo produto do trabalho dos escravos, que era vendido cada vez melhor do lado europeu do oceano. Lá, entretanto, alguns intelectuais cujas sensibilidades e moral se chocavam com tais práticas condenavam o consumo de açúcar tingido de sangue dos “esquecidos de todo o universo”. Eles clamavam pela abolição do tráfico”.   

Para Serg Daget, “A ideologia abolicionista não é de inspiração africana. Ela visava todos os meios negreiros e escravagistas do mundo atlântico antes de se interessar pelos efeitos dos tráficos transaariano ou árabe. Suas manifestações provinham de uma filosofia moral, cujo poder de mobilização real era muito fraco. Entretanto, depois de meio século, as bandeiras das forças antinegreiras e da “civilização” da África serviram de pretexto oficial às pressões ocidentais cada vez mais fortes no litoral Oeste africano. Por volta de 1860, o Ocidente instalou em definitivo uma presença até então pontual, subordinada, às vezes proibida. O Norte e o leste da África conheceram situações quase semelhantes, a partir de 1830 até o fim do século”.       

O ímpeto abolicionista do Ocidente

De acordo com Serg Daget, “Ao longo do século XVIII, apurando a definição do direito universal ao bem-estar e à liberdade, antropólogos, filósofos e teólogos voltaram-se para o caso do africano e de sua condição de mundo. Sua reflexão levou-os a modificar as noções ordinariamente admitidas até então sobre o negro da África e o escravo americano: de bruto e animal de carga, eles transformaram-no em um ser moral e social. Sua fórmula, “o negro é um homem”, recusava implicitamente o consenso sobre a honradez, a legitimidade e a utilidade da venda de negros. Suas análises humanitaristas desembocaram na exigência abolicionista. Seu balanço do tráfico era inteiramente negativo”.

Serg Daget afirma que: “O tráfico manchava de sangue os Estados que o encorajavam ou subsidiavam. Matava dezenas de milhares de brancos e centena de milhares de negros. Retirava de sua terra produtores-consumidores que, reduzidos à escravidão americana, não representavam mais nada. Impediu a diversificação da atividade comercial na costa. Perpetrou a barbárie no continente negro – opinião que tinha como base unicamente as observações dos ocidentais dotados de um “saber” sobre a África, os negreiros. Ao denunciar um flagelo, o abolicionista não pretendia converter imediatamente traficantes negros ou escravagistas brancos. Propôs um programa de regeneração da África através da cristianização, da civilização, do comércio natural e fixou etapas racionais para sua execução: reverter a opinião pública do mundo cristão; levar os governos “civilizados” a tomar posições oficiais; abolir legalmente o tráfico no Atlântico”.

Segundo Serg Daget, “Na França, a Grande Enciclopédia e a obra do abade Raynal, revista por Diderot, ensinou aos burgueses revolucionários a aversão à escravatura. Esta corrente de ideias nobres e profanas apoiava indiretamente o ideal da Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros, que teria sido financiada pela Inglaterra. Os revolucionários não sentiam nem a realidade negreira nem a necessidade de levar a opinião pública a apoiar sua nova ideologia. Pelo contrário, na Inglaterra, a sensibilização do povo para a filantropia se fazia pela explicação teológica que brotava de uma profunda renovação evangélica. Após terem proibido o comércio de escravos entre eles, os quacres americanos persuadiram os quacres britânicos a juntarem-se ao movimento abolicionista inglês. Ao mesmo tempo, uma campanha intensa tinha sido realizada nos meios políticos. Vanguarda e porta-voz destas forças conjuntas, a Seita de Claphan levava anualmente suas reivindicações à Câmara dos Comuns por intermédio de William Wilberforce. O combate contra os numerosos obstáculos acumulados pelos escravagistas e pelos negreiros durou vinte anos. Aos 25 de março de 1807, a Inglaterra aboliu o tráfico. Foi a segunda abolição oficial, depois da Dinamarca em 1802. Os Estados Unidos generalizaram as decisões dos quacres em 1808. Essa defesa dos interesses humanitários pelos poderes políticos tinha tido por campeã a GrãBretanha, nação cujos negreiros haviam importado cerca de 1.600.000 africanos em suas colônias americanas ao longo do século precedente.         

Segundo Eric Willians (Capitalismo & Escravidão), “ a abolição servia poderosamente aos interesses econômicos da Inglaterra industrial nascente. Com certeza, esta abordagem fértil não negava inteiramente o papel da filosofia moral nem o de um humanitarismo ideal e triunfante. Mas fez parecer severas contradições entre o pensamento teórico e a realidade prática: entre os principais dirigentes do movimento abolicionista figuravam numerosos  banqueiros (o caso vale também para a Sociedade Francesa dos Amigos dos Negros) , ou seja, a abolição do tráfico servia aos interesses do capital.  Mais tarde, as ideias teóricas revelar-se-iam impotentes para dominar o fluxo bem real de escravos para explorações escravagistas em pleno desenvolvimento, em Cuba e no Brasil; e as forças ditas humanitárias não conseguiram dominar a equalização dos direitos sobre o açúcar, cuja consequência  eventual, numa época em que a mecanização das plantações estava ainda bem longe de ser efetuada , seria o aumento da demanda de mão de obra negra.

Daget afirma que “Proposições de abolição coletiva, lançadas pela Inglaterra em 1787, depois em 1807, haviam fracassado. Em 1810 Portugal fez vagas promessas em trocas de aberturas para o mercado britânico. Um mundo desmoronou com o fim das guerras napoleônicas. A paz de 1815 devolveu o Mediterrâneo, o Oceano Índico e o Atlântico ao comércio marítimo, e os reabriu ao tráfico negreiro. No Congresso de Viena, buscando a condenação explícita do tráfico, a diplomacia inglesa obteve uma declaração platônica e temporizadora, retomada em Verona. A partir de 1841, esta aparência de moral abolicionista oficial autorizou daí por diante todas as estratégias combinadas do Foreign Office e do Almirantado nos negócios negreiros mundiais. Em três pontos, Londres propôs as nações um procedimento pretensamente radical contra tráfico internacional: legislações internas proibindo o tráfico negreiro aos nacionais; tratados bilaterais conferindo às marinhas de guerra o direito recíproco de visitar e prender no mar os navios de comércio de cada nação contratante pega no tráfico ilegal; e colaboração nas comissões mistas habilitadas a condenar os negreiros presos e a libertar os negros encontrados a bordo. Esse projeto agradou a um público de perfil liberal ou filantrópico. Por outro lado nenhuma economia nacional podia negligenciar a clientela ou as fabricações inglesas. Para os governos novos ou em dificuldade que buscavam a aprovação ou a passividade de Londres, um gesto de cooperação. Inversamente, o projeto inglês só podia suscitar a resistência dos interesses que a supressão do tráfico pela força lesaria.         

Portugal, Espanha, Estados Unidos e França consumiam e distribuíam algodão, açúcar, café e tabaco de produção escravista ligada à importação de africanos no Brasil, em Cuba, nos Estados do Sul dos Estados Unidos e nas Antilhas. Diretamente envolvido, o empreendedor marítimo drenava os investimentos e oferecia emprego aos pequenos setores econômicos locais que tiravam proveito do tráfico.

De acordo com Daget, “sempre escravagistas nas colônias menores, a Dinamarca, a Holanda e a Suécia, subscreveram à repressão recíproca. Substancialmente indenizados, Portugal e Espanha aceitaram-na em 1817. Mas Portugal conservou um tráfico essencialmente lícito no Sul do Equador, que não se atenuaria senão em 1842, sob ameaça de severas sanções militares inglesas. A Espanha reforçou sua legislação antinegreira e suas convenções com Londres; mas Cuba continuou o tráfico até 1866, ano da terceira lei abolicionista espanhola: Cortes Gerais, o Conselho de Estado e a Tesouraria cederam à chantagem para a fidelidade ou para secessão dos plantadores da Ilha. A chantagem dos ingleses para o reconhecimento jurídico do Brasil obrigou o novo império ao tratado repressivo de 1826. Mas o tráfico brasileiro cresceu até 1850. No ano seguinte, ele cessou, mas somente por que a Royal Navy violou as águas territoriais do Brasil para purga-las dos negreiros: o café dependia do mercado britânico; os fazendeiros se arruinaram para reembolsar suas dívidas aos mercadores de escravos; e a população temia um superpovoamento negro. Entre 1815 e 1830, o tráfico ilegal francês mobilizou 729 expedições negreiras para as costas Oeste e Leste da África. Mas quando se tornou evidente que tais operações não constavam mais do balanço social e financeiro dos portos, o governo assinou uma convenção recíproca. Outra razão foi o fato de a monarquia oriunda da revolução de 1830 ter tido interesse em se reconciliar com a Inglaterra. Esta mudança de atitude levou à adesão de muitos pequenos Estados às convenções de 1831-1833”.

Daget afirma que, “a Grã Bretanha aproveitou-se para renovar suas tentativas de internacionalização. Estendeu a repressão naval a todo Atlântico e ao Oceano Índico. Uma cláusula de “equipamento” permitiu a captura de navios manifestamente armados para o tráfico, mesmo vazios de carregamentos humanos. Os negreiros dos Estados Unidos permaneceram invulneráveis. Durante quarenta anos, a diplomacia norte-americana escapou de qualquer compromisso sério. Em 1820, o tráfico foi legalmente assimilado à pirataria; em 1842, acrescentou-se o compromisso da “verificação do pavilhão”, que preservou os norte-americanos da repressão inglesa; cruzeiros repressivos de “80 canhões” salvaguardaram a dignidade nacional, embora fossem medidas formais. Nos anos 1840, os plantadores sulistas reclamaram a reabertura legal do tráfico. Todavia, tomaram suas próprias medidas ao criarem escravos para venda interna em ranchos especializados. Durante a Guerra Civil, a Administração Lincoln admitiu o direito de visita, foi suspenso desde 1820. Cessou então o tráfico norte-americano”. Assim, durante meio século, a multidão dos textos acumulados provou sobretudo a inanidade dos compromissos assumidos. Nesta avalanche verbal, a África e os africanos são muito raramente mencionados, como se não existissem. O tráfico ilegal era proveitoso aos empreendedores marítimos, cujos benefícios eram mais importantes do que na época do tráfico legal e protegido. As explorações escravagistas estocavam mão de obra.

Os plantadores resistiam à abolição por razões diferentes. Impermeável às ideias difundidas pelos organismos abolicionistas, sua psicologia apela invariavelmente aos estereótipos raciais e aos postulados civilizadores. A abolição não ajudaria “a raça escrava e embrutecida a sair de sua sorte. O prestígio social ligado à posse de escravos e os hábitos demográficos ligados à ausência de imigração branca contribuíram para a justificação do sistema. A resistência se explicou sobretudo pela contradição percebida entre o crescimento da demanda ocidental em produtos do trabalho dos escravos e a interdição ocidental de importar escravos julgados indispensáveis para aumentar a oferta destes produtos. A exportação de café brasileiro decuplicou entre 1817 e 1835, triplicou de novo até 1850.  A exportação de açúcar cubano quadriplicou entre 1830 e 1864. Em 1846, as medidas inglesas de livre comércio pareciam atribuir uma preferência à produção escravagista, uniformizando os direitos de entrada dos diversos açucares no mercado britânico. Os historiadores não chegaram a um acordo quanto à incidência dessa iniciativa no recrudescimento do tráfico negreiro. Mas em Cuba, onde o tráfico estava regredindo, a importação dos negros novos (bozales) ultrapassou em 67%, nos anos 1851-1860, a dos anos, 1821-1830. Durante os cinco anos de uniformização dos direitos na Inglaterra, a introdução dos negros no Brasil aumentou 84% com relação aos cinco anos precedentes, 1841-1845. Além disso, o explorador americano rentabilizava a importação de mão de obra nova enquanto seu preço de compra era inferior a 600 dólares por cabeça. Isto até 1860.                                    

Luiz Felipe de Alencastro em seu clássico “O trato dos Viventes – Formação do Brasil no Atlântico Sul”, faz a seguinte caracterização: “A colonização portuguesa, fundada no escravismo, deu lugar a um espaço econômico e social bipolar, englobando uma zona de produção escravista situada no litoral da América do Sul e uma zona de reprodução de escravos centrada em Angola. Desde o final do século XVI, surge um espaço aterritorial, um arquipélago lusófono composto de enclaves da América portuguesa e das feitorias de angola. É daí que emerge o Brasil do século XVIII”.

Para Thomas Piketty, em Capital e Ideologia, “diferentemente do Sul dos Estados Unidos, onde o número de escravos havia saltado de 1 milhão para 4 milhões entre 1800 e 1860, o Brasil não teve um crescimento da população servil no século XIX. O país já contava cerca de 1,5 milhão de escravos em 1800, e esse número aumentou pouco até a abolição em 1888. Apesar das advertências britânicas cada vez mais incisivas, os navios negreiros continuaram a praticar o tráfico durante boa parte do século XIX, até 1850-1860 pelo menos, mas numa escala cada vez mais reduzida. Acima de tudo, o tráfico não permitia uma expansão tão rápida quanto o crescimento natural praticado nos Estados Unidos. Além disso, os processos de miscigenação e de emancipação gradativa eram bem mais disseminados no Brasil, o que contribuiu para limitar o crescimento da população escrava. Contudo, a miscigenação não impediu a distância social, a discriminação e a desigualdade, que se mantêm no excepcionalmente altas no Brasil até os dias de hoje. Quando a corte de Lisboa fugiu para o Brasil  com o objetivo de se livrar da invasão das tropas napoleônicas em 1808 para se instalar na cidade do Rio de Janeiro, a colônia tinha cerca de 3 milhões de habitantes, dos quais a metade da população eram de escravos africanos”.

As insurreições dos escravos no Brasil

Antes da chegada da família real, aconteceram diversas revoltas de escravos, a maior e mais significativa foi a do Quilombo dos Palmares, lideradas por Ganga Zumba e por Zumbi dos Palmares no século XVII, que constituiu sem dúvidas uma república negra liberta, que sobreviveu e resistiu durante mais de um século na região montanhosa da serra da barriga no estado de Alagoas no Nordeste brasileiro até sucumbir depois de inúmeras tentativas diante das tropas imperais em 1694.

 Em 24 para 25 de janeiro em 1835 acontece a Revolta dos Malês. Foi um levante de escravos mulçumanos, os malês, na cidade de Salvador, capital da Bahia, considerada a maior revolta urbana de escravos da história do Brasil, se rebelando contra a escravidão. O termo malê tem origem na palavra imalê que significa “mulçumano” na língua ioruba. Apenas os africanos tomaram parte da revolta, que contou com cerca de 600 homens. Em Salvador vivam 65 mil habitantes, 40% eram de escravos. Se fosse aglomerada toda a população negra de Salvador, o número chegava a 78% da população, assim somente 22% era de brancos. Derrotados os participantes da Revolta dos Malês, tiveram como punição: prisão pura e simples, prisão com trabalho, açoite, morte e deportação. De cerca de 5 mil negros libertos que habitavam na cidade de Salvador cerca de 20% foram deportados para África.  

O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão. A abolição da escravatura no Brasil aconteceu em 13 de maio de 1888 por meio da Lei Áurea e ratificou a extinção do trabalho escravo dos negros em nosso país. A abolição da escravatura foi o resultado de um processo de luta popular, que contou com a adesão de parcelas da sociedade brasileira, além de ter sido marcada pela resistência dos escravos. A escravidão chegara ao fim, mas o Brasil não eliminara as extremas desigualdades originadas por ela. Já a partir de 1850, passou a vigorar no Brasil a Lei 601, conhecida como “Lei de Terras”. Só poderia ter acesso a terras quem se dispusesse a comprá-las. Era uma lei a serviço total da concentração da posse da terra e da manutenção do latifúndio. Uma lei muito útil para manter a mesma realidade da época colonial. Uma sociedade com uma elite de senhores com seus agregados, donos de tudo. E milhões de miseráveis, sem terem direito a propriedade. O que os donos de terras e o governo não admitiam era a ideia de distribuir lotes de terra aos ex-escravos. Não havia interesse em qualquer tipo de reforma agrária no país.  E foi assim que começou a se formar o enorme exército de miseráveis que até hoje moram em cortiços e favelas em todas as grandes cidades e capitais do país.  Com a adoção da primeira Constituição Republicana em 1891, os “constituintes” excluíram os analfabetos do exercício do direito do voto. A elite brasileira implementou políticas tendo como base o “racismo científico” e o darwinismo social e lançou o Brasil numa campanha nacional para substituir a população mestiça brasileira por uma população “branqueada” e “fortalecida” por imigrante europeus para trabalhar no campo e na indústria nascente.   Tal decisão suprimiu na prática cerca de 70% da população adulta do processo eleitoral, mas não só. Excluiu a massa de afrodescendentes egressos do cativeiro de acesso ao trabalho remunerado, à moradia, à educação, à saúde pública e principalmente ao direito do exercício da cidadania. Basicamente esse contingente era composto por negros, mestiços, mas também de brancos pobres, que foram excluídos da participação política durante um século dos anos 1890, até os anos 1960 do século XX.

A Revolta da Chibata representou a luta de centenas de marinheiros por mudanças nas relações e condições de trabalho nos navios da Marinha de Guerra. Era um problema que se arrastava há décadas e se arrastava há décadas e se aprofundou na compra de novo e poderosos navios, em 1910. Os dreadnougths Minas Gerais e São Paulo eram imensos, mas o tamanho de sua tripulação era médio, comparado às suas dimensões.  O estopim para estourar a revolta foi o castigo de 200 chibatadas sofrido pelo marinheiro Marcelino José Rodrigues. Muitos viram naquele ato um excesso e uma injustiça. Havia códigos disciplinares permitindo o uso de castigos corporais como recurso a “correção disciplinar”. Os oficiais seguiam esses códigos até um determinado momento, para logo depois ultrapassa-los.

 Segundo Álvaro Pereira do Nascimento, no livro João Cândido e a Chamada da Liberdade, deu no The New York Times:  “por volta das 22 horas da noite de 22 de novembro quando o capitão  Neves, comandante do navio Minas Gerais, voltou de seu jantar a bordo do navio de treinamento francês Duguay Trouin, ele ouviu um violente estrondo e uma disparada de tiros. Era a tripulação de sua embarcação que tinha se amotinado. Comandante Neves e outros dois oficiais ofereceram resistência a alguns soldados e foram mortos, e um outro oficial ficou seriamente ferido.  Enquanto isso os amotinados gritavam, ‘Que a liberdade viva para sempre’. O movimento insurrecional então começou a bordo de outro navio de guerra, o couraçado São Paulo e logo depois também no ‘navio de inspeção’ Bahia. Todos os oficiais a bordo foram desembarcados , e um marinheiro de primeira classe, chamado João Candido, tomou o comando do esquadrão.

O surgimento do movimento negro brasileiro

A primeira fase do Movimento Negro organizado na República foi de 1889-1937. Para reverter o quadro de marginalização no surgimento da República, os libertos, ex-escravos e seus descendentes instituíram os movimentos de mobilização racial negra no Brasil, criando incialmente dezenas de grupos (grêmios, clubes ou associações) em várias partes do Brasil. Apareceram em São Paulo o Club 13 de maio dos homens Pretos (1902), Centro Libertário dos homens de Cor (1903), Centro Cultural Henrique Dias (1908); Associação Protetora dos Brasileiros Pretos no Rio de Janeiro (1917), etc. As maiores delas foram o grupo Democrático e Recreativo Kosmos e o Centro Cívico Palmares em 1908 e 1926 respectivamente. De cunho eminentemente assistencialista, recreativos ou cultural, as associações negras conseguiram agregar um número não desprezível de “homens de cor” como se dizia na época. Alguns tiveram como base de formação “determinadas classes de trabalhadores” negros, tais como: portuários, ferroviários e ensacadores, constituindo uma espécie de movimento sindical. Simultaneamente apareceu o que se denomina de imprensa negra: jornais elaborados e publicados por negros para tratar das questões raciais. Esses jornais enfocavam as mais diversas mazelas que afetavam a população negra no âmbito do trabalho, da habitação, da educação e da saúde, tornando-se uma tribuna privilegiada para se pensar em soluções concretas para o problema do racismo na sociedade brasileira. Além disso, as páginas desses periódicos constituíram veículos de denúncia do regime de segregação racial vigente que acontecia em várias cidade do país, impedindo o negro de  ingressar ou frequentar determinados hotéis, clubes, cinemas, teatros, restaurantes, orfanatos, estabelecimentos comerciais e religiosos, além de algumas escolas, ruas e praças públicas. Nessa etapa o movimento negro era desprovido de caráter explicitamente político, com um programa definido e projeto ideológico mais amplo.

A teoria da democracia racial

Para sustentar uma política de dominação era necessário criar uma nova teoria que substituísse a tese do branqueamento, pois era impossível esconder ou dizimar tantos originários de africanos num país fora da África, como o Brasil, com a maior concentração de negros no mundo. A partir da década de 1930, tendo como expoente o antropólogo Gilberto Freyre, com seu livro Casa Grande e Senzala, firmou-se a noção que o Brasil seria uma sociedade na qual em vez da discriminação e da segregação raciais absolutas, haveria uma miscigenação, o que possibilitava o “convívio harmonioso” entre as diferentes raças. Para a chamada democracia racial, o fenômeno da mestiçagem era uma consequência “salutar” e “democrática” entre pessoas e raças diferentes.  Para os defensores da teoria Freyriana, as desigualdades sociais, seriam uma questão de classe e não de cor. Que a violência na sociedade brasileira é diferente da situação dos Estados Unidos. Os estudos de Freyre sobre mestiçagem e sua visão da convivência “harmoniosa” no Brasil provocaram uma revisão das teorias raciais que condenavam sociedades com grandes contingentes de mestiços, e ofereciam uma visão positiva da realidade brasileira, de uma nacionalidade marcada pela miscigenação das três raças: brancos, negros e indígenas.

Na década de 1930, o movimento negro deu um salto qualitativo, com a fundação em 1931 em São Paulo, da Frente Negra Brasileira (FNB). Na primeira metade do século XX, a FNB foi a mais importante entidade negra do país. Com sub sedes em diversos estados como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, Pernanbuco, Rio Grande do Sul e Bahia, arregimentou milhares de negros e negras conseguindo converter o movimento negro brasileiro em movimento de massa. A entidade chegou a superar mais de 20 mil associados. A FNB desenvolveu um considerável nível de organização mantendo escola, grupo musical e teatral, time de futebol, departamento jurídico, além de oferecer serviço médico e odontológico, cursos de formação política, de artes e ofícios, assim como a publicação do jornal, “A voz da raça”. As mulheres negras não tinham apenas uma participação simbólica no movimento negro. Cumpriam um papel ativo de mobilização e organização de eventos.

Em 1936, a FNB transformou-se em partido politico e pretendia participar das eleições a fim de capitalizar votos das pessoas de cor. Influenciados pela conjuntura internacional do período, ou seja, a ascensão do nazifascismo passou a defender um programa político e ideológico autoritário e nacionalista. Com a instauração da ditadura do Estado Novo a Frente Negra Brasileira foi extinta e o movimento negro esvaziado.

O mito da democracia racial

Esse olhar despertou o interesse das elites políticas, econômicas e intelectuais no Brasil, e fora também, pois o cenário internacional era marcado pela conjuntura de ascensão do nazismo. Essa perspectiva positiva de um comportamento racial tolerante no Brasil fortaleceu a crença de que no país não havia preconceito, nem discriminação racial, mas sim, oportunidades econômicas e sociais desequilibradas para pessoas de diferentes grupos raciais ou étnicos que com a integração poderiam ser corrigidas. O Brasil foi tomado como modelo a ser seguido, quando comparado com outros países como os Estados Unidos (as leis Jim Crow) e a África do Sul (o Apartheid), em que a segregação era visível social e legalmente.

 Um dos exemplos que ilustram essa tese foi a promulgação em 1951, da Lei Federal 1.390/51, conhecida como Lei Afonso Arinos, deputado federal da UDN, que tornou o racismo contravenção penal 19 assim como o jogo de números, aqui jogo de bicho) no Brasil. O pequeno alcance punitivo dessa lei era reflexo de um pensamento segundo o qual o ato racista não era uma ação disseminada na sociedade , mas apenas uma manifestação individual. Existe também uma versão não oficial, de que uma das razões para o surgimento da Lei Afonso Arinos, foi o caso de discriminação envolvendo a bailarina afro-americana Katherine Dunham que foi impedida em razão de sua cor, de se hospedar em um hotel em São Paulo. O caso não teve notoriedade no Brasil, mas repercutiu negativamente no exterior.  Óbvio. Se no Brasil não se percebia o racismo como um problema, não haveria por que puni-lo de mais severo. Essa visão vai ser desmistificada somente na década de 1960 pelo Sociólogo Florestan Fernandes.

A segunda fase do movimento negro no Brasil vai de 1945 até 1964. Os anos de vigência do Estado Novo foram caracterizados por violenta repressão política, inviabilizando qualquer movimento contestatório. Mas, com a queda da ditadura “Varguista”, ressurgiu na cena política do país o movimento negro organizado que por sinal, ampliou seu raio de ação. Nesse sentido vale a pena destacar duas organizações: a União de os Homens de cor fundada por João Cabral Alves, em Porto Alegre, em janeiro de 1943. Um dos objetivos segundo o estatuto da entidade era “ elevar o nível econômico e intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional, para torna-las aptas a ingressarem na vida social e administrativa do país, em todos os setores de sua atividade”. A UHC se expandiu por todo o país e em 1954 chegou a eleger um deputado federal por dois mandatos consecutivos, um dos líderes do movimento chamado José Bernardo da Silva.   Com o golpe militar de 1964 e a implantação da ditadura militar, os movimentos sociais foram duramente atingidos e a União dos homens de cor foi extinta.

O outro agrupamento importante e histórico que marcou uma época foi o Teatro Experimental do Negro (TEN) fundado no Rio de Janeiro em 1944 por Abdias do Nascimento, que teve como expoentes figuras como a atriz Ruth de Souza, entre outros. A ideia para sua criação nasceu em 1941, após um encontro de Abdias com  os poetas Efrain Tomás Bo, Godofredo Tito Iommi, Raul Young e Napoleão Lopes filho, que desde a década de 1930 formaram a Santa Hermandad Orquídea, para assistir a peça o Imperador Jones, de Eugene O’Neill, no Teatro Municipal de Lima. De volta ao Brasil, Abdias foi preso em consequência de seus protestos contra a discriminação racial. Além da atuação nos palcos, o TEN assumiu uma postura política, criando entidades como a Associação das Empregas Domésticas e o Conselho Nacional das Mulheres Negras, fundou o Instituto Nacional do Negro. Publicou o jornal o Quilombo, que denunciava a discriminação racial em todo o Brasil e dava notícias e informações sobre a cultura negra no mundo. Combateu o padrão eurocêntrista de beleza dos concursos de Miss Brasil, realizando concurso de beleza para mulheres negras. Em 1955 promoveu a Semana do Negro e o concurso de Artes Plásticas tendo como  tema  o Cristo Negro. O TEM propugnava uma legislação antidiscriminatória no país.

Em 1946, o senador Hamilton Nogueira (UDN) apresentou a Assembleia Nacional Constituinte um projeto lei antidiscriminatória formulado originalmente na Convenção Nacional do Negro, um ano antes em 1945. Colocado em votação, o Partido Comunista Brasileiro (PCB), sob influência direta do Stalinismo se opôs ao projeto, alegando que a lei iria “ restringir o conceito de democracia”. Para o PCB, as reivindicações específicas dos negros eram um equívoco, pois dividiam a luta dos trabalhadores e por conseguinte, represavam a marcha da revolução socialista no país. Como consequência o movimento negro ficou abandonado por décadas, inclusive pelos mais progressistas. A primeira lei antidiscriminatória só foi aprovada no Congresso Nacional em 1951 e batizada como Lei Afonso Arinos, após um escândalo de racismo envolvendo a bailarina negra norte-americana Katherine Dunham, impedida de se hospedar num hotel em São Paulo. 

Discípulo do antropólogo Roge Bastide, Florestan Fernandes desconstruiu a teoria do convívio harmonioso entre as raças. A partir de pesquisas financiadas pela Unesco, juntamente com Roge Bastide, redundaram no livro “A integração do negro na sociedade de classes”, obra publicada em 1965, logo após o golpe militar, o autor analisa as particularidades do caso brasileiro e afirma ser a democracia racial um mito, uma imagem idealizada, que serve para garantir a manutenção da posição inferior do negro na sociedade brasileira. Como argumento, defendeu que os negros libertos no período pós-abolição não ameaçavam política e socialmente a posição de poder e os privilégios dos brancos, sendo desnecessárias medidas formais para promover o distanciamento entre negros e brancos.

Durante as décadas de 1960 e 1970, o nascente movimento antirracista contemporâneo brasileiro, influenciados pelos estudos de Florestan Fernandes, assumiu como bandeira política a luta contra a teoria da “democracia racial”. As desvantagens dos negros e pardos são confirmadas estatisticamente por muitas pesquisas acadêmicas, como se observa nos dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) sobre a distribuição de renda no Brasil. Apesar de representarem a metade da população brasileira os pretos e pardos constituem 74.2% da população mais pobre do país e apenas 16% da mais rica.

Segundo Clóvis Moura, em seu livro, Sociologia do Negro Brasileiro, “o negro urbano brasileiro, especialmente do Sudeste e do Sul do Brasil, tem uma trajetória que bem demonstra os mecanismos da barragem étnica que foram estabelecidos historicamente contra ele na sociedade branca. Nele estão reproduzidas as estratégias de seleção estabelecidas para opor-se a que ele tivesse acesso a patamares privilegiados ou compensadores, socialmente, para que as camadas brancas (étnica e/ou socialmente brancas) mantivessem no passado e mantenham no presente o direito de ocupá-los”.  Bloqueios estratégicos, que começam no próprio grupo familiar, passam pela educação primária, a escola de grau médio até a universidade; passam pela restrição no mercado de trabalho, na seleção de empregos, no nível de salários em cada profissão, na discriminação velada (ou manifesta) em certos espaços profissionais; passam também nos contatos entre sexos opostos, nas barreiras aos casamentos interétnicos e também pelas restrições múltiplas durante todos os dias, meses e anos que representam a vida de um negro.

De acordo com Clóvis Moura, “é como dissemos, uma trajetória significativa nesse sentido porque reproduz de forma dinâmica e transparente os diversos níveis de preconceito sem mediações ideológicas pré-montadas como a da democracia racial; demonstra, por outro lado, como a comunidade negra e não branca de um modo geral tem dificuldades em afirmar-se no seu cotidiano como sendo composta de cidadãos e não como é apresentada através de estereótipos: como segmentos atípicos, exóticos, filhos de uma raça inferior, atavicamente criminosos, preguiçosos, ociosos e trapaceiros”.  

A grande massa negra que atualmente ocupa favelas, invasões, cortiços, calçadas à noite, áreas de mendicância, pardieiros, prédios abandonados, albergues, aproveitadores de restos de comida, e por extensão os marginais, delinquentes, ladrões contra o patrimônio, prostitutas, lumpens, desempregados, horistas de empresas multinacionais, catadores de lixo, lixeiros, domésticas, faxineiras, margaridas, desempregadas, alcoólatras, assaltantes, portadores das neuroses das grandes cidades, malandros e desinteressados no trabalho, encontra-se em estado de anomia, que, segundo Clóvis Moura, coloca por terra a teoria da democracia racial no Brasil!      

A terceira fase do movimento negro no Brasil organizado na Republica de 1978/2000. O golpe militar de 1964 representou uma derrota, ainda que temporária para a luta política dos negros. Ele desarticulou uma coalizão de forças que palmilhava no enfrentamento do “preconceito de cor” no país. Como consequência o movimento negro entrou em refluxo. Seus militantes eram estigmatizados e acusados pelos militares de criar um problema que supostamente não existia o racismo no Brasil. De acordo com Lélia Gonzales, a repressão “desmobilizou” as lideranças negras, lançando-as numa espécie de “semiclandestinidade”. A discussão pública da questão racial foi praticamente banida.

A reação do movimento antirracista apenas aconteceu no final da década de 1970, no bojo do ascenso dos movimentos populares, sindical e estudantil. Só em 1978, com a fundação do Movimento Negro Unificado, tem-se a volta à cena política do país do movimento negro organizado. No plano externo, o movimento negro contemporâneo se inspirou, de um lado, na luta, na luta a favor dos negros estadunidense, onde se projetaram lideranças como Marthin Luther King Jr., Malcolm X, Ângela Davis e organizações negras marxistas, como o Partido dos Panteras Negras, e, de outro, os movimentos de libertação nacional dos países africanos, sobretudo de língua portuguesa, como Guiné Bissau, Moçambique, Angola. Tais influências externas contribuíram para o Movimento Negro Unificado ter assumido um discurso radicalizado contra a discriminação racial.       

No plano interno o embrião do Movimento Negro Unificado foi a organização marxista de orientação trotskista Convergência Socialista. Ela foi a escola de formação política e ideológica de várias lideranças importantes dessa fase do movimento negro. Havia na Convergência Socialista um grupo de militantes negros que entendia que a luta antirracista tinha que ser combinada com a luta revolucionária anticapitalista. Na concepção desses militantes, o capitalismo era o sistema que alimentava e se beneficiava do racismo, assim só com a derrubada desse sistema e a consequente construção de uma sociedade igualitária era possível superar o racismo. A política que conjugava raça e classe, atraiu aqueles ativistas que cumpriam um papel decisivo na fundação do movimento Negro Unificado: Flávio Carrança, Hamilton Cardoso, Vanderlei José Maria, Milton Barbosa, Rafael Pinto, Jamu Minka e Neuza Pereira.  Entre 1977 e 1979, a Convergência publicou um jornal chamado Versus, que destinava uma coluna, a Afro-Latino América, para o núcleo socialista negro escrever seus artigos conclamando à guerra revolucionária de combate ao racismo e ao capitalismo.

As teses do branqueamento

O brutal assassinato em Porto Alegre na véspera do dia nacional da consciência negra e 2020, dentro do shopping por seguranças do Carrefour, e a negativa do general Mourão, que no Brasil não existe racismo trouxe à tona um debate que ficou latente por muitos anos. Essa tese apresentada pelo vice-presidente, o general Mourão não é uma inovação do pensamento político-ideológico, da direita e extrema direita reacionária e dos conservadores brasileiros.

Sob a influência das teorias raciais eugênicas, autores como o médico Nina Rodrigues e o Jurista e historiador Oliveira Viana tendo como base que cada raça representava características físicas, psicológicas e socais próprias e que a mistura entre elas resultaria na degeneração daquela considerada a mais desenvolvida, ou seja, a raça branca. Segundo esses autores quanto mais uma nação fosse miscigenada, como no Brasil, maior seria o grau de degeneração. Com base nessas interpretações e argumentações esses pensadores defenderam o “branqueamento” da população brasileira como solução para o desenvolvimento do Brasil, nos moldes da sociedade europeia. 

Outro autor que contribuiu para essa política ideológica foi o italiano Cesare Lombroso (1835-1882). Para ele, a diferença entre uma pessoa honesta e uma pessoa criminosa estaria relacionada a aspectos físicos. Ele defendia que era no organismo humano que se encontrava as características próprias dos criminosos. Essas ideologias desenvolvidas por Lombroso, tiveram grande repercussão em diversas áreas do conhecimento e influenciou vários pesquisadores e cientistas seja na Europa, seja na América Latina.

A difusão dessas ideias contribuiu para a efetivação do racismo como ação política e ideológica. O critério de raças passou a ser elemento explicativo de diferenças de aptidão, de modos de viver e de ocorrências de tendências criminosas. Não é sem motivo, que com o brutal assassinato de João Alberto de Freitas, um homem preto de 40 anos, na cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, dia 19 de novembro de 2020, na saída de um supermercado da rede Carrefour na véspera do dia Nacional da Consciência Negra, surgem uma série de afirmações e insinuações por parte da extrema direita negacionista e protofascista, inspirado por um presidente (Jair Bolsonaro), que ficou conhecido no mundo político um jargão (apropriado do miliciano e ex-deputado Sivuca) de que “bandido bom é bandido morto”. Normalmente o esteriótipo do bandido é o homem ou mulher negros. “De que a vítima era um marginal e tinha passagens pela polícia”. “O crime não foi racial”! “O sujeito era bandido e violento”. E mais grave e falso: De que o Brasil é uma “democracia racial”. “Não existe racismo estrutural no Brasil”, etc…

A barbárie cotidiana contra a população negra no século XXI

Para Silvio Almeida, em seu livro Racismo Estrutural, “o racismo é uma imoralidade e também um crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente responsabilizados”. A concepção de racismo institucional, consiste na perspectiva que o racismo não se resume a comportamentos individuais, mas é tratado como o resultado dos funcionamentos das instituições que passam atuar em uma dinâmica que confere, ainda que indiretamente, desvantagens e privilégios, com  base na raça. Ou seja, os conflitos raciais também fazem parte das instituições. E basta verificar os postos de comando das instituições para constatar a ausência de negros. Seja, no judiciário, nas grandes empresas, no parlamento e no executivo. Ao mesmo tempo a população negra povoa os presídios fétidos do país, que são verdadeiras masmorras, os hospícios ou hospitais psiquiátricos, as favelas, os bairros da periferia, onde constantemente são vítimas da violência policial, da falta de atendimento médico (os negros e negras são as principais vítimas da pandemia da Covid-19), da ausência de escolas estruturadas, etc.        

Basta abrir as páginas de seção policiais dos jornais populares, que assistimos o extermínio deliberado de pessoas simplesmente motivadas por diferenças raciais e pelas condições sócio econômicas. Ou seja, o racismo decorre da própria estrutura social.  A cada 10 (dez) pessoas assassinadas pela polícia 08 (oito) são negras. Os dados sobre femincídios também saltam os olhos. No noticiário desses mesmos jornais verificamos que o assassinato de mulheres caiu 9,8% entre as mulheres brancas em dez anos, porém entre as mulheres negras aumentou em 54% no mesmo período. Na LGBTQI + fobia, a incidência de crimes multiplicou entre pessoas pretas e pardas. A violência, a falta de acesso a direitos básicos e constitucionais, a pobreza e a desigualdade tem cor no Brasil. E não é a cor branca e sim a cor preta. O racismo é estrutural.

A violência contra o povo pobre das favelas e das chamadas comunidades também expressam um racismo estrutural e institucional. Não se escolhe sexo e nem idade. As vítimas da chamada “guerra às drogas”, seja pela polícia, seja pela milícia e mesmo pelo tráfico são as mesmas.

Bruno Paes Manso relata essa barbárie em seu livro “A República das Milícias, dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro” afirma: “Ao longo de 2019, num período de dez meses, seis crianças morreram por balas perdidas, quase todas vítimas de operações policiais. Em fevereiro, Jenifer Silene Gomes, de onze anos, foi atingida no peito quando estava na calçada junto com a mãe no bairro de Triagem, na zona norte. Em março, Kauan Peixoto, de doze anos, morreu com tiros no pescoço e abdômen depois de tiroteio entre policiais e criminosos na comunidade de Chatuba, na Baixada Fluminense. Em maio, Kauã Rozário, de doze anos, morreu com um tiro na cabeça na comunidade Chica, no Complexo do Chapadão. Também em setembro, Ághata Vitória Sales Félix.  De oito anos, foi morta com um tiro quando voltava para a casa com a mãe, na Comunidade da Fazendinha, no Complexo do Alemão. Em novembro, Ketellen Umbelino de Oliveira Gomes, de cinco anos, foi atingida por disparos feitos por um suspeito de integrar uma milícia em Realengo. Todas as crianças mortas eram negras e moradoras de comunidades pobres”. Em 2020 Emily Victória de 4 anos e sua prima Rebeca Breatriz de 7 anos, foram baleadas na calçada, em frente de casa enquanto brincavam inocentemente.

O mesmo método, o mesmo modus operandi, de crime, de extermínio, praticado pela polícia militar do estado do Rio de Janeiro, sob o “psicopata” Wilson Witzel, aquele que dizia que tem que mirar na cabecinha, irá se repetir com o jovem João Pedro de 14 anos, que brincava com amigos e primos dentro de casa na cidade de São Gonçalo, cujos pais quando chegaram do trabalho foram encontrar o corpo do filho no IML. É inegável, pois os fatos superam os argumentos. Inclusive de autoridades, tipo o vice-presidente general Mourão de que essa coisa de racismo não existe, isso é coisa fantasiosa. Que o racismo é coisa dos Estados Unidos. Ou de Bolsonaro que se diz daltônico quanto à questão de raça e racismo. E mais grave, que diz rindo, que esteve num quilombo e que os negros que lá vivem pesavam mais de 20 arroubas e não gostavam de trabalhar, como justificativa para negar-lhes o direito constitucional a posse e a titulação de terras quilombolas.

A história em 2021, se repete como a tragédia de um filme macabro. Se não bastasse o morticínio de milhares pessoas vitimados pela Covid-19, se aproximando (e ultrapassará) de 400 mil mortes, entre as quais a grande maioria como revelam os estudos estão negros, pobres e moradores da periferia, somando a regressão dos empregos e o desemprego crescente e catastrófico, a condição de estado fome e penúria, de miséria absoluta, de mulheres, homens e crianças. É nesse cenário que as crianças negras continuam sendo as vítimas da dita guerra ao “tráfico” pela polícia e as milícias.

O menino Kaio Guilherme da Silva Braúna de 8 anos, foi baleado por arma de fogo e veio a falecer no sábado dia 24 de abril.  É a quarta criança morta por arma de fogo no Rio de Janeiro em 2021! É possível imaginar um futuro, ou melhor uma nova abolição do povo negro, sem as milícias urbanas e rurais, sem polícias e o encarceramento em massa de negros e pobres? Sim é possível! Em 500 anos de uma concepção de polícia racista e truculenta, talvez a reforma desse modelo não seja suficiente, mas sim a exigência completa de sua abolição?  Sim! A abolição desse sistema repressivo, braço armado do capitalismo é a única saída!          

A luta antirracista tomou grandes proporções no ano de 2020 nos EUA, no Brasil e em todo mundo ocidental a partir do assassinato de George Floyd. E agora logrou êxito com a condenação de seu assassino o ex-policial Derek Chauvin pelo tribunal do júri de Minneapolis. Mas a pergunta que não quer calar: até quando teremos que lutar para que os assassinatos sistemáticos de negros nas mãos da polícia acabem? O racismo brasileiro está impregnado em todos os tecidos da sociedade 500 anos em nosso país. O combate ao racismo tem que se dar na mobilização, na denúncia, mas também o racismo que é uma “irracionalidade” deve ser combatido também no campo jurídico por meios de sanções civis e penais.  E ainda assim não será suficiente. Pois enquanto o capitalismo continuar produzindo tantas desigualdades o racismo permanecerá através das instituições de Estado. 


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