A nova situação na América Latina

A nova situação na América Latina

Neste texto, extraído do livro “70 anos de Lutas e Revoluções na América Latina”, Pedro Fuentes escreve sobre a nova situação na América Latina.

Pedro Fuentes 15 jun 2021, 14:21

Este texto é parte do livro que se intitula “70 anos de Lutas e Revoluções na América Latina”. Por sugestão de camaradas, decidi publicar extratos do mesmo (a nova situação a partir de 2019) dada a atualidade que tem este tema para os militantes da IV Internacional. Não é um documento, são capítulos do livro que chegam até as jornadas da Colômbia. Agreguei como último tema o artigo escrito a propósito do triunfo de Castillo e em homenagem a Tito Prado, militante internacionalista recentemente falecido, vitimado pela Covid-19.

As novas Insurgências a partir de 2019

Nitidamente a partir de 2019 a América Latina (AL) se agitou. Se mapa foi colorido por rebeliões, greves e insurreições que seguem até hoje e, ao que tudo indica, não vão parar. Duas interrogantes surgem na esquerda frente a esta nova situação. Qual é o elemento mais importante para mudar AL? Os progressismos ou a construção de novas alternativas a partir da vanguarda que surge destes processos?

Antes de responder a estas duas questões existe há ainda uma polêmica sobre o signo da situação. Há quem opine que vivemos em uma etapa reacionária na AL. É verdade que Bolsonaro ainda governa e Duque não termina de cair. Pode-se argumentar que estes fatos somados ao triunfo de Lazzo no Equador e a possibilidade de fraude para que ganhe Keiko Fujimori no Peru, reforçam este ponto de vista. Mas esta é uma visão equivocada, que perde de vista tanto a realidade quanto a perspectiva.

Os que a defendem perdem o sentido geral da situação e as vitórias democráticas e antineoliberais. A mobilização chilena abalou a herança pinochetista encarnada em Piñera e na Bolívia a parlamentar golpista Añes foi derrotada e hoje está presa. É importante registrar também que há três anos os Estados Unidos não conseguiam cumprir seu objetivo de ingerência militarista na Venezuela, independentemente de Maduro e Ortega fazerem parte desta constelação totalitária, mas de outro signo.

Se entre 2016 e 2018 AL foi marcada por uma ofensiva reacionária (Macri, Bolsonaro, Piñera, Duque) isso mudou em 2019. Esta mudança (que foi pré-anunciada em alguns países do Caribe, como Porto Rico e Haiti) ganhou um signo definido.

Tivemos o levante indígena no Equador, logo após a revolta chilena contra o modelo neoliberal herdado de Pinochet e que Piñera representou muito bem, a greve geral na Colômbia que semeou a atual insurreição. E em 2020, em plena pandemia, o heróico povo boliviano acabou, acabou literalmente com o golpe parlamentar de Añez que buscava se perpetuar no poder. O resultado final foi o contundente triunfo eleitoral do MAS. As mobilizações no Peru derrotaram o governo proveniente do golpe parlamentar de Merino, que durou uma semana no poder e, no Paraguai, o povo se insurgiu contra a inoperância do governo frente à pandemia.  

No ano de 2021 o processo continuou. Pode-se dizer que se fez ainda mais contundente. Os fatos que se sucederam são mais recentes e conhecidos. Nos deteremos somente nos dois últimos acontecimentos.

Vale lembrar também que essa onda teve forte expressão nos Estados Unidos quando do assassinato de George Floyd, que abriu caminho para a luta antirrracista no mundo. E que mais tarde nas eleições Trump, o maior expoente da direita proto-fascista no mundo, foi derrotado. O que está acontecendo na AL é parte dessas mudanças que ocorreram no país do norte.

Nos deteremos em dois processos: Chile e Colômbia. São os mais recentes e ilustrativos. Não entraremos no Equador (uma verdadeira rebelião juvenil-indígena), nem Bolívia e Peru, onde a disputa eleitoral é entre a direita autoritária de Fujimori e o líder dos trabalhadores da educação, Pedro Castillo.

Chile insurgente

O Chile insurgente infligiu uma dura derrota à direita nas eleições para a Assembleia Constituinte. O resultado não caiu do céu. …  Como dizem os companheiros chilenos, é uma vitória maior do que a que Allende conquistou com a Unidade Popular em 1971. Parece que eles têm razão. A direita foi muito mais ferida, não conseguiu o terço necessário que lhe daria poder de veto. As eleições chilenas abrem um processo constituinte ao mesmo tempo “destituinte”. É a institucionalização da insurreição anti-neoliberal que pedia a cabeça de Piñera em 2019. Finalmente conseguiu, em uma magnitude ainda maior, embora ele permaneça no poder até o final do ano.

Se pode contestar corretamente que o aparato de Estado está longe de ser destruído. Mas não era isso o que estava colocado para o povo chileno quando se mobilizou (não alcançou fazer uma revolução sandinista). Então, a direita ainda pode manobrar. Pode, mas não pode retroceder, voltar ao que era antes. Abriu-se um processo que vai modificar (não desmantelar) o Estado chileno. Até onde vai? Até qual estação chegará o trem da revolução democrática e antineoliberal, vai depender da energia colocada pelo povo chileno (o combustível) e ate onde se organiza uma direção (o maquinista que conduz o trem). Mas o trem já arrancou e não volta pra trás. Da mobilização e de como os constituintes se apóiam nela, dependerá até onde chega.

Para terminar, cabe registrar os resultados: a direita ficou longe de alcançar um terço [das cadeiras à Assembleia Constituinte], teve 37 eleitos sobre um total de 172 constituintes (somados os 17 dos povos originários). A Concertación de Bachelet e os democratas cirstãos que governou durante vários períodos com a Constituição de Pinochet, aos quais se pode qualificar de progressismo, sofreram também uma derrota. Mesmo se somados à direita, ainda estão longe de ter maioria. 

Por sua parte, o PC saiu por fora da Concertación e uniu-se à Frente Ampla e correntes independentes de esquerda. Esta virada à esquerda do PC começou em 2019, quando votou contra e não participou do acordo entre Piñera e o Parlamento, no momento em que estava colocada a queda de Piñera. Essa mudança do PC é um elemento importante a se observar, ainda que siga mantendo sua estrutura vertical, mudou sua política. Teremos que observar se este não é um elemento a mais da nova situação. A falência de uma política classista e de confrontação entre setores da esquerda e de sindicatos. Algo similar acontece com as direções sindicais colombianas, como veremos em seguida.

Devemos acrescentar também como vitória que haverá uma maioria de constituintes mulheres, algo inédito, e que não é um presente, mas uma conquista, já que as mulheres estiveram na vanguarda da mobilização em todos esses anos. E também que o Partido Comunista ganhou para a Prefeitura de Santiago com Irací Hassler  e Jorge Sharp, um lutador de esquerda que deixou a Frente Ampla por sua oposição ao acordo parlamentar com Piñera, foi reeleito à Prefeitura de Valparaíso.

Colômbia valente

Faz mais de um mês que o povo da Colômbia está nas ruas, levanto adiante bloqueios, mobilizações e sucessivas greves gerais. A contundência da mobilização é forte, com os jovens pobres de Cali à cabeça e um Comando Nacional de Greve integrado pelos sindicatos, a CUT (dirigida por setores burocráticos) e também representação de agrupamentos mais combativos, como os indígenas.

Por sua vez, nos bairros – principalmente em Cali e no Vale do Cauca onde está localizado e em outras cidades do nordeste da Colômbia – avançou um processo de auto-organização dos jovens que sustentam os bloqueios. De acordo com os companheiros colombianos, eles estão alcançando um grau de organização e alguma centralização ainda insuficiente. Entre os jovens prima a desconfiança em relação aos partidos políticos, sindicatos e, sobretudo, à palavra do governo nas negociações.

É preciso lembrar que a greve de outubro de 2019 foi “um ensaio geral”, que deixou uma lição importante para o movimento de massas, principalmente para os jovens: as centrais sindicais não lhe deram continuidade. Desta vez, o movimento de massas não caiu nesse erro. Apesar de o presidente Duque ter retirado o projeto de lei de um imposto que cobrava a classe média e os trabalhadores, foi levantado um programa de pontos essenciais para enfrentar a crise e a greve geral teve que continuar com diversas convocatórias e mobilizações empurradas pelos bloqueios que os jovens de Cali estão fazendo.

Essa mobilização que pede mais do que a revogação da reforma tributária que o governo tentou aprovar e teve que retirar. Com suas reivindicações, ataca os pilares das injustiças do Estado neoliberal colombiano, que é neoliberal em suas formas econômicas, mas que também tem o peso do narcotráfico e das relações íntimas que estabelece com o poder.

Assim, a mobilização enfrenta um regime que pratica sistematicamente o terrorismo de Estado. Duque é filho de Uribe, um sinistro ex-governante aliado do narcotráfico e, como seu fiel herdeiro, rompe sistematicamente os acordos de PAZ firmados entre as FARC e o governo de Santos. Seja através de seus pistoleiros, agentes paramilitares que expulsam e perseguem os povos indígenas, seja na sua perseguição ao ativismo sindical que tem milhares de mortos nas costas. Agora continua com as mesmas práticas.

Se olhamos para a Colômbia e comparamos com as mobilizações que percorreram os Andes, existem dois pontos comuns; vontade de lutar e repressão dura. Mas a Colômbia é qualitativamente diferente: as práticas de terrorismo de Estado deixaram mais de 60 mortos, mais da metade deles em Cali, há uma centena de desaparecidos e milhares de feridos; uma repressão sistemática que não para, embora o governo diga que quer negociar.

A particularidade colombiana é que o terrorismo de Estado é parte do regime. Por isso, o governo diz que negocia, mas ao mesmo tempo coloca a polícia especial e agora o exército para reprimir, matar e desaparecer manifestantes. Há um ponto de impasse. O movimento exige que parem a repressão para que se retire a mobilização, entretanto, o governo com sua lógica e essência repressiva não aceita.

Quando escrevemos este texto, o Comando de Greve, formado essencialmente pelas centrais sindicais e sindicatos – com a participação de representantes de outros setores, como povos indígenas ou grupos de direitos humanos -, não conseguiu fechar um acordo com o governo. Há um ponto que parece inegociável para este governo: parar as forças repressivas.

A situação segue aberta e arriscamos um prognóstico. É difícil para o governo conseguir uma derrota em toda a linha sobre o movimento de massas. Este, ao longo da mobilização, se tornou um questionador das raízes desse regime que pode sobreviver, mas não será mais o mesmo, e seu futuro, mais cedo ou mais tarde, é definido como consequência do heróico levante colombiano.

Voltam os progressismos? Em que condições?

Paralelamente a estes processos há um certo renascimento dos antigos progressismos como hoje são chamados os governos que emergiram a partir do ano 2000 (Lula, Chávez, Evo, Kirchner, Mujica). Agora são López Obrador, Alberto Fernández, Arce e os prováveis ​​governos de Petros na Colômbia e Lula no Brasil.

Uma observação anterior importante. O termo “progressismo” se impôs na esquerda para qualificar (em oposição aos neoliberais ou totalitários) todos os governos que não viessem dos partidos tradicionais nos anos 2000. A definição de progressismo não é fiel à realidade porque com ela perde-se a diferença de qualidade que esses governos tinham. Lula, Kirchner, Mujica eram qualitativamente diferentes de Chávez, Evo e Correa. E essa diferença é importante, quem qualifica a todos como progressistas, colocando-os no mesmo saco, ajuda a confundir quem pensa que agora dominam ou dominaram os progressismos.

Uma questão surge à esquerda em face desta nova situação. Qual elemento é mais importante para mudar a AL, os progressismos ou a construção de novas alternativas da vanguarda que surgem nesses processos?

Estas são as questões que se colocam em meio ao atual processo de luta que vive o nosso continente. Setores de esquerda pensam que após o período reacionário (governos de Macri, Piñera, Lenin Moreno, Duque, Bolsonaro …) através do qual AL ainda se move desigualmente, o caminho para acabar com eles é retornar aos velhos progressismos. É verdade que há um retorno deles com Fernández na Argentina, Arce na Bolívia, López Obrador a possível vitória eleitoral de Lula no Brasil e de Petros na Colômbia.

Não podemos negar essa realidade, mas existem novos elementos que tornam impossível que eles sejam o que eram antes.

Uma delas é a grave crise multidimensional e, como parte dela, a crise econômica e de dominação. Como escreveram os camaradas Ana Valladares e Israel Dutra, membros do bureau da IV Internacional, em seu último texto para ser apresentado na próxima reunião da IV Internacional:

“A atual crise econômica global sem precedentes e a agudização do confronto entre os EUA e a China (para não falar na Rússia) impossibilitam a repetição de um novo período de estabilidade, mais ou menos longo, baseado no modelo de uma época em que o mundo estava crescendo e EUA, Europa, China e Rússia coexistiam sem grandes tensões. Infelizmente, as opções progressistas não superaram esse modelo e seguem chamando os povos a acreditar que é possível “recomeçar”, como se nada tivesse acontecido, como se nada tivesse mudado, como se não tivessem governado e se desgastado diante de seus partidários e das novas gerações de ativistas, chocando-se com suas reivindicações. Não teremos paz nem estabilidade ”.

Ligado a este elemento estrutural (a crise não permite reformas), os progressismos de agora estão vazios estruturalmente de massas; não têm relação orgânica com elas, são superestruturas eleitorais que existem para as eleições parlamentares e presidenciais. Ainda que setores importantes do povo possam vê-los como um mal menor, pensando que “o passado foi melhor”, não têm o peso de massas que tiveram na primeira década dos anos 2.000, quando criavam entusiasmo e otimismo no movimento dos trabalhadores.

Junto com essas questões, um elemento novo surgiu na AL a partir de 2019: as insurreições que a percorrem em resposta à crise e o surgimento de uma nova vanguarda ampla, objetivamente anti-sistêmica, à parte dos progressismos.

Já fizemos um vôo rápido sobre nosso Continente. Os levantes e rebeliões cobriram grande parte do mapa. Estes movimentos são diferentes dos progressismos do início dos 2.000, têm características novas e em comum, dentro de suas lógicas particulares:

a) As/os protagonistas são os jovens, os povos indígenas, os afrodescentedentes (que em grande parte dos países é uma maioria destacável), os camponeses pobres, as mulheres e os trabalhadores de serviços e tele-entregas. Em todos os setores, as mulheres e os jovens são uma força destacada. Quer dizer, nesses novos levantes entraram em cena novos setores que se somam aos trabalhadores, em particular os de serviços, que seguem protagonizando fortes lutas.

b) Essas insurreições enfrentam forte repressão por parte dos governos. Em todas elas reprimiram violentamente. Ficaram dezenas de mortos na Bolívia, Equador, Peru… Mas os insurretos não se amedrontam e enfrentam a repressão. No Chile houve manifestações por mais de um mês até conseguir a Assembleia Constituinte e, na Colômbia (quando escrevemos este capítulo)  já vão mais de 12 dias enfrentando os métodos de repressão típicos de um regime que tem mais de mil assassinatos nas costas e que pratica o terrorismo de estado. Uma das caracaterísticas deste novo período – diferente dos anos 2.000 – é esta dureza da repressão dos governos que não têm outra saída, que não seja apelar para ela.

Essas mobilizações não só incorporaram novos sujeitos sociais, mas também incorporaram novas e velhas demandas de forma mais imediata do que antes, em conseqüência da crise multidimensional que vivemos. Pontos do mesmo, já estão colocados na mobilização:

= Trata-se da defesa dos povos indígenas, da defesa – ligada ao anterior – do meio ambiente contra o extrativismo predatório. A questão ecológica foi colocada na ordem do dia como um novo tópico essencial;

= A crise multidimensional agravada pela pandemia colocou a nacionalização da saúde como uma tarefa para acabar com os lucros dos capitalistas nesta área. Trata-se de nacionalizar o sistema, quebrar patentes, expropriar laboratórios sob controle social;

= A necessidade de uma renda mínima para toda a população só pode ser alcançada se os grandes capitalistas forem taxados, ao mesmo tempo que se faz necessário a nacionalização dos bancos e o cancelamento das dívidas que os governos contraíram com o Banco Mundial e o FMI .

= Em síntese, para sair da crise, a América Latina precisa de medidas de emergência que só podem ser realizadas se, ao mesmo tempo, não forem tocados os interesses da alta burguesia, do capital financeiro e do imperialismo. Isso começa a ser e será a marca do próximo período; a busca pela vanguarda de um novo programa anti-imperialista, anti-capitalista e eco-socialista como é o que apontam os novos processos.

= Em todos esses processos, emerge uma ampla vanguarda anti-sistêmica, independente dos progressistas e dos velhos partidos. Trata-se de uma vanguarda das massas, ou melhor, de setores das massas que em Cali (hoje epicentro das revoltas) são os jovens moradores dos bairros pobres de Cali e os indígenas. Essa vanguarda é objetivamente anti-sistêmica, ou seja, faz um questionamento global da crise do sistema capitalista. Isso não significa que seja socialista ou revolucionária, rejeita a realidade atual, mas ainda não consegue encontrar a saída. E isso porque ainda existe uma crise do programa, no sentido de ver outro poder e, claro, ver outra alternativa.

O papel dos progressismos frente às mobilizações

O papel dos progressismos é de conciliação. Não é por acaso. Como dissemos, em diferentes graus todos eles são institucionalizados, fazem parte do regime político e do sistema contra o qual todas essas insurreições se chocam. Daí seu papel como “mediadores” onde a polarização não permite a mediação.

Esta foi sua atitude no Chile. Quando a mobilização pedia a renúncia Piñera, toda a esquerda, com exceção do Partido Comunista, pactuavam a realização de uma Constituinte na qual, 40% dos constituintes (cifra acessível para a direita), tem o poder de veto. Para dar outro exemplo, no Equador o correísmo em vez de ser parte ativa e vanguarda da mobilização, se manteve independente. Sua ação própria foi tentar queimar o edifício público onde se encontram os arquivos dos julgamentos de Correa.

No Brasil, Lula defende que temos que tirar Bolsonaro nas eleições, quando este assassino genocida tem em suas costas o que até agora são mais de 420 mil mortos. E na Colômbia, onde se encontra o ápice da mobilização, tanto a prefeita de Bogotá, Claudia López Hernández quanto o candidato a presidente para as eleições de 2022, Gustavo Petros do Polo Patriotico fizeram declarações pedindo o fim da greve ainda no início do levante quando o governo retirou a reforma tributária, mas não cumpria com a pauta dos mobilizados.

Dessa maneira, todos os progressismos estiveram por fora ou contra as mobilizações, esperando pelos processos eleitorais.

Para sair da crise precisa de medidas de emergência que só podem ser levadas adiante se, ao mesmo tempo, forem confrontados os interesses da alta burguesia, do capital financeiro e do imperialismo. Esta começa a ser e será a marca do próximo período; a busca pela vanguarda de um novo programa anti-imperialista, anticapitalista e ecossocialista como é o que apontam os novos processos.

Neste marco concreto, os progressismos podem converter-se  – em alguns momentos – em uma estação intermediária, mas nunca uma saída para a crise.

As contradições reais que podem confundir

Os setores da esquerda que vêem o progressismo como uma saída para a situação atual erram ao abandonar a estratégia socialista. Eles também enfraquecem a conexão de mais setores da esquerda com esta nova vanguarda. Mas, todo erro tem um elemento de (meia) verdade. Há um desenvolvimento desigual entre a magnitude da crise e as alternativas anti-capitalistas a ela. Superar os progressismos na esquerda não é fácil e encontra dificuldades reais, que agora serão superadas com o avanço da insurgência latino-americana.

No entanto, esse atraso não justifica uma política de esquerda que vê a alternativa no progressismo. Eles estão seguindo orientações que vão contra a mobilização de massas e atrasam a construção de novas alternativas.

Comparemos à situação de um trem que partiu. O combustível que o move são as mobilizações de que estamos falando. O trem é destinado a uma nova alternativa anticapitalista de massas que abre um novo processo em nosso continente. Quando o combustível é demais, o progressismo não pode detê-lo no posto de conciliação de classes, como aconteceu no Chile. Em seguida, o trem continua sem parar em seu caminho para a nova estação. Em outros países, como é o caso do Brasil, o timoneiro (lulopetismo) tem habilidade e maestria para detê-lo naquela estação de conciliação de classes. É verdade que essa é a alternativa no Brasil. O debate da esquerda é se, no caminho para aquela estação, nos preparamos para continuar, ou seja, para construir um novo motorista que considere continuar avançando depois daquela parada. Há uma grande diferença aí, porque setores da esquerda pensam que somente esta primeira estação é o destino final; então, eles descem do trem junto com o maquinista do progressismo. Ao contrário, os anticapitalistas não descem, ficamos dentro do trem para que, quando as massas o puserem em movimento, tenham um maquinista que o guie até as novas estações.

Tática e estratégia

Saindo do exemplo e passando para os conceitos. Com os progressismos só é possível ter uma política de unidade de ação e uma frente única específica, ou seja, em torno de alguma tarefa presente que é definida pela realidade e que é realizável para ajudar na mobilização.

No terreno eleitoral do Brasil (e talvez da Colômbia) é evidente que nas eleições do próximo ano é preciso derrotar Duque e Bolsonaro e que, para isso, teremos que dar apoio a Petros e Lula, se este for o candidato opositor no Brasil. Mas, teremos que fazer isso como tática eleitoral. Não se trata de um voto programático como pensam alguns setores da esquerda. Programaticamente é necessário sustentar o programa anticapitalista que é o que responde às necessidades das massas para sair da crise.

No caso do Brasil, onde as eleições são realizadas em dois turnos, essa discussão está aberta até dentro das fileiras do PSOL. Há um setor de esquerda e do PSOL que defende o voto em Lula já no primeiro turno. (Ou seja, voltando ao exemplo, consideram a jornada encerrada na primeira estação).

Argumentam que devemos votar nele, convocando-o a formar uma frente de esquerda, ou seja, uma frente com toda a gama de partidos que vão desde o que seriam os sociais-democratas brasileiros até o PSOL. Mas essa política esbarra em dois problemas. A primeira é que se sabe publicamente que Lula não quer uma frente de esquerda; ele quer uma aliança eleitoral que inclua até partidos de centro-direita, isto é, a burguesia de vice. Lula é quem decide com quem quer fazer aliança e, nesse sentido, já estabeleceu diálogos com o establishment. Portanto, é errado criar ilusões em uma frente que é impossível.

Então essa confusão vai significar colocar para baixo do tapete o programa e a própria tradição do partido que surgiu na oposição ao governo Lula quando fez a reforma previdenciária, na qual ficou demonstrado que seus interesses de classe eram a favor da grande burguesia. É essencial apresentar um programa para que a alternativa anticapitalista não desapareça diante da vanguarda e do movimento de massas. A política não se orienta apenas pelo possível e imediato. (O que, neste caso, inclusive é um imediato impossível). Na política revolucionária, há uma relação entre a tática (os meios) e a estratégia, o objetivo. Nossa estratégia é disputar um setor de massas para um programa de transição e anticapitalista.

Não há melhoras econômicas no Brasil, nem em nenhum país  da AL nos marcos deste regime. Nossa tática não pode entrar em contradição com a estratégia de construir uma alternativa anticapitalista. Evidentemente que não é uma relação mecânica, a tátoca pode seguir e apelar a diversos meios, mas nunca pode se chocar com a estratégia. 

Votar por um programa

Hoje em dia as medidas de urgência, imediatas, se transformam em transicionais. Não se pode falar da quebra das patentes, se também não se coloca a nacionalização dos laboratórios que produzem a vacina contra o Covid e os novos vírus que virão.

Uma renda básica – que é uma renda de sobrevivência – não pode ser obtida se as fortunas dos mais ricos não forem pesadamente taxadas. A insuportável dívida externa não pode continuar sendo paga. A sua anulação significa também a expropriação e nacionalização das finanças. Precisamos acabar com a agressão à natureza, o extrativismo, o desmatamento das reservas ecológicas e principalmente a Amazônia, que não são mais apenas uma ameaça para o futuro, e sim no presente. Expulsar empresas multinacionais, fazer um uso racional dos recursos naturais só é possível com medidas que ataquem o imperialismo e seus agentes. Devemos combater o racismo contra os povos indígenas (indígenas) e afro-latinos (negros).

Por essas razões, em um primeiro turno deve-se defender um programa anticapitalista, ainda que essa política apareça imediatamente como equivocada para os setores que enxergam a saída no mal menor de Lula. Mas a dinâmica e o futuro (quando Lula for governo e encher seu gabinete de proeminentes burgueses) vão mostrar que quem defendeu o programa radical tinha razão. Na política, devemos ver a dinâmica mais provável: Lula governando com a burguesia. Isso é o possível, mas não é por isso que nos tornaremos possibilistas: mantemos o PSOL com candidatura própria no primeiro turno, ou seja, preparamos o futuro maquinista. Em um segundo turno, é preciso peso total para derrotar Bolsonaro. Devemos votar contra esse neofascismo, mesmo que a alternativa seja dentro do regime.

Um fim que também é um começo

Não havia maneira melhor de concluir este livro do que em meio às eleições constituintes no Chile e ao levante colombiano. Por meio deles, devemos olhar para o futuro de LA, futuro que já começou. Para aqueles de nós que vivemos na casa dos anos 60 e percorremos o caminho de triunfos e derrotas, algumas das quais abordamos neste livro, sem dúvida, estamos diante de um novo começo. E para as novas gerações é bom enfrentá-lo recorrendo a esse passado que, mal ou bem, é tocado neste livro.

O caminho pela frente não é fácil. Não há uma avenida aberta para nós. Há um caminho cheio de insurgências e confrontos, de lutas e repressão (como mostram as mortes da Colômbia), enquanto o povo continua sofrendo com esse monstro de sistema que nos domina. A crise impulsiona a luta e, como em todas as etapas anteriores de ascenso das massas, surgem os destacamentos de vanguarda e surge a necessidade de nos munirmos de um novo programa de transição.

Como dizíamos, hoje em dia medidas imediatas e urgentes passam a ser transicionais e devem ser disseminadas em toda a vanguarda que está nas ruas da AL. São palavras de ordem de agitação propagandista que estão colocadas para difundir, especialmente com os setores em luta.

No entanto, só podemos fazê-lo se cumprirmos uma tarefa anterior: ligar-nos a estes setores em levante, conhecer a sua forma de pensar e ver a realidade, ouvi-los atentamente. Nada de ir “baixar a linha”! Ir aprender também! Para ganhar sua confiança. Para que assim possamos aprender a ouvir, para saber partir de suas lutas, preocupações e necessidades.

Pois bem, para os leitores, revi essa história (certamente incompleta) para contribuir com a tão necessária formação de futuros dirigentes, ou seja, dos “maquinistas”.

Para finalizar: perdemos um. Tito Prado, militante histórico do trotskismo peruano. Sua morte ocorre quando Pedro Castillo vence as eleições. Aqui está a análise e a homenagem.

O triunfo de Castillo e Tito Prado

A união entre a experiência e o surgimento de novos quadros. A história não acaba!

O título pareceria estranho, e é pra quem não conhece a história do trotskismo peruano e do Tito. Por isso, não se pode fazer a conexão entre um e outro sem uma explicação. Para quem escreve a ligação é imediata. Tito Prado foi um militante trotskista com mais de 50 anos de luta no Peru e faleceu há alguns dias. Pedro Castillo, um dirigente surgido na greve dos professores do Peru em 2017, acaba de vencer as eleições peruanas impondo uma severa derrota ao establishment peruano, e aos seus mentores, entre eles Vargas Llosa que chamou a votar na filha do Ditador Fujimory para impedir o avanço do comunismo.

Se algo tem de grande esse triunfo é que o povo do Peru profundo não caiu no truque da ameaça da bandeira vermelha em solo peruano. Juntou forças e derrotou o neoliberalismo corrupto, forma que adquiriu a dominação capitalista no Peru rico roubado. Melhor, saqueado historicamente pelos imperialistas.

O triunfo do professor abre um período de expectativas radicais, de esperança para todos os anti-imperialistas e os povos latino-americanos; certamente haverá no Peru uma alta polarização social onde a direita vai fazer de tudo para desestabilizar o governo (mesmo possivelmente chamando os quartéis). Mas o povo peruano saberá responder. Já venceu as ruas e vai entender que o destino do futuro governo se joga nestas. A experiência com o chamado progressismo já foi feita quando Humala subiu ao poder e se entregou aos grandes capitalistas, entre eles as multinacionais brasileiras. Com Humala tornou-se real uma frase que repetia Hugo Blanco: “há governantes que são como violinistas, pegam o violino pela esquerda e tocam com a direita”. Assim foram os progressistas, entre eles Ollanta Humala.

Com as experiências se aprende! Trabalhadores, camponeses e indígenas peruanos precisam não só de força e consistência na sua luta, mas também das contribuições de dirigentes experientes que tenham vivido estes cinquenta anos de lutas peruanas e internacionais. Peru tem uma longa história de lutas que ganharam força depois da revolução cubana e o trotskismo está ligado a elas desde a revolução agrária nos vales da Convenção e Lares no departamento do Cuzco. Foi lá que Hugo Blanco dirigiu os camponeses e fez a reforma agrária. As terras foram recuperadas, expulsas dos gamonais (latifundiários) que as possuíam e mandavam nestes vales. Outra grande jornada também estrelada em peso pelo trotskismo foi à construção do FOCEP (Frente Operário e Camponês Peruano) no início dos anos em que também militava Hugo Blanco e Tito Prado. Mais recentemente no início do século a Marcha dos Cuatro Suyos contra a ditadura de Fujimory.

Nesta nova situação que se vive na América Latina, e Peru como parte dela, nós, internacionalistas, temos que apostar na união entre a experiência e as novas forças.

A história não se perde. Novos quadros continuam…


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Pedro Micussi