Doutrina de segurança nacional: da construção do inimigo externo à conexão repressiva nas ditaduras de segurança nacional na América Latina entre os anos 1960-80
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Doutrina de segurança nacional: da construção do inimigo externo à conexão repressiva nas ditaduras de segurança nacional na América Latina entre os anos 1960-80

Uma análise das ditaduras de segurança nacional na América Latina a partir da perspectiva da conexão repressiva.

Patrick Veiga 28 jun 2021, 16:23

Introdução

Os anos entre 1960 e 1980 marcam um longo período no qual floresceram diversos regimes autoritários na América Latina sob a forma de ditaduras de segurança nacional. O período precedente foi marcado pela disseminação de ideias antiimperialistas, nacionalistas e socialistas, tendo como pano de fundo a Guerra Fria e como elementos materiais a crise do modelo de acumulação do capital e do populismo. A vitória da Revolução Cubana representou um ponto de inflexão importante, colocando na ordem do dia os debates sobre tática e estratégia nos setores de esquerda e progressistas. Surgiram, com isso, novas frentes de esquerda e organizações políticas de maior ou menor radicalidade, variando de uma via pacífica ao socialismo até a tática de guerrilhas. O ambiente de convulsionamento social no contexto do mundo bipolar, levou o imperialismo estadunidense a uma postura de intervenção mais ou menos direta no território latino-americano com o objetivo de manter seu território de influência, contribuindo militar e financeiramente com seus aliados na região baseados no medo da “cubanização”. A Doutrina de Segurança Nacional foi o corpo teórico que embasou as táticas da reação com vistas a aniquilar toda e qualquer forma de ações políticas contrárias ao interesse do imperialismo norte-americano. A DSN foi também a base teórica das ditaduras de segurança nacional, conectadas por uma rede de colaboração repressiva com fronteiras ideológicas em que não havia garantias de direito. Este artigo tem o objetivo de demonstrar como, a partir da Doutrina de Segurança Nacional, foi possível criar essa conexão repressiva a partir da criação de uma noção de inimigo interno, conceito amplo e impessoal, entendido não somente como um inimigo nacional, mas sim um inimigo dos valores e da sociedade ocidentais. Procura também demonstrar a importância da ditadura brasileira para a formação desta rede colaboracionista utilizando a perspectiva da conexão repressiva, a qual possibilita um estudo de conjunto do período destacado.

Convulsão social e doutrina de segurança nacional na América Latina

O contexto político e social da América Latina na década de 1960 foi profundamente marcado pela crise do modelo de acumulação de capital implementado pelo imperialismo norte americano nos países do Cone Sul com a colaboração das burguesias nacionais, e profundamente influenciado pela tensão resultante da Guerra Fria. O ambiente de múltiplas crises: econômica, política, social e ideológica, propiciaram um terreno fértil para o surgimento de movimentos contestatórios de caráter nacionalista, antiimperialista e ou socialistas. Muitos destes, influenciados pela vitória da Revolução Cubana em 1959. A vitória de Sierra Maestra impactou não somente os setores revolucionários e progressistas, mas também as elites locais e o imperialismo estadunidense. O cenário de convulsionamento social e as demandas por soberania nacional e autodeterminação dos povos foi visto pelos Estados Unidos como um perigo importante para os seus interesses no Cone Sul, visto como sua área de influência, tão fundamental no cenário internacional de bipolaridade. Como forma de reação, uma nova postura foi adotada, apostando no desenvolvimento e na diminuição das desigualdades sociais, entendidas como um barril de pólvora prestes a explodir. Duas formas principais de políticas internacionais foram implementadas, configurando um esforço financeiro e militar para manter a estabilidade e a ordem vigentes no continente. A primeira delas foi a Aliança para o Progresso, liberando empréstimos em troca de alinhamento político-ideológico. Quando este fracassava, a segunda linha de ação era a intervenção militar mais ou menos direta.

O grande medo dos Estados Unidos, bem como das burguesias nacionais, era a “cubanização” da América Latina. Com o fim de evitar o avanço dos movimentos de contestação e a radicalização dos movimentos sociais foram criados centros de treinamento e de preparação de militares dirigidos por especialistas norte-americanos. Segundo Padrós (2005):

A defesa dos interesses estadunidenses na América Latina – sua zona de influência abalada desde 1959 – levou a superpotência capitalista a considerar a política interna de cada país da região como extensão da sua política externa, ou seja, os assuntos de segurança interna desses países passaram a ser entendidos como sendo da sua segurança. Sendo assim, apoiando-se nos setores confiáveis da classe dominante, os EUA estimularam a adoção da idéia de que havia uma “guerra interna” a ser enfrentada

A partir desta breve descrição do cenário latino americano dos anos 1960, é possível perceber quais são as bases materiais para o desenvolvimento da Doutrina de Segurança Nacional, o corpo teórico das ditaduras de segurança nacional emergidas no Cone Sul entre as décadas de 1960 e 1980. Padrós e Marçal (2000) definem a DSN da seguinte forma:

A Doutrina de Segurança Nacional, foi o esqueleto teórico que fundamentou os regimes militares justificando a emergência e o papel protagônico das Forças Armadas no conturbado cenário político do Cone Sul a partir dos anos 60. Refletindo a lógica bipolar da Guerra Fria e as novas estratégias de dominação dos EUA sobre a América Latina, a DSN disseminou-se através das Academias e Escolas de Guerra formando quadros especializados e vinculando-se, organicamente, a uma série de conceitos geopolíticos básicos: a lógica da bipolaridade e da delimitação das zonas de influência das superpotências; a satanização do inimigo; a identificação do Estado e da nação como organismos vivos passíveis de contaminação pelo vírus comunista (justificando como resposta, um virulento anti comunismo).

Desta definição, pode-se extrair os elementos principais que caracterizam esta categoria: lógica bipolar, satanização do inimigo e anti comunismo. Embora estes elementos possam ser encontrados em maior ou menor grau em estudos de caso, no geral, estão interligados entre si. Antes ainda da satanização do inimigo, observa-se que houve a própria criação deste. Geralmente, o inimigo é identificado como o comunismo, obviamente baseado em elementos da realidade como o regime cubano, a influência da União Soviética e a disseminação das organizações guerrilheiras, bem como o surgimento de diversas frentes de esquerda no território latino-americano. Porém, há uma superestimação da ameaça comunista, pois, se é verdade que havia muitos movimentos desse tipo, também evidencia-se que muitos não tinham conexão entre si e até mesmo divergiam em questões táticas e estratégicas. Enquanto os PCs apostavam no desenvolvimento nacional e até mesmo na aliança com as burguesias nacionais, outros consideram a luta armada a tática principal. Ainda uma terceira via era possível, a chamada “via chilena ao socialismo” de Allende, a qual considerava possível uma transição  pacífica do capitalismo ao socialismo por meio de reformas estruturais após a vitória eleitoral. Outro elemento a se observar é que a noção de comunismo foi deturpada pela Doutrina de Segurança Nacional para que este surgisse como uma ameaça aos valores tradicionais do Ocidente como a família, o cristianismo e as instituições democráticas. Ainda uma última observação: embora o inimigo interno fosse identificado, geralmente, com o comunismo, este era personificado de acordo com a conjuntura de cada país, podendo ser o movimento estudantil, os políticos de oposição a guerrilha armada, etc.

A figura do inimigo interno varia de acordo com as necessidades pontuais da conjuntura e de cada experiência nacional. Assim, podem ser guerrilheiros, comunistas, políticos populistas, sindicalistas, estudantes, etc. De qualquer forma, a sua identificação cumpre uma função altamente utilitarista, como se constata em outros momentos da história. Para as ditaduras de Segurança Nacional, o inimigo interno de plantão possibilita: manter a coesão daqueles que se sentem ameaçados diante do avanço de projetos radicais; justificar uma permanente situação de militarização e repressão sobre a sociedade; explicar os fracassos ou exclusões das políticas governamentais pela necessidade de combater a subversão; enquadrar a sociedade  dentro de uma permanente situação de exceção que restringe as liberdades e os direitos individuais e sociais, etc. (PADRÓS; MARÇAL. 2000, pp. 13-14)

 Inimigo interno e terror de Estado

Compreende-se, assim, como a noção de inimigo interno nos marcos da bipolaridade foi útil à legitimação frente às elites e setores médios das ações repressivas e do fechamento do regime político. Mas, se é verdade que a DSN apresentou o inimigo interno, é igualmente verdade que ela promoveu também a imagem do herói: as forças armadas. A crise do populismo e a noção de que as instituições democráticas não dariam conta de restabelecer a necessária estabilidade política e social em um cenário de convulsão e de forte ameaça, nada mais legítimo que uma intervenção contundente com a utilização da força. O golpe civil-militar no Brasil em 1964 inaugurou uma onda de intervenções militares e de desmonte e/ou controle tutelar das instituições representativas do regime burguês, como o Parlamento e o judiciário, pelas forças armadas, treinadas e financiadas diretamente pelos Estados Unidos.

O golpe militar no Brasil representou uma derrota histórica para o movimento de massas. Empreendeu-se pela ditadura uma dura perseguição e repressão dos setores opositores representados por movimentos sociais, partidos de oposição, sindicatos e intelectuais. A prática de perseguição política, repressão e aniquilamento da oposição é definida por diversos autores como Terror de Estado.  A partir do texto dos Professores Enrique Padrós e Fábio Marçal (2000), é possível compreender alguns elementos que caracterizam o TDE .

  • permanente situação de exceção;
  • eliminação das garantias individuais e do Estado de Direito por meio de práticas violentas;
  • instrumentalização da polícia, do exército, do judiciário e de grupos paramilitares pelo Estado com fins repressivos;

Em outro texto, escrito a partir da sua tese de doutoramento, Enrique Padrós (2005) reproduz a definição de Miguel Bonasso:

[…] um modelo estatal contemporâneo obrigado a transgredir os marcos ideológicos e políticos da repressão “legal” (consentida pelo marco jurídico tradicional) e deve recorrer a “métodos não convencionais”, extensivos e intensivos, para eliminar a oposição política e o protesto social, seja esta armada ou desarmada.

Com isso, o Terror de Estado configura-se enquanto uma prática intensiva, extensiva e institucionalizada de violência física e simbólica por parte do Estado com fins de desarticular e, em alguns casos, aniquilar qualquer forma de oposição política em prol de uma suposta unidade nacional domesticada sob o signo do imperialismo norte americano. É a materialização, a expressão real da Doutrina de Segurança Nacional, entendida como sua base teórica. Os principais instrumentos utilizados pela repressão foram a tortura, a execução sumária sem direita à defesa, o estupro e a censura.

Ditaduras de segurança nacional e conexão repressiva no Cone Sul

O golpe de 1964 no Brasil gerou uma onda de exilados políticos nos países vizinhos, tendo como centro principal o Uruguai. Os exilados tinham o objetivo de manter suas ações políticas ao mesmo tempo em que denunciavam internacionalmente as ingerências do governo instaurado pelos militares em solo brasileiro, bem como a colaboração direta dos Estado Unidos na realização do golpe. De acordo com Débora Strieder Kreuz (2020),  naquele momento considerava-se que a intervenção militar não duraria muito tempo. Ainda segundo Kreuz, o exílio tornou-se um espaço de resistência. A ação da oposição desde o exterior foi vista como nociva para a ditadura brasileira, levando à criação de mecanismo de vigilância e controle  em consonância com a concepção de “fronteira ideológica” da Doutrina de Segurança Nacional. Segundo Padrós (2014), o golpe e o subsequente exílio dos opositores “iniciou a irradiação de uma espiral colaboracionista entre governos e setores políticos conservadores da região, costurada pela Doutrina de Segurança Nacional”. No mesmo artigo, Padrós demonstra como o Itamaraty e o DOPS exerceram uma função fundamental para criar uma rede de repressão e perseguição política extre-fronteiriça. Dessa forma, o Brasil aparece como uma peça fundamental no tabuleiro político da América Latina, com uma importância estratégica basilar para os interesses imperialistas. As noções de inimigo interno e medo da cubanização foram elementos mobilizadores e articuladores das redes de colaboração contra-insurgentes. A conexão repressiva, aprofundada pela multiplicação das Ditaduras de Segurança Nacional no Cone Sul a partir do início da década de 1970 constituiu a exteriorização do Terror de Estado, criando uma vasta região sem fronteiras e garantias de direitos. Para Kreus (2000):

No mundo polarizado pela Guerra Fria, a Doutrina de Segurança Nacional preconizava que o inimigo não se encontrava mais em outro país, mas seria o portador da ideologia alheia aos princípios ocidentais: o comunismo. Esse seria o “inimigo interno”. Para combatê-lo, a noção de fronteira física era insuficiente, por isso a necessidade de estabelecer “fronteiras ideológicas” e persegui-lo independente do local em que estivesse. (KREUS, 2000, p.172)

Dessa forma, entende-se como as concepções da Doutrina de Segurança Nacional contribuíram para a construção de um consenso entre as Ditaduras de Segurança Nacional e as elites locais, bem como de grupos conservadores sobre a necessidade de vigiar, controlar e perseguir aqueles identificados como inimigos da sociedade e dos valores ocidentais, criando uma vasta região em estado de exceção permanente.

Enrique Serra Padrós (2014) demonstra como a participação do Brasil nessa conexão repressiva foi profunda e extensiva. A ditadura brasileira contribuiu com formação, informação e participação direta nos golpes militares na Bolívia, no Chile e no Uruguai. Além disso, o Centro de Informação do Exterior  (Ciex), serviço secreto do Itamaraty, foi uma instituição importante de vigilância, perseguição e espionagem dos Brasileiros exilado, chegando a ter atividades na França e em Portugal, o que demonstra a extensão do terrorismo de Estado perpetrado pela ditadura brasileira.

Considerações finais

Em tempos de instabilidade social e política decorrentes da crise da hegemonia norte americana em disputa com o imperialismo chinês e do aprofundamento dos tensionamentos sociais na América Latina exemplificados pelos levantes recentes ocorridos no Chile, na Bolívia, no Peru e na Colômbia, bem como do surgimento de uma nova “velha” direita conservadora, negacionista, neoliberal e entreguista é necessário esclarecer os mecanismos e processos que resultaram em um tão longo período de exceção do Estado de Direito e de profundas violações dos Direitos Humanos. É necessário trazer à luz as práticas repressoras que conectaram todo um continente por meio de uma rede de colaboração baseada na Doutrina de Segurança Nacional. O conceito de conexão repressiva tem um valor analítico fundamental, demonstrando a importância de um estudo de conjunto das diversas ditaduras de segurança nacional as quais, embora tivessem objetivos e interesses específicos estavam ligadas por uma rede de colaboração amalgamadas pela Doutrina de Segurança Nacional e pelas práticas de terrorismo de Estado constituindo um amplo território ideológico em que as fronteiras físicas tinham menor importância. Além disso, é importante destacar e aprofundar os estudos sobre a participação do Estado brasileiro na preparação e execução dos mais diversos golpes de Estado na região, além do papel subimperialista desempenhado e o seu protagonismo na construção da rede repressiva que vitimou milhares dentro e fora do país. O

BIBLIOGRAFIA

KREUS, Débora. O exílio brasileiro (1964-1979): breves notas para o debate. In: Revista de la Red de Intercátedras de Historia de América Latina Contemporánea

Año 7, N° 13. Córdoba, Diciembre 2020-Mayo 2021.

PADRÓS, Enrique Serra. A ditadura brasileira: da conexão repressiva de segurança nacional à Operação Condor. In:ARONNE, Luciano; MOTTA, Rodrigo, P. Sá (Orgs.). Autoritarismo e Cultura Política. Rio de Janeiro: FGV, 2014.

PADRÓS, Enrique Serra; MARÇAL, Fábio Azambuja. Terror de Estado e Doutrina de Segurança Nacional: os “anos de chumbo” no Brasil e na América Latina. Ciências & Letras. Revista da Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras, Porto Alegre, n.28, p. 55/99, jul./dez. 2000. PADRÓS, Enrique Serra. Repressão e violência: Segurança Nacional e Terror de Estado nas ditaduras latino-americanas. In: FICO, Carlos et al., Ditadura e democracia na América Latina: balanço histórico e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2008. 396 p.


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