Nicarágua: Ortega prende candidatos da oposição antes da eleição de novembro de 2021
Daniel Ortega, que concorre a um quarto mandato consecutivo como presidente da Nicarágua, não quer correr o risco de perder.
Daniel Ortega, que concorre a um quarto mandato consecutivo como presidente da Nicarágua – seria o quinto no total –, não quer correr o risco de perder. Apesar de estar na presidência desde 2007, por quase 14 anos, de controlar não apenas o Executivo, mas também a Assembleia Nacional e a Suprema Corte, e de ele, sua família e seus amigos serem os proprietários da maioria das empresas de mídia do país, Ortega ainda sente que é necessário prender cinco dos mais importantes candidatos presidenciais de oposição, além de outros líderes opositores. Os presos deste mês abrangem todo o espectro político, da direita à esquerda, vários são antigos camaradas do partido de Ortega, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN). É chocante o medo que o ditador tem do povo da Nicarágua.
Enquanto há décadas não há nada de progressista ou de democrático sobre Daniel Ortega e a FSLN, a onda atual de prisões de oponentes políticos representa um novo desenvolvimento ainda mais autoritário. Desde os anos 1990, Daniel Ortega moveu-se à direita, envolvendo-se em negócios corruptos com partidos capitalistas, formando alianças tanto com capitalistas domésticos como com a ala direita da Igreja Católica, protegendo os interesses de capitalistas domésticos e estrangeiros. Ele mudou a constituição do país para tornar possível sua continuação no poder e permitir que sua esposa Rosario Murillo pudesse tornar-se sua vice-presidente. Houve assédio a seus oponentes no passado, mas nunca a completa repressão de todos os partidos de oposição como se assiste agora.
O governo argumenta que seus oponentes estão tentando solapar a soberania do país e estão “incitando a interferência estrangeira em assuntos internos, solicitando intervenção militar e se organizando com financiamento externo”. Os presos têm sido acusados de vários crimes ilusórios. Enquanto não há dúvida de que muitos de seus oponentes gostariam de ver os Estados Unidos fazerem pressão suficiente para expulsar Ortega, os partidos de oposição não trabalham por uma intervenção militar. Eles querem tirar Ortega por meio de uma eleição justa.
Também é verdade que a agência National Endowment for Democracy (NED) do governo dos Estados Unidos e a USAID fornecem dinheiro para várias ONGs nicaraguenses, muitas das quais podem opor-se às políticas de Ortega, mas não é o dinheiro estadunidense que determina ou mesmo influencia de modo relevante a oposição. É Ortega quem criou seus próprios oponentes durante os últimos 14 anos e voltou contra si muitos, talvez a maioria, dos nicaraguenses. Sem o Departamento de Estado e a CIA, a burguesia nicaraguense é perfeitamente capaz de apresentar seu próprio programa político de mudança – ainda que boa parte dela esteja vinculada a Ortega – e, do mesmo modo, o povo nicaraguense provou em 2018 que ele pode criar um movimento de massas tremendamente poderoso sem depender de ninguém.
Ortega e a crise nicaraguense
A repressão de Ortega sobre a oposição surge quando a Nicarágua experimenta uma série de crises econômica, política e de saúde pública. Em 2018, ocorreu uma rebelião política nacional, envolvendo centenas de milhares de nicaraguenses de todas as classes sociais em todo o país, que protestaram contra a violenta repressão, naquele ano, das manifestações de idosos e estudantes que se opunham a uma reforma da previdência. Para reprimir a rebelião subsequente, a polícia e a FSLN de Ortega assassinaram 300 pessoas, feriram duas mil, prenderam e torturaram centenas de outras e efetivamente evitaram quaisquer protestos da oposição no país. A mídia opositora foi fechada e ONGs foram ameaçadas. Tudo isso levou 100 mil nicaraguenses a fugir do país.
Então, em 2020, ocorreu a crise da pandemia da Covid-19, com o governo de Ortega flagrantemente desrespeitando as recomendações sanitárias internacionais, ignorando medidas de distanciamento social e organizando eventos públicos em ambientes externos e internos. Cerca de 700 médicos nicaraguenses assinaram uma carta “instando o governo a reconhecer que o vírus espalhou-se na Nicarágua e tomar medidas preventivas recomendadas pela Organização Mundial de Saúde para limitar sua expansão”. Baseado num estudo sobre excesso de mortes, veículos de imprensa acusaram o governo da Nicarágua de também ter falhado na vacinação de sua população. “A Nicarágua administrou pelo menos 167.500 doses de vacinas da Covid até agora. Assumindo que cada pessoa necessita de duas doses, isso é suficiente para vacinar apenas 1,3% da população do país. O país agora está programado para receber, por meio da iniciativa Covax, vacinas suficientes para cobrir 20% de sua população.
Como em outros países, a pandemia da Covid-19 também trouxe uma crise econômica. Em 2020, a Nicarágua, que já era o segundo país mais pobre no hemisfério (à frente apenas do Haiti), com um PIB per capita de menos de US$ 2 mil, viu sua economia afundar 4%. Além da pandemia da Covid-19, em novembro de 2020, os furacões Eta e Iona, com ventos recordes, devastaram partes do país. A crise econômica da Nicarágua também resulta, em parte, no entanto, da severa depressão econômica na Venezuela, que, com os presidentes Hugo Chávez e Nicolás Maduro, fornecera bilhões de dólares ao governo da Nicarágua. Lidando com sua própria situação econômica desesperadora, a Venezuela não pode mais ser tão generosa.
A Nicarágua há décadas depende de assistência estrangeira de governos e ONGs para tentar lidar com a ampla pobreza e os problemas sociais do país. Mas, depois da insurreição nacional de 2018 contra o governo Ortega e a subsequente repressão, muitas ONGs que ajudavam no desenvolvimento econômico ou nos serviços sociais, retiraram-se do país por conta do assédio do governo ou por sua própria vontade, aumentando as dificuldades econômicas do país.
A repressão
Claramente, Ortega teme que essas várias crises criem um descontentamento profundo que possa levar à vitória eleitoral de algum de seus oponentes – então, ele eliminou-os da disputa. Entre tais candidatos presos por Ortega, estão algumas das mais importantes figuras políticas do país. Cristiana Chamorro foi colocada em prisão domiciliar no início de junho. Seu pai, Pedro Joaquín Chamorro, editor do jornal mais importante do país, La Prensa, foi assassinado em 1978, presumivelmente por ordem do então presidente e ditador Anastasio Somoza. Sua mãe derrotou o presidente Daniel Ortega na eleição de 1990, governando até 1997. Não há dúvida de que Ortega temia que Cristiana Chamorro, rica, influente e carregando o famoso nome de sua família, poderia derrotá-lo na eleição presidencial.
O governo de Ortega também deteve outros candidatos presidenciais moderados ou conservadores: Arturo Cruz, Félix Maradiaga e Juan Sebastián Chamorro. Outras figuras políticas conservadoras presas são: José Adán Aguerri, ex-presidente do Conselho Superior das Empresas Privadas (Cosep), Violeta Granera e José Pellais.
À esquerda, o regime de Ortega prendeu várias figuras associadas ao partido de oposição UNAMOS, criado por dissidentes da FSLN. Dois dos presos são verdadeiros heróis da Revolução Sandinista de 1979: Dora María Téllez, 65, e Hugo Torres, 73, ambos antigos comandantes da FSLN. Torres afirmou numa mensagem em vídeo gravada e distribuída nas redes sociais: “Esses são atos desesperados de um regime que se sente naufragando”. Ele continuou: “Há 46 anos, eu arrisquei minha vida para retirar da cadeia Daniel Ortega e outros presos políticos. E, em 1978, mais uma vez eu arrisquei minha vida, junto com Dora María Téllez, para libertar outros 60 presos políticos. Mas assim é a vida. Aqueles que antes defendiam princípios hoje os traem”.
Outros presos da esquerda incluem o antigo líder revolucionário do movimento do final dos anos 1970, Victor Hugo Tinco, e duas jovens mulheres, Suyen Barahona, presidente do Movimento de Renovação Sandinista (MRS), e Ana Margarita Vigil, a ex-presidente do grupo.
A resposta dos EUA
Ao longo da maior parte da presidência de Ortega nos anos 2000, os Estados Unidos e a Nicarágua mantiveram relações amistosas. Os dois países cooperaram em várias áreas, incluindo a repressão sobre o tráfico de drogas. Ortega também aceitou alguma assistência militar estadunidense, bem como tolerou a presença de várias agências dos Estados Unidos, como a USAID. A razão da tolerância dos EUA com o regime de Ortega, e vice-versa, era que isso era bom para os negócios estadunidenses e para a classe capitalista nicaraguense. Sessenta por cento do comércio da Nicarágua depende dos Estados Unidos. Ortega poderia ser útil para facilitar este comércio internacional e para evitar a organização de sindicatos independentes de trabalhadores nas maquiladoras instaladas no país.
Agora, no entanto, a Nicarágua tornou-se um problema. Os Estados Unidos preferem países com ao menos um verniz de instituições e procedimentos democráticos e desejam paz social. Mas, desde 2018, Ortega não tem sido capaz de entregar nenhum deles. Então, não é surpreendente que o governo dos Estados Unidos tenha tomado medidas duras contra as lideranças do governo Ortega. Após a violenta repressão da insurreição nacional de julho de 2018, o governo estadunidense impôs sanções a Daniel Ortega, sua esposa e vice-presidente Rosario Murillo e a altos agentes do governo.
Este mês, o secretário de Estado Antony Blinken instou Ortega a libertar os candidatos presidenciais e outros líderes de oposição ao mesmo tempo em que anunciou novas sanções contra membros do governo Ortega e sua família, incluindo a filha do presidente, Camila Ortega Murillo. Tais sanções do Departamento do Tesouro dos Estados Unidos foram direcionadas apenas a cerca de 30 indivíduos nomeados e não afetam a população da Nicarágua como um todo.
“Como essas sanções demonstram, há custos para aqueles que apoiam ou conduzem a repressão promovida pelo regime de Ortega”, afirmou Blinken. “Os Estados Unidos continuarão a usas todas as ferramentas diplomáticas e econômicas disponíveis para apoiar os apelos dos nicaraguenses por maior liberdade e responsabilidade, bem como eleições livres e justas”.
Nós sabemos que o governo dos Estados Unidos está menos interessados em eleições e democracia do que em manter seu papel como poder dominante no Hemisfério Ocidental e que sua real preocupação é que o governo Ortega tem criado instabilidade num canto pequeno, mas estratégico, do império. Tal instabilidade poderia levar tanto a uma rebelião popular quanto a um governo de centro-esquerda, ou ao envolvimento de uma intervenção estrangeira de um grande poder, como a Rússia ou a China, nenhum dos quais os Estados Unidos desejam.
Depois, há a China, cuja influência diminuiu. Em 2013, Ortega aprovou na Assembleia Nacional um plano para um canal transoceânico a ser construído pelo Grupo de Investimento para o Desenvolvimento do Canal da Nicarágua (HKND), liderado pelo empresário chinês Wang Jing. O canal, cujas operações estavam previstas para começar no ano passado, tornou-se um fiasco total e alguns chamam de golpe com o objetivo de melhorar a imagem de Ortega, enriquecê-lo e a seus amigos. Foram protestos de fazendeiros e ambientalistas contra o canal que levaram aos primeiros grandes protestos públicos contra Ortega. O canal parece ter sido abandonado em 2017.
De todo modo, é claro que, como os editores de Against the Current escreveram recentemente, com o presidente Joseph Biden, “o Império está de volta”, e seu governo pode tirar vantagem da situação atual da Nicarágua para exercer maior influência. Isto provavelmente aconteceria numa aliança com a classe capitalista nicaraguense representada pelo Conselho Superior da Empresa Privada (Cosep) embora também requereria a intermediação da Igreja Católica. Não há dúvida de que o Departamento de Estado e a CIA já estão olhando para os líderes nicaraguenses que eles podem atrair ou subornar a fim de criar uma oposição capitalista segura que possa ajudar a facilitar a queda de Ortega e sua fuga, com sua família, para algum Estado amigo.
O que a esquerda deve fazer?
Nós, na esquerda estadunidense e internacional, ao mesmo tempo em que evitamos qualquer vínculo com o governo dos Estados Unidos e exigimos que ele mantenha-se afastado, devemos nos colocar ao lado dos movimentos pela democracia na Nicarágua. A Unidad Nacional Azul y Blanco, criada em outubro de 2018, formou uma organização guarda-chuva para a oposição, mas foi dominada por elementos empresariais conservadores. Um tanto mais à esquerda e ativista, a Articulación Nacional de Movimientos Sociales, que reuniu estudantes, camponeses, movimentos sociais, feministas, indígenas e grupos empresariais, provou-se mal sucedida para oferecer uma alternativa. Azul y Blanco, compreensivelmente, está focada nas eleições com o objetivo de destituir Ortega.
O povo trabalhador nicaraguense – em sua maioria, trabalhadores da agricultura e funcionários públicos, mas também alguns mineiros e trabalhadores industriais, bem como os pobres do campo e da cidade – não conseguiu criar seu próprio movimento político ou partido. A FSLN, que tentou por cima tornar-se tal partido nos anos 1980, converteu-se nos anos 1990 e 2000 simplesmente numa máquina eleitoral. Sem sindicatos independentes e enfrentando uma repressão severa desde 2018, tem sido virtualmente impossível criar uma presença política para o povo trabalhador.
A esquerda na Nicarágua é extremamente fraca. Os membros de esquerda da FSLN retiraram-se um após o outro durante os anos 1990 e 2000, formando grupos de oposição como o MRS, o Movimento de Renovação Sandinista, e o MPRS, o Movimento pelo Resgate do Sandinismo. Tais grupos, rejeitando Ortega e o autoritarismo da FSLN, tendem a adotar políticas social-democratas, apesar de haver alguns radicais neles. Eles falharam, no entanto, em estabelecer uma base entre o povo pobre e trabalhador da Nicarágua. No entanto, seus líderes, como Dora María Téllez e Hugo Torres – ambos agora presos – mantiveram viva a luta pela democracia e por uma sociedade mais progressista.
Durante o levante de 2018, alguns estudantes universitários envolvidos nos protestos em apoio aos idosos preocupados com a reforma da previdência, e depois das primeiras mortes de estudantes pela polícia nos protestos nacionais, passaram a interessar-se pelo socialismo de uma forma ou de outra. Até agora, contudo, com alguns deles forçados ao exílio e outros enfrentando a repressão do regime, eles não conseguiram criar um partido independente. Não há dúvida de que as lutas atuais criarão novos grupos de oposição e alguns deles podem tronar-se socialistas.
Nós devemos rejeitar o argumento, de alguns na esquerda, de que devemos apoiar o ditador Ortega e seu governo porque os Estados Unidos agora opõem-se a ele. Nós na esquerda, enquanto apoiamos o movimento geral por democracia política e direitos civis, devemos buscar identificar e trabalhar com grupos socialistas emergentes na Nicarágua e com trabalhadores, feministas, ativistas LGBTs, ambientalistas e outros. Como socialistas internacionais, nós apoiamos todos os movimentos por democracia, direitos civis e pelo socialismo.
Este artigo foi escrito para ser publicado simultaneamente por Against the Current/Solidarity[1] e New Politics[2]
[1] https://solidarity-us.org/nicaragua-ortega-arrests-opposition-candidates-ahead-of-november-2021-election/
[2] https://newpol.org/nicaragua-ortega-arrests-opposition-candidates-ahead-of-november-2021-election/