A democracia, uma abstração? (Comentário ao texto de Frei Betto sobre Cuba)

Rafael Bernabe comenta o texto de Frei Betto sobre Cuba e debate o problema da democracia.

Rafael Bernabé 19 jul 2021, 14:39

Via Momento Crítico

Recentemente vimos nas redes um texto de Frei Betto sobre os acontecimentos recentes em Cuba [1]. Vamos comentar algumas de suas abordagens.

O texto de Frei Betto traz ideias com as quais estamos de acordo. Faz uma eloquente apresentação das conquistas da Revolução Cubana, sobretudo, como ele destaca, se vista do ponto de vista da miséria a que o capitalismo condena a grande maioria da América Latina. Denuncia igualmente, com toda razão, o bloqueio e a agressão a que o imperialismo tem submetido Cuba por atrever-se a construir uma sociedade regida por regras distintas as do capitalismo. Sobre isso, como disse, não há nada que discordar. Estamos completamente de acordo com o autor.

Mas o texto falha quando aborda o tema central que pretende discutir: o problema da democracia. O argumento de Betto tem o mérito da franqueza e da clareza, franqueza e clareza que permitem detectar sua debilidade mais facilmente. Frei Betto diz que quando alguém levanta que não existe democracia em Cuba, sua resposta é descer da “abstração das palavras” à “realidade” e lembrar como em Cuba a educação, a saúde, o emprego e outras necessidades básicas são garantidas. O resto do texto não é mais que uma argumentação desse argumento central.

Esta perspectiva provoca várias objeções.

Em primeiro lugar, supõe-se que a democracia é uma abstração que pouco importa às grandes maiorias empobrecidas. Mas isso é falso, e é também uma calúnia contra essas maiorias. Essas maiorias apreciam, corretamente, a necessidade vital dos direitos democráticos, como a liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de organização sindical, entre outras. Valorizam essas liberdades quando as têm. As defende quando se veem ameaçadas. Lutam para reconquistá-las quando se perdem. Dizer que, para os defensores da Revolução Cubana, ou para os socialistas, estes direitos ou liberdades são abstrações secundárias, acessório prescindíveis, que se trata de um problema ao qual respondemos mudando o tema, é dizer a todos que se preocupam com a democracia que a revolução e o socialismo nada ou pouco têm a dizer sobre suas preocupações, que nada tem a oferecer às suas aspirações. Seria dizer que para atender essas aspirações e preocupações deveriam buscar, portanto, outros interlocutores, outros movimentos e projetos, já que no socialismo ou não tem espaço ou se relega a segundo (ou terceiro) plano, ou, eles são despachados como abstrações. O imperialismo – será necessário relembrá-lo? – busca apresentar-se como defensor da democracia e, para isso, assume a centralidade desse problema. Ao ignorar o problema da democracia, ou menosprezá-lo, ou evitá-lo, longe de atrapalhar, facilitamos seu trabalho de aproveitar fraudulentamente as aspirações dos povos.

Em segundo lugar, supõe que a democracia é uma abstração que não é parte essencial do projeto socialista; que é uma abstração dispensável pelo projeto socialista. Lembremos que o socialismo, ou a transição ao socialismo, supõe a propriedade coletiva dos meios de produção e sua gestão para o bem-estar de todos e todas, com respeito aos limites ecológicos que o meio ambiente do qual somos parte nos impõe. Na ausência de uma democracia socialista, essa gestão se fará através de uma mistura entre direção burocráticas e mecanismos de mercado. A curto prazo essa combinação pode ter certas conquistas; A médio prazo, limita tremendamente o potencial de uma economia não capitalista e no longo prazo desmonta a economia planificada. O que destrói até mesmo a capacidade de satisfazer as necessidades materiais concretas que Betto opõe a democracia como reino do concreto. A democracia socialista e autogestão das empresas é parte essencial de uma economia planificada saudável. Essa é precisamente a lição da história da União Soviética e de seu colapso, colapso que não foi resultado da intervenção militar, senão da decomposição interna do regime burocrático.

Todavia se escuta por aqui (não é o caso do texto de Betto) a ideia de que aquele colapso foi orquestrado pela CIA e Vaticano. Se sim, seria o caso de tirar conclusões muito pessimistas sobre o futuro da humanidade. Pretende-se que acreditemos que, depois de exercer o poder político por 70 anos, a classe trabalhadores soviética o entregou devido às manipulações de agentes inimigos. Por óbvio, isso nada tem a ver com o ocorrido. O problema era precisamente que fazia muito tempo que a classe trabalhadora não exercia o poder político, e sabia que não o exercia, e não identificava o Estado existente como seu. E a única maneira de evitar esse divórcio, esse processo de burocratização, é através da democracia, da participação ativa na gestão estatal.

Também se escuta a ideia de que as liberdades democráticas são burguesas. Mas isso é igualmente falso. O socialismo pressupõe o governo da classe trabalhadora. Mas, concretamente, como pode governar a classe trabalhadora? Como pode decidir que política monetária, tributária ou salarial se deve adotar, ou a que setores econômicos se devem dar prioridade, ou que serviços devem ser gratuitos ou quais devem ser cobrados, ou que papel tem a pequena empresa privada, entre muitos temas? A única forma da classe trabalhadora decidir sobre esses temas é através do debate aberto, a discussão pública, a circulação de posições e propostas distintas, a possibilidade de se associar para promover determinadas posições, eleição de delegados de acordo com os cargos que assumiram. Essas não são abstrações. Essa é a única maneira que os produtores podem governar a si próprios. Essas não são liberdades burguesas, são liberdades trabalhadoras, são liberdades socialistas. Em última análise isso corresponde ao fato de que o socialismo é muito mais do que um governo que se ocupa das necessidades do povo. É um processo de autoemancipação, que requer, portanto, a livre participação dos protagonistas desse processo.

Seria um grave erro e uma injustiça negar que o fator fundamental que explica os problemas materiais que enfrenta Cuba, a escassez e as faltas de recursos, foi e continua sendo esse bloqueio e essa agressão. Cuba é uma fortaleza sitiada e boa parte de seu povo está à beira da resistência. Seria absurdo exigir a Cuba uma democracia socialista modelo em condições de agressão e isolamento extremo. O levantamento desse bloqueio é, portanto, uma tarefa prioritária dos revolucionários do ponto de vista tanto de melhorar as condições materiais do povo cubano, como abrir caminho para uma democracia socialista mais ampla, problema que não pode ser ignorado. Dito de outro modo, o bloqueio deve ser combatido, mas não às custas de menosprezar o problema da democracia; não às custas de menosprezar o perigo da burocratização.

Mesmo quando a agressão impõe limite à democracia, o correto é falar claramente e dizer assim mesmo, em vez de converter a necessidade em virtude e pensar ou argumentar que esses limites são parte de um modelo superior. E sobre isso temos que apontar que entre uma democracia plena e o monolitismo existem graus e estações intermediárias. Sobre todos os temas indicados (e outros) há diferenças legítimas entre revolucionários, entre socialistas, entre anti-imperialistas, entre comunistas. E creio que em Cuba pode existir mais espaço do que agora existe para um debate franco e livre, entre revolucionários sobre muitos temas. Isso já não se pode evitar. A pergunta é se a revolução poderá incorporá-lo às suas estruturas e fortalecer-se.

Enfim, quando se pergunta sobre a democracia, os socialistas não deveriam responder que é uma abstração e mudar o tema. Devemos assumir claramente a defesa da democracia como parte do projeto socialista, como parte essencial do projeto socialista. E isso implica não abandonar, senão, ao contrário, sublinhar os limites da democracia capitalista ou burguesa. E deve ser feito, mesmo para reconhecer que certas circunstâncias impuseram desvios das normas da democracia socialista.

Lembro que no início da década de 1980, o socialista belga e economista marxista Ernest Mandel argumentava que a burocracia soviética enfrentava sérios problemas para assimilar a revolução do computador: os computadores eram necessários para modernizar todo aparelho produtivo e elevar as habilidades da classe trabalhadora, mas cada computador veio acompanhando de uma impressora. E cada impressora era uma fonte potencial de uma publicação não autorizada. O mesmo ocorre com a internet. Já não podemos viver sem ela. O socialismo terá que se construir com ela. Para isso temos que abrir o espaço ao debate e a discussão. Me consta que em Cuba há muitas vozes socialistas e patrióticas, mas críticas e descontentes com as políticas vigentes. São vozes marxistas e anti-imperialistas.  Nada ganha a revolução fazendo-as viver numa zona cinzenta entre o reconhecimento ou a ilegalidade. Estou de acordo com algumas, em desacordo com outras. Mas é necessário abrir espaço para que se escutem.

A unidade tem que incluir essa diversidade. Como disse em atividades no meu país: a revolução tem que se renovar, para isso deve ser defendida. A revolução deve ser defendida, por isso deve ser renovada.

Notas

[1] Frei Betto, “Cuba resiste” (14 julio 2021) Cuba resiste | Cubadebate. Hace 18 años publicamos un texto titulado “Notas sobre Cuba y la democracia socialista” (2003). Aunque se refería a otra coyuntura, muchos de sus planteamientos nos parecen que siguen vigentes. Notas sobre cuba y la democracia socialista – Viento Sur. Ver también del mismo momento “Crítica a la crítica de James Petras” (2003) Critica a la crítica de James Petras – Viento Sur

[2] Se alguém pensa que me desvio dos clássicos ou da “ortodoxia”, os convido a reler o Estado e a Revolução e os últimos escritos de Lenin, que tratam sobre este tema. Lenin foi o primeiro a descobrir a União Soviética como um estado da classe trabalhadora com deformações burocráticas.


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