O sentido da Reforma Administrativa proposta pelo governo Bolsonaro

O sentido da Reforma Administrativa proposta pelo governo Bolsonaro

Potiguara Lima escreve sobre o sentido da Reforma Administrativa proposta pelo governo Bolsonaro.

Potiguara Lima 19 ago 2021, 14:46

            O Brasil tem passado por sucessivas crises políticas nos últimos anos. Na superfície, a ideologia dominante tenta nos fazer crer que as crises são devidas à políticos ou partidos inábeis e/ou mal intencionados. Tentaremos refletir aqui que o processo de crises no Brasil é profundo e perene e impede a dissociação entre política, economia, sociedade e meio ambiente.

            O que pode trazer consequência para o debate e para a ação política nos próximos tempos pode se resumir a um diagnóstico e um programa: “que tipo de país está sendo construído” e “que tipo de país queremos construir”.

            O ponto inicial para qualquer reflexão sobre o Brasil contemporâneo é a constatação de que as principais decisões tomadas pelos últimos governos desfazem pactos sociais estabelecidos na Constituição de 1988. O multimilionário Henrique Meirelles, que assumiu o ministério da Fazenda em diferentes governos nas últimas décadas, sem qualquer consideração sobre a regressividade da tributação brasileira e sobre a importância do direitos constitucionais para reparar dívidas históricas com o povo brasileiro, disse em 2016: “Ou mudamos a constituição ou não resolvemos a dívida”. A fala de Meirelles, na condição de principal ministro do governo Temer, sintetizava o programa “Ponte para o Futuro” apresentado no final de 2015 que anunciava o seguinte:

“Vamos precisar aprovar leis e emendas constitucionais que, preservando as conquistas autenticamente civilizatórias expressas em nossa ordem legal, aproveite os mais de 25 anos de experiência decorridos após a promulgação da Carta Magna, para corrigir suas disfuncionalidades e reordenar com mais justiça e racionalidade os termos dos conflitos distributivos arbitrados pelos processos legislativos e as ações dos governos” (Programa “Uma Ponte para o Futuro” – PMDB – outubro de 2015).

            A partir de 2016, tivemos uma série de medidas sempre anunciadas e justificadas como modernizadoras, sustentáveis e eficazes.

            Na justificativa assinada pelo ministro da economia Paulo Guedes para a Reforma Administrativa, encontramos o seguinte:

“altera disposições sobre servidores, empregados públicos e organização administrativa, conferindo maior eficiência, eficácia e efetividade à atuação do Estado.” (PEC 32/2020)

            O mesmo ministro Guedes também justificou a Reforma da Previdência da seguinte forma:

“A presente  proposta estabelece nova  lógica mais  sustentável e  justa de funcionamento  para  a previdência social (…) permitindo a construção de um novo modelo que fortaleça a poupança e o desenvolvimento no futuro.” (PEC 6/2019)

            Em 2016, outra mudança da Constituição, a restrição de recursos para Saúde, Educação e Assistência Social por 20 anos, também havia sido apresentada pelo ministro da Fazenda Henrique Meirelles como essencial para gerar renda e empregos:

“Esse  instrumento visa reverter, no horizonte de médio e longo prazo, o quadro de agudo desequilíbrio fiscal em que nos últimos anos foi colocado o Governo Federal.

Faz-se necessária mudança de rumos nas contas públicas, para que o País consiga, com a maior brevidade possível, restabelecer a confiança na sustentabilidade dos gastos e da dívida pública. É  importante  destacar  que,  dado  o  quadro  de  agudo  desequilíbrio  fiscal  que  se  desenvolveu  nos últimos  anos,  esse  instrumento  é  essencial  para  recolocar  a  economia  em  trajetória  de  crescimento, com geração de renda e empregos (…)” (PEC 241/2016)

            Também a mudança abrupta na legislação trabalhista brasileira, com a Lei Nº 13.467, de 13 de julho de 2017, que, fundamentalmente, passou a permitir que direitos trabalhistas passassem a ser negociados diretamente entre empregados e patrões, passando a ser desnecessárias referências básicas de proteção social aos trabalhadores (em um contexto de imenso desemprego e informalidade), prometia:

“aprimorar  as  relações  do  trabalho  no  Brasil,  por  meio  da  valorização da  negociação coletiva  entre  trabalhadores  e  empregadores,  atualizar  os mecanismos    de    combate    à    informalidade    da    mão-de-obra    no    país” (Relatório do deputado Rogério Marinho, relator da Reforma Trabalhista).

            Acompanhamos nos últimos cinco anos, sempre sob justificativas de melhoras para o país, serem tomadas medidas contrárias a direitos conquistados pelas trabalhadoras e trabalhadores brasileiros ao longo da nossa história. Apesar de significarem para o povo brasileiro perdas evidentes nas condições de vida, o fim dos direitos trabalhistas, da aposentadoria e dos serviços públicos são apresentados como medidas modernizadoras e que trarão desenvolvimento ao país.

            Há um esforço muito grande daqueles que defendem todas essas medidas em convencer a população de que um “crescimento econômico duradouro e sustentável” deve ser obtido sem a valorização de seus idosos, de seus trabalhadores e sem respeitar e cuidar da saúde e da educação de toda a população. O povo tem visto a vida piorando cada vez mais e mesmo em situações de crescimento econômico, não tão duradouras e sustentáveis como prometido, os benefícios são direcionados a muito poucos.

            O desemprego e a informalidade no país chegam a metade da população economicamente ativa, cerca de 50 milhões de pessoas. Dados de 2018 mostravam que a renda média de mais da metade dos trabalhadores brasileiros era menor que 1 salário mínimo. Por outro lado, a riqueza dos bilionários brasileiros praticamente dobrou em cinco anos, chegando a mais de 1,6 trilhões de reais em 2020. Eram 238 os bilionários brasileiros em 2020. Esses poucos, junto a outros multimilionários, têm sido os maiores beneficiados das políticas de modernização que destroem direitos trabalhistas, o direito de milhões se aposentarem (em geral ganhando até 2 salários mínimos – cerca de 80% dos beneficiários do Regime Geral de Previdência Social) e os serviços públicos.

            Diante da proposta de taxar grandes fortunas, Bolsonaro disse: “É crime ser rico no Brasil?”, mostrando incompreensão em relação às injustiças tributárias e uma completa indisposição em corrigir desigualdades. Mas isso não é um acaso. Bolsonaro é o principal líder do bolsonarismo, movimento de inspiração fascista que prega e pratica sistematicamente todo tipo de violência a seu alcance e ameaça continuamente aprofundar o ataque aos direitos civis e políticos mais elementares. E toda a violência bolsonarista tem um papel principal: defender os privilégios dos super-ricos do Brasil. Por isso, os super-ricos, embora possam ter algumas críticas e diferenças sobre atitudes grosseiras e infelizes de Bolsonaro, concordam com o cerne de sua política.

            O “desenvolvimento” proposto por Guedes e Bolsonaro pressupõe e estimula o aumento da já absurda concentração de riquezas no Brasil. Para isso, não é suficiente apenas fazer com que os bancos ganhem como nunca. Favorecer o capital rentista é algo já corrente nas políticas econômicas há décadas no Brasil. É praticamente um dogma inquestionável. Mas em meio à hegemonia do rentismo, se intensificou nos últimos anos a perda da indústria, da pesquisa e da soberania nacional. O processo de reversão do país à condição de colônia se aprofunda chegando a causar perplexidade nos que acreditavam que vivíamos há alguns anos um sólido ciclo desenvolvimentista (sem enfrentar os problemas estruturais do país?).

            Acompanhamos o território nacional servindo cada vez mais como plataforma de exportação de produtos primários às custas da destruição do meio ambiente e do extermínio dos povos tradicionais. As cidades não têm perspectiva de emprego para a maior parte da população, que vive para sobreviver, lutando diariamente contra a humilhação e a miséria física e mental. O projeto do país como uma grande feitoria para produzir soja, carne, minério de ferro e outra meia dúzia de produtos primários se consolida, como não poderia deixar de ser, em detrimento da defesa de empregos decentes e com a entrega e corrupção de tudo o que pode servir para enriquecer o grande poder econômico e as oligarquias políticas que lhe são serviçais. Recursos públicos e naturais do país são entregues para a exploração de grandes monopólios econômicos sob a cantilena da livre concorrência.

            E é nesse contexto geral que precisamos situar a PEC32, que almeja ser uma “pá de cal” na capacidade do Estado ter políticas elementares de desenvolvimento social.

            Destacamos alguns aspectos centrais na PEC 32:

            Em primeiro lugar, a destruição dos serviços públicos se articula com a necessidade do capital rentista de abocanhar mais de 40% do orçamento federal em juros e amortizações da dívida pública. É preciso economizar, cortar gastos crescentes com os serviços públicos para garantir e aumentar os lucros dos bancos e as fortunas dos multimilionários que têm como principal “portfólio” os títulos da dívida pública. A garantia de mais recursos para o rentismo sobre a dívida pública é o pano de fundo das alterações legais com impacto orçamentário nos últimos 30 anos.

            Tendo em vista esse pano de fundo de garantia dos interesses da especulação financeira sobre o orçamento público, cabe pensar como a destruição dos serviços públicos se insere no programa da burguesia brasileira. Nessa perspectiva olhamos para os dois eixos principais da Reforma Administrativa: o favorecimento da privatização dos serviços públicos e o fim da estabilidade da imensa maioria dos servidores públicos.

            Em relação ao primeiro ponto, da privatização, a PEC 32 segue a lógica de reduzir ao máximo os espaços da vida social que não sejam passíveis à realização de negócios. O capitalismo em crise no qual vivemos não pode sobreviver sem uma pressão crescente por mercantilização. É preciso mais mercado, cada vez mais mercado. O mercado aprofunda desigualdades? “Isso não interessa, é impertinente”. Assim, não importa que os negócios de saúde e educação, por exemplo, não tenham nenhum interesse na imensa maioria da população, que, ganhando um salário mínimo ou menos, não poderão pagar mensalidades escolares ou de planos de saúde que em alguns casos custam algumas vezes o salário recebido por um trabalhador médio.

            A proposta é de oferecimento de um serviço cada vez mais insuficiente de forma universal para favorecer a atuação do mercado. Outra possibilidade bem “alentadora” para os abutres dos direitos sociais é o repasse de recursos do Estado para negócios que estabeleçam convênios e parcerias, o que já ocorre de forma bastante espraiada na saúde pública e na educação infantil. Junto a desresponsabilização do papel do Estado em garantir direitos e aumento dos negócios com o fim dos serviços públicos, a filantropia também tende a ser crescentemente incentivada. Afinal, é uma forma já muito bem conhecida de fazer com que os vencedores de um mundo que produz cada vez mais miseráveis possam se apresentar como quem ajuda e se sensibiliza com a miséria humana.

            O outro ponto central da PEC 32 é o fim da estabilidade para a imensa maioria dos servidores, com destaque para praticamente todos os profissionais de saúde e educação que estão em contato direto com a população. A lógica é a seguinte: Para quê servidores públicos com estabilidade contra ingerências políticas e contratados dentro de um projeto de valorização da saúde e da educação da população? Trabalhadores com estabilidade, que podem se opôr aos desmandos da oligarquia política à serviço da piora da vida do povo para a manutenção dos privilégios de uma minoria, são um péssimo exemplo. Desde sempre. E valorizar a educação, a saúde, a assistência social, a pesquisa, a cultura, os esportes, já não faria mais sentido “no mundo atual, caraterizado por um processo de constante e acelerada transformação”, como diz na justificativa da PEC 32.

            Os únicos serviços públicos que realmente farão sentido para a burguesia brasileira nos próximos anos serão os necessários para continuar a gestão do Estado como facilitador de negócios através de PPPs, licitações e privatizações, além, é claro, do papel de canalizador de recursos públicos para a especulação financeira. A face do Estado cada vez mais próxima do povo será a polícia (e o exército?) para conter as crescentes indignações diante do aumento da miséria e da segregação social. Apesar de não serem nada modernas e eficientes, a miséria e a segregação só crescerão com a “modernização” e “eficiência” proposta por Meirelles, Guedes e Bolsonaros.

            Não podemos esquecer, afinal, que a PEC 32 é uma proposta do governo Bolsonaro. Por isso, o processo de derrota dessa medida exige uma derrota do bolsonarismo como estratégia de dominação política da burguesia brasileira. Tentar dissociar Bolsonaro da burguesia brasileira é um erro que não fará avançar em nada a luta de que precisamos.

O caminho para derrotarmos o bolsonarismo passa pelo enfrentamento do projeto neocolonial da burguesia brasileira

            No fim da década de 1980 havia no Brasil uma expectativa grande de avanços sociais, políticos, ambientais e econômicos com a promulgação da Constituição Federal. As grandes mobilizações da classe trabalhadora ocorridas desde o fim da década de 1970 apontavam a possibilidade de finalmente se construir no país um desenvolvimento nacional que articulasse:

– respeito ao meio ambiente e aos povos tradicionais;

– democratização da posse da terra;

– ampliação do direito das trabalhadoras e trabalhadores às riquezas produzidas no país;

– estruturação de um sistema sólido de seguridade social;

– valorização da saúde, educação, pesquisa e cultura nacionais;

– efetiva democratização política através do enfraquecimento do grande poder econômico e de oligarquias políticas sobre a vida política nacional.

            O que observamos após 1988 são, em geral, mudanças que vão na contramão de todas as referências apontadas acima. Não houve no Brasil nas últimas quatro décadas mudanças políticas que inscrevessem na sociedade brasileira um contraponto sólido ao caráter dependente, subdesenvolvido e segregado da sociedade brasileira. Os problemas estruturais do país não foram enfrentados. E se agravaram:

– concentração de riquezas e desigualdade;

– degradação econômica com aumento de sua subordinação e dependência na divisão internacional do trabalho;

– segregação social e violência sistemática contra os pobres, principalmente negros;

– extermínio aos povos tradicionais e aceleração da destruição ambiental;

– ataques sucessivos e incessantes a aposentadoria, saúde e assistência social públicas;

– ataques sucessivos e incessantes à educação e à cultura e destruição da estrutura de pesquisa construída ao longo de décadas no país;

– consolidação de oligarquias políticas no comando da política nacional como instrumento do grande poder econômico para atender suas demandas por aumento da exploração dos trabalhadores (mudanças trabalhistas e previdenciárias) e rapinagem financeira através de “mediações” do Estado (serviços da dívida pública, privatizações e parcerias público-privadas).

            Não é possível entender os problemas da sociedade brasileira em separado desse movimento geral que articula todos os pontos levantados acima. Assim como fica inexplicável observarmos a sustentação política dada a Bolsonaro, sujeito que reúne as posições mais abjetas em relação a temas sociais, ambientais, políticos e econômicos. A burguesia brasileira, em seu conjunto, não retirou e nem vai retirar seu apoio político a Bolsonaro, mesmo diante do extermínio conduzido pelo presidente com sua política genocida diante da pandemia de Covid-19. Isso porque Bolsonaro se propõe a aprofundar todos os pontos levantados acima e essa é uma condição essencial para que as classes dominantes no Brasil mantenham seus privilégios.

            Degradação das condições de vida dos pobres nunca foi uma preocupação de quem comanda o país. Ainda que as classes dominantes no Brasil tenham em determinados momentos aceitado governos que demonstrassem mais sensibilidade social, isso só foi feito em circunstâncias específicas e mediante o compromisso de não serem enfrentados os problemas estruturais do país (sintetizados em uma dupla articulação entre dependência econômica e política externa e violenta segregação social interna). Houve quem acreditasse (e ainda acredita!) ser possível e consequente um acordo político com a burguesia e com oligarquias políticas carcomidas para governar o Brasil. Em troca de avanços frágeis e pontuais que não atacam os problemas estruturais do país sacrificamos o mais importante, que é a consciência e vontade de lutar do povo.

            A partir disso, limitamos o horizonte político do povo brasileiro à construção de arranjos de “governabilidade” chancelados por bancos, agronegócio e mineradoras, e articulados com figuras como Michel Temer, José Sarney, Eduardo Cunha e congêneres.

            O Brasil ainda não se recuperou do genocídio conduzido pelo presidente Bolsonaro através de sua política de disseminação do vírus e de negação da proteção da população. As condições de vida do povo se deterioram muito e o governo continua a tomar medidas para piorá-la ainda mais. É preciso derrubar o presidente genocida e para isso temos que também acertar as contas com os setores que ganham com a política neocolonial conduzida com ímpeto nunca antes visto pelo bolsonarismo.


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