Reflexões sobre a terceira intifada palestina
É o sionismo, esse colonialismo que busca expulsar e substituir os palestinos, que está na origem dessa terceira intifada.
“A Palestina é uma espinha de peixe presa na garganta do mundo. Ninguém vai conseguir engolir” (Elias Sanbar)[1]
1 – A terceira intifada é antissionista
Um esclarecimento parece se impor diante de certas análises que atribuem a responsabilidade do levante palestino à política da extrema direita israelense. Digamos de antemão: a extrema-direita israelense não é o problema. O sionismo, sim. É o sionismo, esse colonialismo que busca expulsar e substituir os palestinos, que está na origem dessa terceira intifada.
Não é por acaso que tudo tenha começado com Sheikh Jarrah. Sheikh Jarrah é um espelho distorcido da longa Nakba palestina. Sheikh Jarra é o outro Lifta, o outro Deir Yassin, o outro Haifa, o eco distante das cidades e comunidades colonizadas e desarabisadas desde 1948. “Os velhos morrerão e os jovens esquecerão”[2], pensava Ben Gouion. Aposta louca e perdida. Porque, mesmo quando a amnésia poderia ser uma opção, os Sheikh Jarrah repetidamente a tornam absolutamente impossível.
Então, que o Estado sionista seja comandado por um governo de extrema-direita, de centro-direita ou de esquerda, é um elemento que deve ser levado a sério e analisado, mas sem que se perca de vista o que está na origem do conflito: a empreitada colonial que constitui o sionismo. Senão, a análise novamente veiculará uma leitura errônea da situação atual na Palestina ocupada.
Ela consistiria em aplicar o quadro de leitura válido para os Estados “normais”, aqueles no qual o conflito político é estruturado ao redor da clivagem entre direita e esquerda, progressismo e conservadorismo (e fascismo). Quadro de leitura inepto em Israel/Palestina, e que tem a irônica função de desresponsabilizar implicitamente o Estado israelense enquanto tal – os seus fundamentos ideológicos, sua história miliciana e militar, a política colonial sistematicamente implementada desde sua criação e seu papel reacionário na região do Oriente árabe.
Para quem se vê expropriado de sua casa e de sua terra, não faz nenhuma diferença que o Estado colonial, construído para arquitetar o roubo da Palestina e a expulsão das populações autóctones, se valha de uma identidade socialista ou fascista. Passemos então por essa mestra do momento, a História, para nos recordar que Yitzhak Rabin, esse herói da esquerda sionista, não teve nenhuma necessidade de ser de extrema-direita para codirigir a primeira guerra de limpeza étnica da Palestina entre 1947 e 1949, em particular na região do norte de Jerusalém e nas cidades de Lida e Ramla[3]. Além disso, as colônias que são apresentadas como kibutz, e que fascinaram tantos socialistas na Europa, não deixam de ser colônias do ponto de vista dos despossuídos.
Quanto à tradição sionista de esquerda, plena de humanismo, sua principal preocupação foi “salvar” Israel. Salvar o que é considerado como adquirido, os territórios conquistados à força em 1948, e esperar que o Estado militar que privou a Palestina da maioria de seu litoral (e portanto de seus portos), digna-se a permitir a existência de um enclave palestino ao seu redor. Nisso, o sionismo de esquerda é tão oposto à luta de liberação nacional palestina, e aos direitos políticos dos palestinos quanto o sionismo de direita. A única diferença é que ele aspira a paz (pela negação da justiça, não é mesmo?) para “salvar” Israel.
Disfarçar o sionismo de uma áurea “socialista” e do epíteto “esquerda” tem algo de muito pernicioso. Eles são equivalentes aos chapéus melão e ao guarda-chuva de Orwell no que diz respeito ao fascismo[4]. Considerar a intifada palestina como uma reação à extrema-direita, mais do que ao sionismo, é fruto de uma lenta habituação que consiste em fazer do Estado israelense um Estado “normal”, ilusão que já está na hora de ser desfeita.
Assim, camaradas, não deploremos o desmascaramento do sionismo. Netanyahu, o governo de extrema-direita, e os colonos fascistas, são certamente seu rosto odioso, mas se rosto descoberto, sem máscara nem farda.
2 – A terceira intifada é nacional.
Certamente, o sionismo conduzido por um governo israelense de extrema-direita é mais grosseiro, mais racista, mais brutal. E portanto mais insuportável. Está no direito quem pensa que ele contribuiu para acelerar as condições que permitiram a intifada atual, inevitável na medida em que a opressão engendra inevitavelmente, cedo ou tarde, a resistência aberta. Porque, e perdoe-nos a insistência, o coração do conflito é o projeto de colonização-substituição da Palestina. É por isso que a luta que anima os palestinos é uma luta de libertação nacional. Uma luta contra um colonialismo cujo as diferentes maiorias políticas que ritmaram sua história nunca mudaram o que ele é de fato: um colonialismo.
Basta-se convencer em dar atenção às atuais manifestações nos territórios do interior, em Israel ou na Cisjordânia: em nenhum lugar se escuta reivindicações de reforma do Estado israelense, de mudança do regime em direção a qualquer coisa mais progressista, de direitos esperados que o Estado israelense conceda aos palestinos. O slogan repetido quase em todo lugar não é: “o povo quer a queda do regime”, mas “o povo quer a libertação da Palestina” (“El shaab yourid tahrir Falestine”). A cólera é simplesmente dirigida contra Israel. Contra Israel desde 1948, contra Israel em sua essência, quer dizer, o sionismo. O que acaba de juntar palestinos de Haifa a Belém e de Gaza a Jerusalém, é a ideia de libertação nacional, e sejamos precisos: de toda a Palestina.
Essa terceira intifada também cria um precedente que Israel ira penar a contrariar ela explode em pedacinhos mais de sete décadas de fragmentação territorial. Jerusalém, Gaza, Haifa, Jenin, Ramala, Hebrom, Jafa, Ramla, Nablus… Pela primeira vez desde 1948 é toda Palestina histórica que renasce, ao mesmo tempo, politicamente e para ela mesma. O que, portanto, constitui um repudio irrevogável da “Autoridade” palestina, cuja principal função era policiar os palestinos da Cisjordânia, notadamente pela colaboração com as forças de ocupação israelense.
A ironia da história quer que essa terceira intifada se desenrole bem no momento em que deveria haver eleições legislativas, que Mahmoud Abbas adiou indefinidamente, sob o pretexto de que os palestinos de Jerusalém estavam impedidos de votar, mas na realidade sob a pressão de Israel e de divisões no interior do Fatah. Jerusalém então votou e, com ela, seguiu toda a Palestina. A luta pela libertação nacional retoma assim o curso da história.
3 – Uma intifada de um novo gênero
A cada conjuntura, sua estratégia revolucionária adequada. Essa terceira intifada não é nem a intifada das pedras contra os tanques, nem a resistência de Gaza contra o exército israelense, nem o confronto direto ante os colonos israelenses, e nem as marchas para o retorno aos países vizinhos. Ela é tudo isso ao mesmo tempo. E ela toma a iniciativa. A decisão da resistência palestina em Gaza de responder as agressões israelenses contra Jerusalém não é aguardada, e inédita em seu gênero. Ela baliza as lógicas territoriais particularistas minuciosamente postas em prática por Israel, e ela reestabelece o princípio nacional.
O que acontece em Jerusalém tem consequências em Gaza, os levantes na Palestina 48[5] (Israel) acompanham os da Cisjordânia. Sobretudo, os refugiados na fronteira não são deixados de fora. No momento em que são escritas estas linhas, centenas de palestinos e vizinhos árabes da Jordânia e do Líbano acabam de atravessar – pela primeira vez em três gerações – a fronteira com a Palestina ocupada, invocando as descontinuidades geográficas dolorosas do Bilad As-Sham (os países de Damas) advindas da segregação colonial. Para alguns, o sonho de sempre, quase irreal, acaba de se realizar: massificar a terra palestina e retornar.
Quanto à resistência, ela é multiforme, híbrida. Todos os meios possíveis são mobilizados simultaneamente, e em uma relação de dependência recíproca. Não há contradição entre a resistência armada e a resistência pacífica, elas são complementares. Trata-se, no primeiro momento, de impor a Israel uma nova correlação de forças, uma nova situação que definitivamente a faça dissuadir de perseguir a limpeza étnica em completa liberdade, sem inquietação. Uma das questões principais segue sendo construir em seguida uma estrutura unificada do movimento nacional, comprometida em organizar e reforçar a unidade dessa terceira intifada. A tarefa é imensa.
4 – Uma solidariedade plena e incondicional
O que se revela hoje ao do mundo, setenta e três anos depois do começo da Nakba, é a derrota de Israel de engolfar a Palestina, colocá-la nos abismos do esquecimento. Como em todo repovoamento, a Palestina jamais deixou de se manifestar, externalizar seus sintomas. E atualmente ela se recompõe, ela se reestabelece, ela se reafirma na e pela luta coletiva e nacional.
Sem nenhuma dúvida, a repressão que virá será de uma brutalidade insuspeita. Ela já é. O exército israelense intensifica os bombardeios em Gaza, ameaça uma nova incursão terrestre, e acaba de dar apoio à polícia em Israel. Nós sabemos como as guerras anticoloniais podem ser violentes, essa é uma das lições do século passado. Nós sabemos igualmente que a libertação é possível: povos venceram. É por isso que a solidariedade incondicional com a resistência palestina pelos seus direitos nacionais e democráticos é mais do que nunca necessária. A luta anticolonial palestina é de todos os progressistas, de todos os anticoloniais, nos quatro cantos do mundo. Sejamos seus companheiros de viagem.
Originalmente publicado como Réflexions sur la troisième intifada palestinienne em: https://www.contretemps.eu/intifada-palestine. Tradução de Pedro Micussi.
[1] SANBAR Elias, Le bien des absents. Paris: Actes Sud, 2001, p. 61.
[2] Citado por Michael Bar Zohar em Ben-Gurion: the Armed Prophet, Prentice-Hall, 1967, p. 157.
[3] PAPPE Ilan, Le nettoyage ethnique de la Palestine, 1947-1949. Paris: Fayard, 2006, p. 25.
[4] “Quando os fascistas voltarem, eles terão o guarda-chuva bem enrolados sob os braços e o chapéu melão”, George Orwell, 1984.
[5] Termo que designa os territórios da Palestina conquistados por Israel em 1948.