Luta pelo sobreproduto e controle dos processos de trabalho
7ª parte da série “Operários e Burocratas”.
Robert Brenner é um historiador econômico que estuda tanto o próprio capitalismo quanto a transição histórica do feudalismo para o capitalismo. Três décadas após o famoso “debate Dobb-Sweezy”, desencadeado no final dos anos 40 e início dos anos 50 pelo trabalho de Maurice Dobb sobre esta última questão [1], Brenner, continuando e expandindo o pensamento histórico e econômico de Dobb, lançou um debate ainda mais vivo entre os historiadores sobre o mesmo assunto, chamado de “debate Brenneriano” [2]. Seu sólido conhecimento de como o capitalismo difere fundamentalmente tanto das economias e sociedades não-capitalistas antigas quanto das relativamente recentes lhe permitiu dar importantes contribuições para o estudo da natureza dos regimes burocráticos do bloco soviético. Como já disse, a derrubada do capitalismo quebrou os entraves que retardavam a revolução industrial nas sociedades atrasadas, e portanto subdesenvolvidas, e permitiu que ela acontecesse, mas não criou mecanismos para um maior desenvolvimento sistemático das forças produtivas comparáveis ao seu desenvolvimento nas sociedades capitalistas há muito tempo industrializadas. Por que?
Como Ellen Meiksins Wood explica, relatando os avanços teóricos de Brenner, “o desenvolvimento autopropulsor característico do capitalismo requer não apenas a remoção de obstáculos em seu caminho, mas também a pressão positiva para transformar as forças produtivas, e isto ocorre apenas sob condições de competição nas quais os atores econômicos são livres para agir em resposta a estas condições, e ao mesmo tempo são obrigados a fazê-lo”. Ninguém nos ensinou mais sobre a especificidade destas condições do que o Brenner. Ninguém também demonstrou mais efetivamente do que ele que, durante a maior parte da história, não foi a necessidade de produzir um excedente para as classes ou estados exploradores que transformaram os métodos de produção desta forma – nem mesmo a produção para troca. Onde os exploradores – sejam grandes proprietários de terras em busca de renda ou estados famintos de impostos – tinham meios extraeconômicos para extrair mais excedentes do campesinato, ou seja, poderes coercivos diretamente militares, políticos e judiciais, não havia coerção sistemática para aumentar a produtividade do trabalho. Os meios de extração de excedentes sob coação “extraeconômica” não só careciam do estímulo para desenvolver as forças produtivas, como também dificultavam seu desenvolvimento, drenando recursos dos produtores imediatos. O desenvolvimento do capitalismo exige um modo de apropriação que força a extração do máximo excedente dos produtores imediatos, mas só pode fazê-lo se incentivar ou obrigar os produtores a aumentar sua produtividade e favorecer o desenvolvimento das forças produtivas em vez de impedi-lo. Este modo de apropriação é uma formação rara e contraditória, cujas condições de existência são muito específicas e rigorosas” [3].
A burocracia usurpou o poder alegando que ele era exercido pela classe trabalhadora, em cuja exploração baseava sua dominação. Ela só poderia estabelecer e manter a exploração através de coerção extraeconômica, porque a coerção econômica só pode funcionar sob o capitalismo e o capitalismo tinha sido derrubado. Além disso, somente a auto-organização e cooperação dos produtores imediatos pode ser livre de coerção econômica e extraeconômica. Sob coação extraeconômica, a burocracia também criou uma ampla base material para seu modo de exploração: realizou a acumulação primitiva, a revolução industrial e a modernização social que a acompanhou. No entanto, não tinha como estabelecer um modo de produção que permitisse o desenvolvimento contínuo das forças produtivas e o aumento constante da produtividade do trabalho a um ritmo e magnitude comparáveis aos do capitalismo.
Brenner deixa isso bem claro: na própria URSS, e no bloco soviético em geral, a burocracia foi capaz de se constituir e reproduzir enquanto classe dominante porque conseguiu criar os meios extraeconômicos de coerção indispensáveis para a extorsão de um sobretrabalho na forma de um sobreproduto da coletividade dos produtores imediatos – a classe operária. Primeiro, organizava diretamente e de maneira coerciva a divisão do trabalho e decidia tanto a distribuição dos fatores de produção – em particular a força de trabalho, nos diferentes setores, ramos e empresas – quanto a distribuição dos produtos desses setores, ramos e empresas. Em segundo lugar, extraia o sobretrabalho: trabalhadores sob coação extraeconômica produziam coletivamente um produto cujo tamanho excedia o custo salarial de reproduzir sua própria força de trabalho. A dependência direta da dominação da burocracia da eficácia da coerção extraeconômica foi uma característica fundamental do regime por ela estabelecido [4].
Esta coerção se devia ao fato de que, ao contrário dos capitalistas, a burocracia não podia separar os trabalhadores dos meios de produção, e assim forçá-los a ganhar a vida no mercado de trabalho, vendendo sua força de trabalho como se fosse uma mercadoria. Esta é a base da coerção econômica à qual os trabalhadores são submetidos sob o capitalismo. Em uma sociedade não capitalista, isto é impossível. Pois se o objetivo de todo capitalista é a maximização de seu lucro, “o objetivo da burocracia como um todo é, naturalmente, a maximização do conjunto do excedente social“, ou seja, do conjunto do sobreproduto. “É, portanto, do seu interesse empregar todos os trabalhadores que pode empregar, já que cada trabalhador empregado aumenta o excedente social (se ao menos, além do que ganha, pode produzir individualmente algum sobreproduto)” [5]. Então, a economia gerida burocraticamente “se desenvolve mais extensivamente – aumentando o excedente através da contratação de novos trabalhadores e equipando-os com máquinas – do que intensivamente, ou seja, transformando os meios de produção com os quais cada trabalhador é dotado. Consequentemente, a classe trabalhadora como um todo é o maior recurso produtivo da burocracia, e os trabalhadores desempregados são um desperdício de recursos” [6]. Daí o pleno emprego no bloco soviético, e não por causa de quaisquer princípios socialistas.
As consequências históricas deste fato foram consideráveis. Por um lado, como sob o capitalismo, os trabalhadores não tinham controle coletivo sobre os meios de produção e de subsistência. Por outro lado, ao contrário da situação no capitalismo, eles tinham trabalho garantido, pois não era do interesse da burocracia dispensá-los. “Ao contrário dos gerentes no capitalismo, os gerentes no sistema burocrático não têm o melhor mecanismo para disciplinar os trabalhadores no processo trabalhista que foi inventado na sociedade de classe – a ameaça de demissão. Seu objetivo é maximizar a produção potencial da empresa, e assim eles procuram reter qualquer trabalhador que produza até mesmo o menor excedente sobre o custo de seu salário” [7].
Os trabalhadores que não podem ser demitidos – que não correm o risco de serem colocados em um mercado de trabalho inexistente – de fato não estão desligados de seus meios de produção e subsistência, e sua força de trabalho não é uma mercadoria. Brenner argumenta até mesmo que no bloco soviético “os trabalhadores estavam efetivamente vinculados a seus meios de produção e subsistência“. É precisamente por isso que era impossível “fazer ali o que o capital faz com sucesso – usar a dependência dos trabalhadores do emprego para torná-los economicamente dependentes da burocracia” [8].
Uma unidade de pesquisa da Universidade de Grenoble, liderada por Wladimir Andreff, estudou os processos de trabalho no bloco soviético à luz dos conceitos desenvolvidos por Marx em seus estudos sobre os processos capitalistas de trabalho e de produção [9]. Ela constatou que, paradoxalmente, embora houvesse uma escassez global de mão de obra, havia um excesso de mão-de-obra em todas as empresas. Um exemplo da extensão deste fenômeno pode ser encontrado no caso de uma fábrica química descrito na imprensa soviética, que não constituía um caso extremo. Ao construí-la, a empresa capitalista estrangeira planejava empregar um total de 153 pessoas. O planejador soviético, entretanto, julgou que 557 pessoas deveriam ser empregadas, mas na realidade a fábrica empregou 946 pessoas. Para os pesquisadores de Grenoble, a contradição entre a escassez geral de mão-de-obra e o excesso de emprego nas empresas foi uma das contradições fundamentais das economias do bloco soviético – só poderia ser explicada à luz de seu funcionamento geral. Acontece que as direções das empresas – obrigadas a realizar planos impostos de cima, sem conhecimento de suas reais capacidades de produção e sem garantir-lhes um abastecimento adequado e oportuno – aplicavam “várias práticas de gestão que se desviam da letra do plano, sendo uma das mais importantes a constituição de várias reservas ou estoques, não declaradas à administração“. “constituía-se assim reservas de mão-de-obra dentro das empresas” [10].
Isto porque o “verdadeiro calcanhar de Aquiles” das economias do bloco soviético era “sua incapacidade de assegurar um fornecimento sem falhas às empresas dentro da estrutura do plano. Este fenômeno é tão importante e diário que vários autores fazem das falhas de abastecimento o núcleo da lógica de funcionamento” destas economias “ou a principal manifestação concreta das contradições do sistema que exige uma “regulamentação” que é realizada em parte fora do plano e da economia oficial, até mesmo contra a letra do plano. Em todo caso, a mínima observação da economia de tipo soviético mostra a realidade deste problema de abastecimento, cuja consequência é, sublinhe-se, a desorganização do processo de trabalho. Como então o ritmo de trabalho pode ser submetido à uniformidade das máquinas, se essas máquinas deixam de ser abastecidas com objetos de trabalho (materiais, etc.)”? [11].
“Em janeiro, a indústria estatal produz 15-25% a menos do que em dezembro, e isso sempre foi o caso nos últimos 20 anos” [12]. Foi assim que um economista húngaro escreveu em 1980 sobre um fenômeno – chamado “chtourmovchtchina” [literalmente a prontidão permanente para atacar] – característico não só da Hungria, mas também de todo o bloco soviético. Na primeira metade do período de implementação de cada plano (mensal, trimestral, anual, quinquenal), as empresas trabalhavam muito mais lentamente e não utilizavam plenamente suas capacidades de produção, incluindo a mão-de-obra, enquanto na segunda metade, cada vez mais utilizavam em excesso essas capacidades e aumentavam as cadências de trabalho. Era precisamente por causa do aumento da demanda de mão-de-obra durante esses períodos que as “reservas” de mão-de-obra estavam “armazenadas” nas empresas. A maior intensificação do trabalho e o maior tempo de trabalho – horas extras e trabalho nos feriados, às vezes até mesmo renuncia ás férias adquiridas – ocorriam “na última década do mês e do trimestre, no último mês do ano e no último trimestre do período de cinco anos”. A “ chtourmovchtchina ” estava inextricavelmente associada ao “trabalho mal feito” e à produção de “lixo” que, aliás, geralmente compensava, especialmente porque o controle de qualidade ficava afrouxado sob a pressão da necessidade de realizar os objetivos do plano. “Os produtos da última década do mês são de qualidade bastante ruim; de qualidade muito ruim no último mês do período de cinco anos” [13].
A má qualidade dos produtos “tem um impacto direto no processo de trabalho: quando os produtos defeituosos de uma fábrica são ferramentas, peças, produtos semiacabados ou equipamentos, é de se esperar que incidentes técnicos, panes, quebras de ferramentas, etc. ocorram em algum outro lugar do sistema de produção, o que, por sua vez, perturbará o ritmo do processo de trabalho. Portanto, é compreensível que as empresas alocam alguns trabalhadores ás tarefas (em oficinas auxiliares) para “mexer“ com peças ou equipamentos defeituosos recebidos de seus fornecedores, para concertar ferramentas quebradas, equipamentos em pane, ou mesmo para produzir “substitutos caseiros” de suprimentos que estão faltando ou inutilizáveis devido à falta de qualidade“. As oficinas ferramenteiras das usinas serviam para isto. As consequências foram muito graves. Em 1977, quase 17% dos trabalhadores da indústria da Alemanha Oriental estavam envolvidos em reparos [14]. Hillel Ticktin ironizava que além do setor I da economia, que produzia os meios de produção, e o setor II, que produzia os meios de consumo, os ideólogos soviéticos teriam que introduzir em sua “economia política do socialismo” um setor III, que trataria da reparação dos meios de produção, porque na URSS mais trabalhadores (no caso do maquinário, até quatro vezes mais) estavam envolvidos na reparação do que na produção deles [15]. A “entrega tardia ou de baixa qualidade de componentes”, apontaram sociólogos da Academia Húngara de Ciências, “é uma das razões pelas quais as tecnologias avançadas dos países ocidentais não podem ser efetivamente adotadas pelas economias planejadas” [16]. Mas não se trata aqui, obviamente, de economias planejadas, mas de economias administradas burocraticamente.
No bloco soviético, a doutrina da “organização científica do trabalho” era um componente da ideologia estatal dominante. De fato, esta doutrina estava enraizada no taylorismo, mas oscilava entre a afirmação que justificando este enraizamento – “O taylorismo tem uma ampla base científica” e é somente necessário “rejeitar o caráter exploratório do uso da teoria da organização científica do trabalho no capitalismo” [17] – e a negação deste enraizamento estigmatizando o próprio taylorismo como “um instrumento de exploração contrário aos ideais do Estado socialista” [18]. A equipe da Universidade de Grenoble concluiu que se, apesar de sua ineficiência, os processos de trabalho e os princípios de “organização científica do trabalho” aplicados oficialmente nas economias do bloco soviético tinham alguma semelhança com o taylorismo, era um “taylorismo arrítmico”. Andreff e seus colaboradores explicaram que “taylorismo e arrítmico são termos contraditórios; nós os associamos precisamente porque eles conceituam, em uma única imagem, os termos reais das contradições reproduzidas pelo processo de trabalho” no bloco soviético [19].
A arritmia e a porosidade resultante dos processos de trabalho, o “taylorismo arrítmico” – este é o terreno que define as condições da possibilidade de realização da tendência permanente do regime burocrático à exploração absoluta da força de trabalho e a tendência igualmente permanente dos trabalhadores de resistir à exploração, ou seja, de minimizar a massa de sobretrabalho imposta a eles. Lembremos que, assumindo que o salário deve assegurar pelo menos a reprodução total da força de trabalho e que a massa de força de trabalho é constante, a exploração absoluta só é possível intensificando o trabalho e prolongando a jornada de trabalho, e na falta desta opção, ou seja, na prática, também baixando o salário real e aumentando a massa da força de trabalho. Em ambos os casos, esta exploração tem limites intransponíveis (naturais e sociais). O “taylorismo arrítmico” reduz ainda mais esses limites, uma vez que “a arritmia do processo laboral reforça as dificuldades de subjugar o trabalho operário“. Estes limites são, naturalmente, ampliados durante períodos de “ataques” e de “surtos”, mas a extensão deste fenômeno é limitada [20].
Durante esses períodos, “é a direção que ‘precisa’ dos trabalhadores: se o plano da empresa não for cumprido, o trabalhador pode perder um bônus, enquanto o gerente fica exposto a sanções de cima que podem lhe custar seu emprego e, de qualquer forma, suas perspectivas de carreira [burocrática]. Tal contexto leva a um tipo de relação de barganha entre a direção e os quadros, por um lado, e os operários, por outro, onde todo esforço especial feito de um lado é acompanhado por uma compensação do outro“. Por exemplo, se durante o período de trabalho ao ralenti a administração não aceitar dois ou três dias de ausências não justificadas, se não fizer vista grossa ao fato de que durante o horário de trabalho o operário faz fila nas lojas, imposta por uma “economia de escassez”, ou ao fato de que as pausas são, de fato, mais longas do que o estipulado pela regulamentação, se controlar escrupulosamente as ausências por doença, etc., corre o risco de que, durante um período de “trabalho de ataque” os operários se agarrem aos horários legais, fazem corpo mole e se recusam a se desdobrar para que a empresa cumpre o plano ou simule com verossimilhança (ou seja, com segurança para a direção) que o faz [21].
Aqui chegamos ao xis da questão. No conjunto de condições descritas acima, nas quais o modo burocrático de exploração, organicamente incapaz de se constituir como modo de produção, tomou forma, a tendência permanente à exploração absoluta da força de trabalho entrou inevitavelmente em choque com a tendência permanente dos operários de resistir à exploração. Mas pode-se até dizer mais: além de um certo nível de exploração intransponível, na verdade, ela murchava ou entrava em colapso no confronto com esta tendência contrária. Nenhuma coerção burocrática extraeconômica foi capaz de enfrentá-la – nem na segunda metade da década de 1930, quando o terror estalinista era desenfreado na URSS, nem na segunda metade dos anos 40, quando as leis trabalhistas draconianas de Stalin estavam em vigor. Nem a reorganização burocrática dos processos trabalhistas e de sua gestão foi capaz de lidar com ela.
“O que acontecia dentro da empresa industrial foi fundamental para o funcionamento e desenvolvimento do sistema” [22]. A burocracia, “permanecendo com a classe operária em uma relação de exploração“, no entanto, tinha possibilidades limitadas de extorquir o sobretrabalho dela. Essas possibilidades eram limitadas não apenas pelo que neste sistema era o flagelo das empresas e de toda a economia – as frequentes ausências ou a ociosidade no trabalho – mas também pela rotação de trabalhadores que trocavam maciçamente de local de trabalho (na URSS, no setor estatal, no final dos anos 70 e no início dos anos 80, cerca de um quinto de todos os empregados mudava de local de trabalho a cada ano, e tal mudança levava em média um mês). Ela
s também eram “limitados pela capacidade (…) da classe operária de exercer um controle sobre seu processo de trabalho”. Bob Arnot observava que neste sistema os trabalhadores, mesmo atomizados, “podem controlar o ritmo em que trabalham, podem produzir sem se preocupar muito com a qualidade do que produzem” [23]. Isto significa que eles “são capazes de exercer um controle negativo tanto sobre a qualidade quanto sobre a quantidade do excedente que é extraído deles” porque “por suas ações eles controlam tanto o nível absoluto do tempo de trabalho gasto quanto sua intensidade” [24]. Ticktin descreveu este fenômeno como “a contradição entre a extorsão do sobretrabalho” pela elite social no poder e “sua falta de controle sobre o processo de extorsão dessa mão-de-obra” [25]. Foi ele quem iniciou o reconhecimento desta contradição, e posteriormente estudos teóricos aprofundados e pesquisas históricas nesta área foram continuados e desenvolvidos por Arnot e Filtzer.
Esta não era uma particularidade do bloco soviético. O fato, porém, é que “embora exista um controle negativo do trabalhador sob o capitalismo, ele é, no entanto, incompatível com este modo de produção” e é constantemente repelido pelo funcionamento da lei do valor. “Consideramos uma empresa que opera em um mercado em escala e nível de tecnologia similares a seus concorrentes, mas sobre a qual a mão de obra tem sido capaz de afirmar algum grau de controle negativo“, sugere Arnot. “Vai acontecer“, explica ele, “que nesta empresa o tempo de trabalho necessário para produzir uma determinada mercadoria excederá o tempo de trabalho socialmente necessário. O trabalho gasto não será refletido no valor da mercadoria, e o tempo de sobretrabalho, a mais-valia e o lucro diminuirão. Esta queda na rentabilidade em comparação com a de seus concorrentes mais agressivos do ponto de vista gerencial acabará levando à retirada da empresa do mercado, seja por falência ou por aquisição. Como resultado, a centralização e concentração de capital fará com que os trabalhadores percam o controle que eles impuseram e do qual se beneficiaram. Isto acontecerá porque seus ex-empregados se juntarão ao exército de reserva dos desempregados, com todas as consequências que isto implica, ou serão forçados a trabalhar em um ambiente mais agressivo que não permita um controle negativo”. Nada disto acontecia nas economias do bloco soviético. Aqui, Arnot observava, várias “formas de controle negativo são reproduzidas de maneira recorrente como uma característica da economia política do sistema e não há nenhuma tendência inerente a eliminá-las” [26].
Na seção do “marxismo transgênico” chamada “economia política do socialismo”, foi afirmado que as economias do bloco soviético produziam bens que só tinham valor de uso – ao contrário das economias capitalistas, que produzem mercadorias que são ao mesmo tempo valores de uso e valores de troca. Entretanto, isto era uma ficção, primeiro porque os processos trabalhistas não estavam formal ou efetivamente sujeitos a relações de produção, o que produzia a sua enorme arritmia, e segundo, devido à natureza antagônica das relações de produção, que eram relações de exploração.
“O resultado”, escreve Arnot, “é um produto composto de dois elementos: por um lado, uma parte utilizável que tem valor de uso para a sociedade como um todo, seja como produto intermediário ou como produto acabado destinado ao consumo ou investimento; por outro lado, uma parte não utilizável que é um resíduo, um desperdício e que não tem valor de uso. A determinação do valor de uso e do desperdício tem um componente objetivo e um componente subjetivo. Objetivamente, um interruptor elétrico que não funciona é um desperdício, mas um par de sapatos que ninguém quer por causa de sua má qualidade de design, mesmo que objetivamente possam ser usados como sapatos, é tanto desperdício quanto um interruptor que não funciona” [27].
A Ticktin em parte corrige isso e em parte o desenvolve da seguinte forma: enquanto no capitalismo a mercadoria incorpora a contradição entre valor de uso e valor de troca, nas economias do bloco soviético o valor de uso mesmo do produto incorpora a contradição “entre valor de uso real e valor de uso potencial“. Em outras palavras, um casaco servirá como casaco mesmo que uma de suas mangas seja mais curta que a outra, mas seu valor de uso é inferior ao de um casaco com duas mangas do mesmo comprimento. Uma máquina com uma peça defeituosa pode usinar peças utilizadas na fabricação de um carro, mas o carro então se parece mais uma sucata do que deveria. Em resumo, Ticktin observa, “no capitalismo, a unidade é a mercadoria com a contradição inerente entre seu valor de uso e seu valor de troca; na URSS, a unidade é o produto, e a contradição inerente é entre seu valor de uso real e seu valor de uso potencial” [28].
Continua aqui.
Este texto constitui a maior parte do p livro de Michał Siermiński, Pęknięta “Solidarność”. Inteligencja opozycyjna a robotnicy 1964-1981 (Solidarność rachado. A inteligência de oposição e os trabalhadores), Książka i Prasa, Warszawa 2020. Tradução de Alain Geffrouais para a Revista Movimento da versão francesa publicada pela Inprecor e estabelecida por Jan Malevsky.
[1] G.E.M. de Ste. Croix, « Class in Marx’s Conception of History, Ancient and Modern », New Left Review n° 146, 1984, p. 99. Ver também idem,, The Class Struggle in the Ancient Greek World: From the Archaic Age to the Arab Conquest, Cornell University Press, Ithaca 1981, pp. 31-69.
[2] Ver T.H. Aston, C.H.E. Philpin (sous la dir. de), The Brenner Debate. Agrarian Class Structure and Economic Development in Pre-Industrial Europe, Cambridge University Press, Cambridge-New York 1985.
[3] E. Meiksins Wood, « The Question of Market Dependence », pp. 57-58.
[4] R. Brenner, « The Soviet Union and Eastern Europe, Part I: The Roots of the Crisis », Against the Current n° 30, 1991, p. 27.
[5] Ibidem, p. 27.
[6] Ibidem, p. 27.
[7] Ibidem, p. 28.
[8] Ibidem, p. 27.
[9] A luz destas pesquisas, Andreff criticou várias teorias, inclusivo as de A. Bordiga, G. Munis, C. Castoriadis, Ch. Bettelheim, B. Chavance, T. Cliff, G. Duchêne, D. Rousset et P.M. Sweezy, segundo as quais no bloco soviético ou dominava um « capitalismo d’estado » diversamente concebido, ou tinha aparecida uma « nova sociedade de classe », desconhecida até então e historicamente estável. W. Andreff, « Capitalisme d’État ou monopolisme d’État en U.R.S.S. ? Propos d’étape », dans M. Lavigne (sous la dir. de), Économie politique de la planification en système socialiste, Economica, Paris 1978, pp. 245-286 ; idem, « Where Has All the Socialism Gone? Post-Revolutionary Society versus State Capitalism », Review of Radical Political Economics vol. 15 n° 137, 1983, pp. 137-152.
[10] URGENSE (Unité de recherche grenobloise sur les économies et les normes du socialisme existant), « Un taylorisme arythmique dans les économies planifiées du centre », Critiques de l’économie politique n° 19, 1982, pp. 110-111.
[11] Ibidem, p. 119.
[12] M. Laki, « End-Year Rush-Work in Hungarian Industry and Foreign Trade », Acta Oeconomica vol. 25 n° 1/2, 1980, p. 39.
[13] URGENSE, op. cit., pp. 121, 124.
[14] Ibidem, p. 124.
[15] H. Ticktin, « Towards a Political Economy of the USSR », Critique. Journal of Socialist Theory vol. 1 n° 1, 1973, pp. 25-29.
[16] L. Héthy, Cs. Mako, « Stimulants salariaux et économie planifiée », Sociologie du travail vol. 15 n° 1, 1973, p. 42.
[17] J. Boduch, « Stan i rezultaty badań nad organizacją pracy w przedsiębiorstwie », Ruch Prawniczy, Ekonomiczny i Socjologiczny vol. 23 n° 4, 1961, pp. 191, 196.
[18] A.S. Dovba, I.I. Chapiro, A.F. Zoubkova, Y.I. Chagalov, « USSR », dans Les nouvelles formes d’organisation du travail vol. 2, Bureau international du travail, Genève 1979, p. 91
[19] URGENSE, op. cit., p. 119.
[20] Ibidem, pp. 126, 116-117.
[21] URGENSE, op. cit., p. 119.
[22] D. Filtzer, Soviet Workers and De-Stalinization, p. 201.
[23] B. Arnot, « Soviet Labour Productivity and the Failure of the Shchekino Experiment », Critique. Journal of Socialist Theory vol. 15 n° 1, 1981 , pp. 41, 36.
[24] B. Arnot, Controlling Soviet Labour. Experimental Change From Brezhnev to Gorbachev, Macmillan Press, Houndsmill, Basingstoke-London, 1988, pp. 32, 79.
[25] H. Ticktin, Origins of the Crisis in the USSR. Essays on the Political Economy of a Disintegrating System, M.E. Sharpe, Armonk-London 1992, p. 86.
[26] B. Arnot, op. cit., pp. 41-42.
[27] Ibidem, p. 43. Voir également H. Ticktin, « Towards a Political Economy of the USSR », pp. 27-36.
[28] H. Ticktin, Origins of the Crisis in the USSR, pp. 12-13.