A “EXPERIÊNCIA” DA PANDEMIA E DA CRISE MÚLTIPLA: UMA ANÁLISE INICIAL A PARTIR DE BENJAMIN
Um ensaio sobre a pandemia e a relação com as crises na ótica de Benjamin
Uma compreensão mais geral, nítida e robusta das implicações e desdobramentos da pandemia de Covid-19, sobretudo no âmbito social, tanto subjetivo quanto coletivo, a se considerar o plano da História, ainda está por se delinear. No entanto, já é possível identificar primeiras impressões e elucubrações sobre a questão, dentro e fora da Academia, no esteio de estudos nas mais diversas áreas. Ademais, é notório que, simultânea à crise sanitária e impulsionada por ela, vive-se uma crise generalizada, em que pese, por exemplo, os problemas econômicos e, neste caso, especialmente ao se considerar a realidade brasileira.
Walter Benjamin, no esteio de suas reflexões sobre experiência e ao considerar o contexto da Primeira Guerra Mundial, em um de seus mais célebres textos, “Experiência e pobreza” (1933) e, depois, de forma semelhante, em “O narrador” (1936), faz o seguinte apontamento:
“Não, está claro que as ações da experiência estão em baixa, e isso numa geração que entre 1914 e 1918 viveu uma das mais terríveis experiências da história. Talvez isso não seja tão estranho como parece. Na época, já se podia notar que os combatentes tinham voltado silenciosos do campo de batalha. Mais pobres em experiências comunicáveis, e não mais ricos. Os livros de guerra que inundaram o mercado literário nos dez anos seguintes não continham experiências transmissíveis de boca em boca. Não, o fenômeno não é estranho. Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome, a experiência moral pelos governantes. Uma geração que ainda fora à escola num bonde puxado por cavalos viu-se abandonada, sem teto, numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano.”
Essa elaboração deixa perceber muito da concepção crítica de Benjamin acerca do avanço tecnicista, ao mesmo tempo que traça um quadro importante acerca da guerra vivenciada. Ao falar em experiências “radicalmente desmoralizadas”, o autor desmonta todo o ideal que busca sustentar a narrativa bélica, ao mesmo tempo que denuncia a “pobreza em “experiências comunicáveis”, no que retoma a importância da oralidade discutida nesses mesmos textos.
No campo literário, em uma Nigéria ainda arrasada pela experiência de uma guerra civil (1967-1970), Chimamanda Ngozi Adiche situa a narrativa de “Fantasmas”, um dos contos do aclamado No seu pescoço (2017). Embora aparentemente simplória, a narrativa suscita importantes reflexões.
Por meio do personagem James Nwoye, professor aposentado de uma universidade local, e de seu encontro com outro professor, Ikenna, que ele julgava morto na guerra, somos apresentados a um ambiente “assombrado”, até certo ponto e de certa forma, literalmente, pela guerra e seus vestígios. Afinal, a guerra parece ter matado, tanto literal quanto metafórica e ao menos parcialmente, os sujeitos.
Embora o personagem principal evidencie em si mesmo esse trauma, é por meio de Ikenna que ele reconhece mais claramente os efeitos da guerra. Se antes ele admirava o colega por seu caráter ativo e autêntico, agora reconhece nele “uma incerteza qualquer”, “um desânimo que parecia estranho” (p. 70), uma “casca de homem” (p. 79) e até mesmo uma risada que soa “desbotada, oca” (p. 69).
Assim, o diálogo que se dá no encontro entre as duas personagens é atravessado pela experiência da guerra. No entanto, o próprio James reconhece: “quase nunca falávamos da guerra. Quando o fazíamos, éramos implacavelmente vagos, como se o importante fosse […] o fato de havermos sobrevivido” (p. 81). Tal trecho, em especial, evidencia a aproximação com a ideia de empobrecimento de experiência a partir da guerra, refletida por Benjamin.
No contexto atual, em um sentido inédito, surpreendido pela pandemia do novo Coronavírus, o mundo vive, como se tornou comum dizer, uma “guerra contra um inimigo invisível”, em que se perdem milhares de vidas todos os dias no mundo todo. Uma dessas vidas foi a do pai de Chimamanda, que registrou a experiência no recente Notas sobre o luto (2021).
Nessa obra, de tom naturalmente memorialístico, somos apresentados a situações que se tornaram comuns durante a pandemia, como o “ritual de lockdown” (p. 9) das chamadas virtuais em família e a sensação de respirar “um ar contaminado pelas próprias teorias da conspiração” (p. 21).
Nessa crise de várias dimensões, um elemento central talvez seja o fato de que, ao mesmo tempo que coletiva, como na perspectiva benjaminiana (Erffährung), essa é uma experiência extremamente individual, subjetiva e solitária (Erlebnis), haja vista a necessidade do isolamento social. Assim, por conta da necessária prevenção contra o contágio, é inviável vivenciar traumas, como o do medo constante e o da perda pela doença, de forma coletiva, comunitária, ainda que existam os meios de comunicação virtuais.
Essa situação é apresentada em diversos momentos em Notas. Chimamanda relata, por exemplo, o esforço de vivenciar o luto em família de maneira remota: “Nossa chamada de Zoom é surreal, e nós só conseguimos chorar, chorar e chorar em diferentes partes do mundo” (p. 12) e até mesmo o esforço de planejar, de modo online, um funeral e seguir os protocolos sanitários em sua execução. Dessa forma, a autora identifica “as pessoas suspensas num limbo porque não podem pôr para descansar aqueles que amam.” (p. 35).
Além disso, é inegável que, durante a pandemia, experiencia-se um constante clima de insegurança. Assim, de uma forma que parece resumir vários desses sentimentos, Chimamanda aponta:
“O vírus tornou mais próxima a possibilidade da morte, seu caráter corriqueiro, mas ainda havia um semblante de controle se você ficasse em casa, se lavasse as mãos. […] A morte podia simplesmente surgir desabalada na sua direção a qualquer dia e a qualquer momento.” (p. 104)
Assim, parece inevitável encontrar paralelos entre as medidas de prevenção contra a doença e “a experiência estratégica pela guerra de trincheiras”, sobre a qual reflete Benjamin, uma vez que, ante a necessidade de manter o distanciamento social, casas se tornaram, analogamente, trincheiras, nas quais se pretende garantir proteção contra o “inimigo” e combatê-lo. Ao mesmo tempo, há, como dito por Benjamin, uma dimensão “radicalmente desmoralizada” nessa experiência, seja na angústia de uma tensão constante na espera de um ataque inimigo, ou, no caso, de uma contaminação pelo vírus, seja no fato de que, ainda que “entrincheirados”, a ameaça da morte parece inevitável.
No entanto, como se sabe, como se já não bastasse a pandemia em si, sobre Brasil pesa ainda um governo autoritário, incompetente e negacionista, o que aprofunda e intensifica a múltipla crise. Como se sabe, uma das facetas dessa situação é a iniciativa de um suposto “tratamento precoce” contra a Covid-19 e, nesse sentido, é inevitável encontrar paralelos com o problema, relatado em “Fantasmas”, de venda de medicamentos vencidos durante a guerra civil nigeriana. Em determinado momento, por exemplo, o personagem James reflete: “nenhum de nós sabia que os medicamentos eram inúteis até que foi tarde demais” (p. 78) e ainda relembra a declaração de uma autoridade à época: “Meus remédios não matam as pessoas…A questão é que eles não vão curar a doença” (p. 81).
Tal como aponta Benjamin, há também um aspecto profundamente desmoralizador na “experiência econômica pela inflação” e na “experiência do corpo pela fome” nesse período. Ainda que a crise econômica vivenciada no Brasil não decorra própria e unicamente da pandemia, é inegável que foi potencializada por ela e, sobretudo, por sua má condução. Daí surge uma outra remissão à Benjamin: a desmoralização da “experiência moral pelos governantes”, uma vez que falas e atitudes indecorosas se sucedem e escarnecem do caos social, sanitário e econômico vivenciado.
Para além disso, segundo Benjamin, a experiência da guerra se ambientou “numa paisagem diferente em tudo, exceto nas nuvens, e em cujo centro, num campo de forças de correntes e explosões destruidoras, estava o frágil e minúsculo corpo humano”. De maneira semelhante, a pandemia expôs o ser humano a um contexto em que ficou patente sua fragilidade e vulnerabilidade ante a dimensão microscópica de um vírus. No entanto, assim como apontou Georges Didi-Huberman, a partir de Benjamin, em seu Sobrevivência dos vagalumes (2011), há um apagamento dos sujeitos na historiografia. De forma semelhante, as vítimas do genocídio contemporâneo brasileiro tendem a se tornar apenas parte de dados estatísticos. Por outro lado, resta saber se os sobreviventes do período terão suas experiências, pessoais e desmoralizadas, consideradas, e quais serão as consequências, até memo coletivas, desse processo.