Felicitação à esquerda que enfrenta Daniel Ortega

Felicitação à esquerda que enfrenta Daniel Ortega

Leandro Fontes escreve em sua coluna sobre as recentes eleições nicaraguenses, que reelegeram Daniel Ortega para o quarto mandato consecutivo.

Leandro Fontes 15 nov 2021, 14:02

No domingo (07/11), Daniel Ortega se reelegeu com 75, 92% dos votos válidos para o quarto mandato consecutivo como presidente da Nicarágua. Segundo o Granma, portal oficial do Comitê Central do Partido Comunista Cubano, “os sandinistas lutam contra os anúncios de vários governos de direita internacional, liderados pelos Estados Unidos, mais a União Europeia, que desconhecem a contagem nas urnas”. Entretanto, o imponente Granma omite que nos últimos meses Ortega mandou prender sete concorrentes da disputa eleitoral e críticos de seu governo. Nesse conjunto estão membros do Unamos, partido de centro-esquerda (antigo Movimento de Renovação Sandinista), como Dora María Téllez e Hugo Torres, dissidentes pela esquerda da FSLN e heróis da revolução de 1979.

Acontece que nada disso é novidade ou se resume a uma narrativa opositora do imperialismo que tenta derrubar o governo Ortega. Pelo contrário, a situação na Nicarágua é muito mais complexa do que uma agitação retórica típica do campismo neo-stalinista e do Foro de São Paulo ou do denuncismo de direita expresso pela grande da mídia burguesa, como o Grupo Globo e o New York Times. Aliás, o levante popular que tomou os bairros proletários de Manágua e que teve impacto nas principais cidades do país em 2018 contradiz a opinião desses setores, uma vez que a causa fundamental que desencadeou a revolta foi o rechaço a medidas neoliberais aplicadas por Ortega em comum acordo com o FMI. 

Quer dizer, o gatilho desse movimento não se deu na defesa de uma bandeira reacionária hegemonizada pela direita golpista. Mas, sobretudo, pelo rechaço a reforma da previdência de Ortega. Todavia, a reação ao regime sandinista foi sangrenta, contabilizando mais de 300 mortos, aproximadamente dois mil feridos e milhares de presos. Assim sendo, o governo sandinista comandado por Daniel Ortega dá uma guinada repressiva em sua orientação de asfixia de opositores à direita e à esquerda do regime.

Mas, isso não é tudo. Nos últimos 42 anos, Ortega esteve 26 no poder. Isto é, de 1979 até 2021. Ortega só não esteve com a caneta na mão entre os anos de 1990 e 2006. Porém, é justamente nesse período que Ortega aprofundou laços com partidos capitalistas nativos e com setores conservadores da direita da Igreja Católica. Portanto, não é mera coincidência que de 2007 até hoje a Nicarágua não teve mudança estrutural à esquerda. De tal maneira, o governo sandinista não fez a reforma agrária e urbana, não tocou nos privilégios dos bancos, das empresas capitalistas e do sistema financeiro e, ainda, facilitou a abertura do país aos interesses de empresas internacionais no domínio do agronegócio, das indústrias mineiras e da pesca. No entanto, no decorrer desse tempo a família Ortega, para além do poder político, acumulou financeiramente e se apoderou de setores estratégicos do país.

Assim sendo, os últimos governos de Ortega foram edificados com o apoio do exército e pela a aliança com setores empresariais. Seus filhos foram nomeados em cargos públicos e na administração de empresas do país. E a esposa de Ortega é vice-presidente da república. A família igualmente possui o Canal 4, rede nacional de televisão que transmite pronunciamentos do governo e a massificação da hegemonia orteguista. Além disso, o regime a cada mandato da FSLN fica mais controlado nas mãos de ferro de Daniel Ortega. Isto é, o caminho percorrido nos últimos vinte anos é oposto do que foi romanticamente desejado pelos revolucionários e pelas massas que derrubaram Somoza. 

Portanto, o que ocorre na Nicarágua é o fortalecimento de uma autocracia familiar que se perdura na estrutura do poder do Estado, na economia e nas comunicações. A tendência natural é esse curso se aprofundar junto com as contradições indivisíveis desse processo e com a desigualdade social que catapultou as mobilizações populares de 2018, que feriram severamente o que conhecemos do sandinismo-oficial. 

Por isso, o pouco que sobrou de prestígio histórico de Ortega e da FSLN escorre pelo ralo. Basta observarmos o baixo número de felicitações de setores políticos das esquerdas em relação à renovação de seu mandato no último domingo (07/11). A polêmica sobre a nota de felicitação do PT, escrita por Romênio Pereira (secretário de relações internacionais do partido), a reeleição de Daniel Ortega, que logo depois é apagada do site petista tendo como “contorno” uma breve nota de Gleisi Hoffmann desautorizando o conteúdo expresso por Romênio e apontando para uma genérica “neutralidade” sob as linhas da defesa da autodeterminação dos povos e da democracia no que condiz ao governo e as oposições na Nicarágua é apenas sinal, entre tantos, desse curso irreversível.  

Logicamente, o reparo de Gleisi tem como objetivo central não misturar a figura de Lula (faltando um ano para as eleições no Brasil) com a de Ortega, apresentado pela grande mídia como um “ditador de esquerda”. Mas, tirando o pragmatismo habitual e eleitoralista do PT, o caso é que até para um partido de centro-esquerda com programa social-liberal, ligado ao Foro de São Paulo, como o PT, fica difícil dar o endosso acrítico para a cristalina metamorfose reacionária de Daniel Ortega, que hoje poderia ser aplaudido por Bolsonaro pelos privilégios e poder adquiridos para sua família, pela violenta repressão a opositores e, não podemos esquecer, pelo negacionosmo diante da pandemia do Covid-19.

De tal maneira, de mandato em mandato, Ortega vem se transformando em Somoza, o ditador que por quase meio século – junto com seus sucessores – usurpou o poder e as riquezas da Nicarágua sob tutela ianque e do terror das baionetas. Por isso, em 1962, é fundada a Frente Sandinista de Libertação Nacional – FSLN. Um movimento que surge com objetivo de ser o fio de continuidade da luta iniciada por Augusto Cesar Sandino, líder do movimento armado de libertação nacional que se formou com objetivo de tirar a Nicarágua dos domínios da intervenção militar dos Mariners norte-americanos. Seus dirigentes fundacionais, como Carlos Fonseca Amador, tinham forte influência da revolução cubana. E assim, um dos pilares centrais da FSLN foi a resistência ao imperialismo norte-americano e seus aliados nativos. E o método principal de luta era a guerrilha rural. 

A FSLN teve seu início como um movimento heterogêneo do ponto de vista social e político. Havia três tendências em seu interior: a tendência insurrecional, que era maioria na Frente; a tendência da guerra popular prolongada; e a tendência proletária, que defendia a maior implantação na classe operária. 

Para além das três tendências, a FSLN ainda contava com forte apoio popular nos bairros e nas zonas rurais. Destaca-se também que um setor progressivo da Igreja católica, principalmente de padres ligados à Teologia da Libertação, teve papel importante nesse processo de construção. Além disso, devido à asfixia provocada pelo regime somozista, até mesmo dos setores burgueses passam a apoiar determinados movimentos da FSLN. 

Dez anos após a fundação da FSLN, ocorreu um terrível terremoto que destruiu Manágua. Calcula-se que dez mil pessoas morreram e mais de cinquenta mil casas e estabelecimentos foram destruídos. A família Somoza se apropriou de parte significativa dos recursos internacionais doados às vítimas da tragédia. A rigor, esse episódio foi um fator objetivo e a gota d’água para as massas, inclusive para a elite anti-somozista que se colocava a favor ou, como mínimo, indiferente sobre a derrubada de Somaza via uma insurreição.  A partir desse ponto, fica nítido que a correlação de forças começou a mudar. É nesse então, em 1978, sob influência de Fidel Castro, que as três tendências se unificam num pacto pela tomada do poder. 

Um parêntese: o trotskismo representado pela corrente morenista e pela corrente mandelista, por vias distintas, igualmente apoiaram a FSLN. Destaca-se a construção da Brigada Simon Bolívar (Fração Bolchevique – morenista) que contribuiu diretamente com a revolução e por essa razão foi reconhecida por setores de massas e por setores do movimento operário nicaraguense. A continuação desse episódio culminou com a ruptura do SU-IV Internacional. Não entrarei na polêmica, até porque esse não é o objetivo da coluna. Entretanto, recomendo a leitura do novo livro de Pedro Fuentes, “Setenta anos de lutas e revoluções na América Latina (e nossa história)”, que está sendo lançado pela Editora Movimento, para a melhor conexão com os pontos sensíveis dos debates no movimento trotskista sobre a revolução na Nicarágua e a divisão da IV.  

Voltando, o sandinismo se consolida como um partido-exército, de tendência nacionalista radical dirigido por um setor pequeno-burguês. A insurreição popular armada triunfa. A direção da revolução foi a FSLN. Mas, o apoio das massas populares foi decisivo. Essa mobilização ajudou a construir barricadas nas estradas, nos bairros e nos vilarejos. Além disso, auxiliaram na distribuição de alimentos, de medicamentos e, em alguma medida, ajudaram nos combates contra as forças da Guarda Nacional. De fato o que ocorreu foi um levante popular de massas que culminou na insurreição armada. 

Com a vitória da revolução, Somoza DeBayle foge para o Paraguai. Daí se formou uma Junta de Governo para reorganizar o país. Essa composição foi protagonizada pela figura de Daniel Ortega. Entretanto, o Governo de Reconstrução Nacional foi formado a partir de um sistema de conciliação de classes, com maioria da FSLN. Mas, havia em seu interior a representação dos comandantes sandinistas e da burguesia anti-somozista – representada principalmente pela figura de Violeta Chamorro (dona do jornal burguês La Presa) e os representantes ligados à burguesia.

Portanto, de 1979 até 1985 essa Junta governou a Nicarágua. Em 1985, ocorreram eleições e o candidato sandinista, Daniel Ortega, venceu o pleito. Nota-se que a revolução na Nicarágua teve um objetivo central: derrubar a ditadura Somoza. O outro passo – “o que queremos” – não avançou para o terreno anticapitalista. Foi adotado um sistema de economia mista. Havia um consenso na Junta que era de instaurar um regime democrático-eleitoral e de maior participação popular nas decisões do país. Institucionalmente foi legalizado o direito de formação de partidos políticos e de plebiscito populares. Contudo, apesar de avanços no terreno social, estes passos se comprovaram insuficientes para que a revolução fosse adiante e a Nicarágua consolidasse como um país independente. 

Contudo, durante todo esse período, antes e durante o primeiro mandato presidencial de Ortega, os sandinistas enfrentam os Contras – a contrarrevolução (apoiados por Ronald Reagan). Isto é, o ambiente no país era de guerra. Assim, os sandinistas no poder amargaram uma longa guerra civil desde 1982. E em seguida, ao final do término do primeiro mandato de Ortega, a FSLN perdeu as eleições de 1990 para Violeta Chamorro. Que ressurgiu liderando a oposição burguesa, apoiada pelos norte-americanos e pelos Contras. 

As razões objetivas que geraram a derrota eleitoral dos sandinistas podem ser relacionadas à situação escassa de recursos materiais para o povo, o boicote econômico dos EUA e, principalmente, pelo cansaço do povo com a extensa guerra civil. 

Todavia, a derrota de 1990 não foi somente nas urnas. Já que o balanço do processo trouxe consequências duríssimas para a FSLN. Já que a revolução apoiada pelas massas, em dez anos, passou o poder para as mãos da burguesia. Esse fato acendeu a discussão das táticas e das estratégias no sandinismo. Assim sendo, pela primeira vez desde a insurreição, foi convocado um congresso da FSLN. Até então, o partido-exército era conduzido de modo verticalizado. A partir desse ponto, as diferenças passam a ser mais nítidas e segmentos do movimento sandinista começam a se fragmentar.

Veio às eleições seguintes e novamente Ortega é derrotado. Somente em 2006, em meio a uma situação de ascensão de governos independentes na América Latina (Venezuela, Bolívia e Equador), a FSLN voltou a vencer um pleito eleitoral. Só que dessa vez com parceria da Venezuela. 

Entretanto, Daniel Ortega não foi Hugo Chávez. Longe disso, seus governos (nesse século) se materializaram na negação à riquíssima experiência da insurreição popular de 1979 que destruiu o Estado burguês dominado pela família Somoza. No lugar da mística e das ideias revolucionárias que contagiou gerações em todo o mundo, acendeu um processo de liquidação da consciência da revolução tendo como proposta de substituição ideias e ações políticas reacionárias. Por isso, não podemos apoiar ou dar um salvo conduto a Daniel Ortega, já que este, em suas ações concretas, está mais próximo do nefasto legado de Somoza do que dos heróicos combatentes de 79. Portanto, cabe aos socialistas internacionalistas e da Nicarágua combater Ortega e reivindicar o autêntico legado da revolução sandinista que teve como símbolo apoteótico a derrubada de uma tirania familiar.  


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