Chile: laboratório de uma alternativa anticapitalista?

Chile: laboratório de uma alternativa anticapitalista?

A vitória democrática de Boric abre a possibilidade de construção de uma alternativa anticapitalista.

Bernardo Corrêa 24 dez 2021, 13:54

“Tú nos dices que debemos sentarnos

Pero las ideas solo pueden levantarnos

Caminar, recorrer, no rendirse ni retroceder

Ver, aprender como esponja absorbe

Nadie sobra, todos faltan, todos suman

Todos para todos, todo para nosotros”

Ana Tijoux

O cenário

A vitória de Gabriel Boric da Frente Apruebo Dignidad sobre a extrema-direita pinochetista no Chile coloca os olhos dos ativistas de todo o mundo sobre o país andino. Ademais de suas profundas contradições internas, o processo revela elementos que caracterizam o período que estamos passando em nível internacional. O país laboratório de implementação à força de um modelo que se tornou hegemônico no mundo, também está sendo um laboratório de buscas por alternativas para sair do “deserto do real” que o neoliberalismo impôs a todos nós, tendo que passar pela prova de evitar o retrocesso da extrema-direita, que ganhou contornos de um fenômeno igualmente internacional. 

Após festejar a derrota das viúvas de Pinochet, é preciso buscar compreender mais a fundo o processo e, levando em conta seu desenvolvimento, atuar sobre as melhores tendências que se apresentam após esta importante vitória democrática e, desde um ponto de vista internacionalista, lutar para que seus desdobramentos sejam fiéis ao espírito e às reivindicações do estallido de outubro de 2019, o que não está para nada garantido.

Também parece fundamental a construção de um sólido corpo político-programático que evite a dispersão e/ou desmoralização dos novos movimentos sociais e políticos que emergiram a partir dos anos 2000. Esta experiência será importante para dar um sinal positivo ou não aos ativistas que observam avidamente o processo chileno no mundo inteiro. O internacionalismo ativo não deve apenas observar, nem torcer passivamente, mas colaborar com o movimento que está há mais de dez anos acumulando em consciência e organização, do qual Boric é uma das expressões, mas sequer é a mais autêntica, por ter aceitado o acordo com Piñera e a pressão do regime em momento decisivo dos protestos. Não à toa, no primeiro turno a abstenção foi tão alta e Kast acabou vencendo. O grau de desconfiança de um setor enorme dos ativistas chilenos com o regime político (e com o próprio Gabriel Boric como líder de uma ruptura com ele) não entusiasmou até que se impusesse como necessidade histórica barrar a contrarrevolução pinochetista do século XXI. 

Os protagonistas

Após o golpe dado contra Salvador Allende em 1973, com níveis de perseguição inacreditáveis por parte dos golpistas, toda uma cepa de grandes lutadores e revolucionários foi destruída fisicamente. O golpe impôs enormes dificuldades em preservar a memória e um fio de continuidade histórico das lutas anteriores. Ainda que nunca tenha se perdido completamente, houve uma espécie de hiato produzido pela brutalidade da repressão. E os traumas, assim como nos indivíduos, fazem com que os povos não acreditem que possam mudar sua história, sentimento ou sensação física do que aconteceu no passado, até que os traumas sejam superados. Talvez por isso mesmo tenha sido tarefa de novas gerações colocar novamente o movimento de massas no centro da política chilena depois de 30 anos.

Os acordos realizados na transição à democracia burguesa nos anos 1980 deixaram intactos alguns dos pilares do modelo imposto pela ditadura. A brutalidade dos pacos (apelido que os ativistas do Chile dão à polícia) seguem caracterizando as forças de repressão, educadas na escola da ditadura. As privatizações foram um dos pilares do modelo de Pinochet: com a criação de sua “nova” Constituição do Chile, serviços básicos como eletricidade e água potável passaram para a iniciativa privada. Outros serviços, como educação, a saúde e posteriormente as rodovias também sofreram processo semelhante. 

O país, que chegou a ser conhecido como paraíso do neoliberalismo, revelou-se um inferno para os mais pobres, com altíssimos níveis de endividamento das famílias trabalhadoras à mercê dos interesses privados desde o direitos sociais até a aposentadoria (com as chamadas AFPs). Em constante entrega das riquezas chilenas ao capital internacional (especialmente minérios como o cobre e o lítio) o modelo sustentou durante mais de uma década um crescimento do PIB que apoiava-se em níveis de desigualdade sociais cada vez maiores.

Especialmente no que se refere ao chamado Estado Subsidiário, que não garante praticamente nenhum direito público gratuito e opera numa lógica de mercantilização do conjunto da vida, a centro-esquerda chilena agrupada na Concertación governou sem atacar este modelo por anos, de Lagos a Bachelet. Os avanços no terreno da memória e justiça com os ditadores, dignos de nota, foram acompanhados de políticas neoliberais no terreno econômico. O que incrementou um componente importante da crise geral do modelo no âmbito da representatividade, como se pode identificar nos sucessivos baixos níveis de participação eleitoral desde a redemocratização.

A crise mais profunda do modelo chileno, entretanto, começou a apresentar-se nos anos 2000. Em 2000, 30% da população viviam com U$ 5,50 por dia, já em 2017, essa taxa era de apenas 6,4%. Segundo o Panorama Social para América Latina [1] publicado pela CEPAL, em 2019, com base em informações tributárias, o 1% mais rico do país concentrava 22,6% da renda e da riqueza, sendo que em 2015 este número havia sido de 7,5% (um crescimento da desigualdade de mais de 15% em quatro anos).

As grandes jornadas de luta dos pingüinos indicaram uma mudança geracional que se refletiu na consciência e no estado de ânimo do movimento de massas frente às dificuldades. A luta dos estudantes secundaristas inicialmente com o mochilazo, depois ocupando as escolas em 2006 contra a educação-mercadoria que ainda caracteriza o sistema de ensino daquele país foi o estopim. Em 2011, foi a vez dos estudantes universitários, junto com os secundaristas, exigirem uma educação pública. Em 2016, o movimento feminista dá um salto de qualidade com o movimento #NiUnaMenos e consolida-se o movimento No + AFP, exigindo aposentadorias dignas. Além disso, a vitória de Piñera em 2018 significou um aumento da repressão contra o povo Mapuche que passou a ser um dos protagonistas das mudanças em curso no Chile, como simbolicamente demonstram as bandeiras presentes em todas as manifestações.

Esta miríade de novos movimentos sociais produziu um conjunto de lideranças, especialmente do movimento estudantil. Camila Vallejos (que é militante e deputada do Partido Comunista Chileno), o próprio Gabriel Boric, Giorgio Jackson, Cristian Cuevas no meio mineiro, e muitos outros no movimento dos bairros foram expressões importantes deste processo. Uma parte desta camada de ativistas fez sua primeira experiência política com a fundação da Frente Ampla em 2017, alcançando 20% dos votos das eleições presidenciais com Beatriz Sanchez e elegendo uma bancada significativa de deputados federais, boa parte deles, os próprios dirigentes das jornadas de lutas anteriores. Passaram a dirigir prefeituras em cidades importantes como Valparaíso com Jorge Sharp a frente.  A luta de classes não tardou em se apresentar e colocar à prova o método de construção, os princípios e o programa do novo agrupamento, seus dirigentes e expressões públicas. O fez no estallido de 2019 e volta a fazê-lo neste novo momento que se abre no país.

Possíveis dinâmicas

O movimento que iniciou no inícios dos 2000, até agora não teve uma derrota estratégica, pelo contrário, vem acumulando vitórias democráticas tendo como método a mobilização direta e a auto-organização, ainda que sem uma ferramenta política consolidada. A combinação entre a Assembleia Constituinte, com sua composição social à esquerda no espectro político e bastante independente do regime que fenece, com um governo que chegou ao poder empurrado por um amplo e potente movimento antifascista capitaneado pelas mulheres e a juventude deve colocar a nova esquerda chilena frente a desafios gigantescos. Governará inevitavelmente pressionada pelo “chicote da contrarrevolução” que seguirá reagindo apesar da derrota de Kast. Será assediada pelo regime agonizante com seu falido extremo-centro e seu grande poder econômico e político-parlamentar acumulado nos últimos 30 anos de Estado Susidiário. De outra parte, assume a presidência pelo empuje do potente movimento social chileno que supracitamos. 

Neste enquadramento, é possível trabalhar com, pelo menos, com três hipóteses de cenários que se abrem em decorrência da vitória eleitoral de Apruebo Dignidad:

  1. A reação democrática e a reconstrução da centro-esquerda chilena por meio da adaptação da nova esquerda ao regime político agonizante da transição. Esta é a aposta de boa parte da burguesia. Que Boric abandone qualquer plataforma de reformas estruturais que possam significar algum tipo de ruptura com o modus operandi do regime de acumulação capitalista vigente. O sinal dado com o pacto que salvou a pele de Piñera, assinado por Boric em pleno estalido de 2019 e suas declarações de moderação apontam para esta tendência. Em estrevista a La Razón, Fernando Mires, profesor emérito de la Universidad de Oldenburg expressou abertamente esta aposta: “No debemos olvidar que el estallido social de octubre del 2019 fue canalizado constitucionalmente gracias a los esfuerzos de la izquierda democrática. El plebiscito del 26 de octubre fue, para decirlo metafóricamente, un logro de los ‘mencheviques’ y no de los ‘bolcheviques’ chilenos. El triunfo de Boric cierra entonces un ciclo: el de la reconstitución política de la nación” [2].  Em sua metáfora, o professor festejou fevereiro e esqueceu que outubro vem depois, mas esta hipótese é realista. Para realizar-se, em última, necessita de uma derrota estratégica por cooptação e acomodação do movimento social, o que não parece ser nada fácil.
  1. Desestabilização do governo e reação da extrema-direita apoiada pelo setor empresarial e militar do velho regime. Esta hipótese parece ser a menos provável imediatamente, mas no país do golpe de 1973 e no qual Kast obteve 44% dos votos, nunca deve ser desprezada. A burguesia chilena se constituiu por meio de um neoliberalismo imposto à força por Pinochet e seus Chicago Boys e se consolidou por meio de altas taxas de superexploração do trabalho, saque dos recursos estratégicos do país e corrupção endêmica. Não aceitarão perder estes privilégios de maneira pacífica e contam com uma força reacionária constituída e relativamente organizada por Kast que concentrou o apoio de grupos conservadores, se uniu a vários líderes evangélicos, associações de militares na reserva das Forças Armadas e, em 2019, conseguiu fundar o Partido Republicano. A depender dos rumos do governo e do ânimo do movimento de massas, a contrarrevolução deve se mover mais ou menos no sentido golpista que a caracteriza.
  1. Uma nova escalada de mobilizações exigindo suas demandas e uma reconfiguração da nova esquerda chilena. A chegada de Gabriel Boric à presidência, como já dissemos, se deu impulsionada por um amplo movimento democrático contra a extrema-direita. Mas isso não se explica apenas de um ponto de vista ideológico, mas efetivamente no risco de retrocesso em algumas das conquistas dos últimos anos deste mesmo movimento. Por exemplo, Kast estava propondo acabar com a lei de aborto já limitada a casos de estupro, anenencéfalo e riscos de vida à mulher. Algo as feministas conquistaram com muita mobilização. Kast ainda propunha desfazer a reforma educacional em curso –  conquistada pelo movimento estudantil em meio a verdadeiras rebeliões – qualificada por ele como “propaganda de apoio ao aborto e ideologias de gênero”. Seu programa tinha como carro-chefe instalação de uma trincheira na fronteira norte do país para impedir a passagem de imigrantes e aos povos Mapuche “o uso da violência legítima” assim como uma “coordenação internacional anti-radicais de esquerda”. Sobre as mais de 200 pessoas ficaram cegas pelas balas de borracha dos pacos e os presos políticos que ainda seguem desde a rebelião de outubro de 2019 não é preciso dizer a posição de Kast. 

Ou seja, a derrota deste projeto abre caminho à exigência de avançar no seu oposto. Além disso, há latência do estallido e uma acumulação das conquistas anteriores. A Assembleia Constituinte ainda espera um reimpulso. A situação dos Mapuche caminha para um alto grau de conflito. A situação econômica pós-pandêmica pressiona por soluções concretas. O pólo social, entretanto, não encontrou ainda sua forma política mais orgânica. Nesta situação é muito possível que haja uma mudança na geografia política das organizações da nova esquerda chilena para enfrentar os desafios que virão com o novo governo.

Para não sermos esquemáticos e buscarmos a concretude da análise, vale a pena pensar em uma dinâmica onde cada uma destas três hipóteses se apresentem relacionadas. Quer dizer, uma busca de posicionamento ao centro por parte do governo, que abre espaço para a oposição de extrema-direita denunciar e buscar uma ofensiva maior. Por outro lado, a exigência das demandas represadas tornarem-se o maior salvo conduto de qualquer governabilidade, com um impulso mais ofensivo. Se isso acontece, podemos passar de um processo destituinte avançado que o Chile vive pós-2019, para um autêntico processo constituinte de um novo modelo para o país. É muito possível que as pressões parlamentares e as razões de Estado produzam conflitos com os próprios aliados da Frente vitoriosa a partir desta dinâmica (a começar pelo próprio PC que manteve uma posição contrária ao acordo com Pinheira e tem crescido com o repúdio ao discurso anticomunista de Kast). 

Já vimos outras experiências como Siryza e Podemos nas quais as tentativas de ida à centro-esquerda terminam por produzir erosões marcantes nas organizações políticas na chamada nova esquerda. Este risco sempre existe, porém a oportunidade de construir uma alternativa política anticapitalista legatária das lutas vitoriosas que o movimento tem acumulado também está aberta a partir desta importante vitória democrática do povo chileno. Boric e Apruebo Dignidad terão sua prova de fogo, se serão parte de um novo processo Constituinte, governar empoderando a Assembleia Constituinte e apoiados na mobilização popular para sair da crise de um modelo agonizante ou enfrentar-se com o movimento que os levou à presidência do Chile, buscando acomodar na agonia o sopro de esperança que vem dos debaixo. 

 [1] Emol.com – https://www.emol.com/noticias/Economia/2019/11/28/968758/Cepal-1-mas-rico-Chile.html

[2]  La Razón (21/12/2021): La extrema izquierda es muy útil para agitar las calles pero para gobernar no sirve https://www.larazon.es/internacional/20211221/4xalzp4rkjch3mtjtduxewj7ni.html 


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Pedro Micussi