Uma avaliação política sobre a não revogação da reforma trabalhista
Tradução: Júlio Pontes.
Publicado originalmente no Viento Sur em 30/12/2021.
Depois de meses de discussão em discretas mesas de negociação, o governo, liderado neste caso por Yolanda Díaz, CCOO, UGT e a CEOE anunciaram um acordo para readaptar a reforma trabalhista. Distante do pacto programático subscrito pelo governo, o acordo abandona a aproximação da “revogação” e assume como base a reforma de 2012 do Partido Popular. Na esquerda governamental foi tentado vender (de novo) o acordo como histórico; setores da direita, como o periódico ABC, o tão famoso quanto medíocre economista liberal Juan Ramón Rallo, o presidente da CEOE ou Luis Garicano têm saído em defesa do acordo, considerando que, apesar da irritação produzida pelo fato de ser liderado pela esquerda, não atinge (em que pese certas limitações da temporalidade) os pilares básicos do modelo trabalhista implantado pelo bipartidarismo.
O que é retocado e o que não se toca
A nível de mudanças na legislação trabalhista, é difícil vender isto como um êxito, embora a máquina ilusionista do progressismo o tente com sua mistura de argumento chantagista e passivo-agressivo contra a esquerda crítica, temperado com um ilusionismo verbal cada vez mais imponente e entristecido. Não se atinge a redução da demissão, se mantém a flexibilidade para dispensas objetivas, a falta de controle administrativo nas demissões coletivas, processamentos de salários não são recuperados… Resta saber se a prioridade de aplicação dos acordos setoriais será aplicada aos acordos já existentes, embora isso só afete ao salário, não às condições de trabalho. O único que se pode vender como uma recuperação de direitos tem a ver com a ultra-atividade dos acordos, uma concessão aos aparatos sindicais que permite evitar mais retrocessos formais depois de anos onde a capacidade de negociação destes atores havia retrocedido com força. A patronal pode dar-se por satisfeita: mantém a possibilidade da demissão livre e barata e, por outro lado, a total capacidade de organizar o trabalho a sua vontade nas empresas, podendo modificar as condições ao seu modo.
Ou seja, não estamos diante da revogação da reforma trabalhista do PP nem diante de uma nova reforma trabalhista; estamos diante uma pequena correção do marco da precariedade trabalhista e da flexibilidade pró-empresarial que tem imposto historicamente o PP, PSOE e a CEOE, amparados pelos aparatos sindicais.
Na base do consenso, a modernização
Por muito tempo, os dirigentes do PSOE e UP têm insistido na ideia de uma nova modernização. Talvez o texto onde esta tese se expressa de forma mais clara, infelizmente pouco discuta na esquerda, é o artigo de Alberto Garzón e Enrique Santiago (https://www.eldiario.es/opinion/tribuna-abierta/modernizacion-espana-enemigos_129_6295329.html), que passou desapercebido e não tratava de fundamentar teoricamente o que Pablo Iglesias vinha revelando há muito tempo por meio de declarações na mídia.
Este artigo tratava do compromisso da esquerda progressista com a modernização da Espanha. Modernização é o correlato no plano da política econômica do termo regeneração no plano político. Trata-se de atualizar as formas e setores que compõem o capitalismo espanhol. Neste artigo, a clássica retórica do capitalismo verde se combina com ilusões ridículas na capacidade do progressismo orientar a inversão e o modelo de desenvolvimento capitalista. Ilusões absurdas, não só pela natureza do capitalismo, senão porque UP é parte subalterna de um governo débil que não vai empreender nenhuma reforma que modifique conjunturalmente a relação entre estado e capital, e que possa gerar uma contra-tendência disruptiva contra o neoliberalismo.
O mais interesse do artigo, além destas afirmações tão velhas quanto extravagantes sobre o “desenvolvimento progressivo das forças produtivas” e a capacidade da esquerda para orientar este processo, é o fundo político, convertido em dogma de fé na nova UP liderada por Yolanda Díaz. Os dois dirigentes de IU e PCE reconhecem em certos setores da patronal um aliado. O artigo retomava de forma clara o velho axioma compartilhado pelo eurocomunismo de direitas e da social democracia convertida em social-liberalismo (cuja síntese mais avançada é o Partido Democrático Italiano): a modernização é “algo que o governo só pode resolver se uma parte da classe empresarial, a mais dinâmica e viva, fizer parte da solução”. Quer dizer, o adversário não é a classe empresarial, porque o objetivo a curto prazo não é já debilitar seu poder social, senão fortalecê-lo. O inimigo passa a ser tão só a direita política, que com suas explosões deixa de cumprir suas responsabilidades de Estado e se torna um obstáculo para a modernização.
Esta modernização progressista enfrenta certos limites objetivos (o papel do Estado espanhol no mercado global, as múltiplas crises que vive o capitalismo a nível global e as especificidades espanholas que se derivam dela), para sermos claros. O objetivo da modernização não é modernizar a estrutura produtiva espanhola: é reativar o ciclo de crescimento espanhol, porque na realidade, nossos modernizadores (liberal ou eurocomunistas) só creem que podem ativar a economia através da reativação das ganancias do capital.
Sobre esses objetivos, reaparece o famoso consenso, palavra fetiche de nossa de novo bem falada Transición. O famoso consenso, caricatura pseudo-gramsciana justificada sobre a base do acordo com quem deveria ser seu inimigo irreconciliável e construído sobre a exclusão de amplos setores que deveriam ser aliados: kellys, migrantes, trabalhadores das PYMES – pouco se fala como se renúncia nesta reforma trabalhista a incluí-los dentro do guarda-chuva da negociação sindical – e uma longa lista da grande maioria dos trabalhadores e trabalhadoras. Mas sejamos justos. Se a tese é que se deve priorizar a aliança e os vínculos com os empresário, a não reforma trabalhista impulsionada por Yolanda Díaz cumpre seu papel com perfeição. É nada mais nada menos que uma tradução em termos trabalhistas da famosa modernização, pois adapta a estrutura reguladora do trabalho às necessidades políticas e econômicas do capitalismo. Ou seja, este novo acordo trabalhista complementa os outros dois eixos principais sobre os quais o progressismo apoia o projeto modernizador, reintegrando lideranças sindicais na sua gestão: a distribuição de fundos europeus (dinheiro que destinado as grandes empresas como forma de compensar sua crise de lucro através de doping público, uma prática ortodoxamente neoliberal) e a contenção salarial para evitar que a inflação seja paga pelos lucros da empresa, cujo primeiro exemplo podemos comprovar com base nos tanques em Cádiz.
Em suma, não penso que estejamos diante um avanço em direção a qualquer outro lugar que não seja este projeto modernizador que temos anunciado. É importante esta discussão porque nos localiza no mapa político e econômico em que se move o progressismo e prenuncia uma determinada posição politica diante dele. Trata-se de assumir uma posição de oposição ativa a modernização e aos diferentes marcos políticos que a tornem possível, ir definindo cenários políticos que este projeto (débil e sujeito a volatilidade das crises) pode gerar.
Leituras políticas
Politicamente, isto é uma derrota para as forças que durante anos tem se mobilizado contra este modelo trabalhista (incluindo, por óbvio, a militância das forças de esquerda que participam do acordo), apesar de que seja um triunfo político político a integração modernizadora da esquerda. Sei que está na moda vender a ideia de que é um avanço parcial, mas até do ponto de vista político é falso vendê-la assim. O acordo do governo não se cumpre, pois a reforma trabalhista não é revogada. Todos os partido do bloco do governo estavam de acordo neste ponto, logrado através de anos de luta, porque, não esqueçamos, esta é uma demanda que se sustentou com mobilização. Depois de anos insistindo que as coisas se mudavam por meio do BOE, descobriu-se que quando a esquerda tem maioria parlamentar para aprovar certas leis, não o faz. E mais, se introduzi um ator não eleito como a CEOE para determinar todo processo de negociação. Esta negociação tem sido um bom indicativo de como funciona a lógica do regime política herdado da Transición. Quando governa a direita, o consenso social se rompe e só mudam os empresários. Quando governa a esquerda, o consenso social se reorganiza para que também sigam mandando. A hipótese de que a UP no executivo ia garantir os acordos do governo já havia sido escondida sem muitos reparos pelos dirigentes da esquerda: agora é apenas uma questão de vender como um avanço o que é uma renúncia, uma contrapartida necessária e não contingente de uma virada estratégica profunda.
Nesse sentido, me parece que a partir da esquerda (utilizo este termo na falta de um melhor e igualmente amplo), devemos discutir sobre algumas questões.
Creio que isto não é simplesmente um problema de testemunho ou de como o governo vendeu o que evidentemente é a aceitação com retoques da ordem política vigente. O problema é político e de estratégia. Tão ingênuo é crer que é possível uma transformação capitalista dentro deste regime, como pensar que não há margem para lutar e conseguir conquistas parciais. As conquistas parciais podem ser temporárias, sempre sujeitas a necessidade de ser defendidas, que conseguem introduzir as classes subalternas, que tem como objetivo melhoras as condições de vida e luta dentro e contra o próprio sistema. Renunciar a elas é renunciar também a politica, e algo pior assumir por exemplo a ideia de que uma classe trabalhadora empobrecida será mais radical, quando é o contrário. É a fortaleza e o fortalecimento de nossa classe, em um sentido amplo e sem resíduos corporativos, que nos permitirá estar em melhores condições para assumir os rumos das transformações. Na realidade, trata-se de apostar nisso não para sair da crise, senão para viver e lutar em meio a ela, deslocando-a por meio da luta política e econômica em direção ao capital, enquanto a classe trabalhadora se faz mais forte. É assim, neste ponto, onde podem se encontrar acordos de lutas entre as esquerdas.
Esclareço isto porque me parece nefasto assumir que isso teria que acontecer sem mais delongas. Isto é resultado de decisões estratégicas e do rumo assumido pela esquerda governamental e que agora tratam de compensar com gargalhadas sobre a unidade e novas lideranças. Uma estratégia que busque melhorar a famosa relação de forcas deve estar baseada no conflito social e político e não no consenso modernizador, e requer dois objetivos: utilizar todos os espaços para estender o conflito (e isso inclui utilizar as posições do Estado e do parlamento nesta chave, bloqueando o que havia que bloquear para alcançar essas conquistas parciais) e uma vontade mobilizadora ampla e organizada. Não tem havido vontade para isto na esquerda governamental, nem tampouco havido capacidade na esquerda que está fora do governo ou nos movimentos sociais. Uma lição amarga, mas que merece ser discutida sem concessões, evitando, na minha opinião, cair em qualquer fetiche (“o social ou o político”) ao que fazia menção Daniel Bensaid: necessitamos lutar na rua e nas empresas, um sindicalismo de combate mais forte, capas de arrastar os setores hoje imbricados nas organizações do consenso modernizador, mas também instrumentos e projetos políticos próprios, para não depender de uma lógica de pressão que permite que os aparatos da esquerda terminem integrando o Estado e assumindo a gestão pró-capitalista. Para dizer com claridade: não basta com chamamentos a luta, necessitamos de organização política para enfrentar esta nova etapa. Pressionar e delegar a politica na esquerda é também um mecanismo ideológico que só gera decepções e derrotas.
A curto prazo, evitar que esta rachadura se feche
Todo o mundo sabe que isto não cancela nem os problemas nem o debate sobre o mundo do trabalho. A propaganda tem as pernas muito curtas. Tanto o sindicalismo vasco como o gallego, assim como o sindicalismo alternativo no resto do Estado, já tem demonstrado sua oposição a este arranjo cheio de renuncias. Se necessita também uma posição política correlacionada com isto: veremos o que ocorre com partidos como EH Bildu ou ERC, já que seria bom que se mantivessem firma na anunciada rejeição a reforma e que não se voltassem para as primeiras mudanças. Decidiu-se manter manter o mesmo pilar trabalhista da etapa anterior, a fim de aprofundar o consenso “modernizador progressista”. Não conhecemos ainda os efeitos políticos disso, embora é possível que quando passe o auge propagandístico, o descontentamento com a esquerda governamental siga aumentando, sem que, sendo honesto, outras forças substitutas irão, no curto prazo, canalizar esse desconforto para a esquerda. Tiremos forças para lutar em prazos curtos, mas também nos preparemos para uma nova etapa, que apesar dos consensos acima, se anuncia turbulenta. Porque a modernização não é nada mais que uma reorganização da classe dominante em sua luta contra as classes trabalhadores e subalternas.