Nicarágua, o campismo sustentando um regime autoritário
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Nicarágua, o campismo sustentando um regime autoritário

Uma análise da posição campista frente à recente perseguição de militantes históricos na Nicarágua.

Antonio Cunha Neto 18 mar 2022, 15:03

O julgamento de dezenas de ex-guerrilheiros da FSLN e a morte de Hugo Torres, ex-comandante guerrilheiro, nos cárceres de Manágua, sob o regime de Ortega/Murillo, vem consolidando o curso autoritário da FSLN à frente do governo da Nicarágua. A vitoriosa revolução sandinista, que na década de 1970 derrotou a ditadura dinástica da família Somoza, foi dirigida pela Frente Sandinista de Libertação Nacional. Naquelas décadas (anos 60 e 70) rebeliões populares sacudiram o continente, e, em alguns casos, resultaram na derrota de governos autoritários e na conquista do poder pelas armas. Era a esperança de que Cuba pudesse sair do isolamento e de rompermos com séculos de exploração imperialista no subcontinente.

Vejamos o diz Pedro Fuentes:

“A Nicarágua é uma revolução triunfante, com características muito semelhantes às da Revolução Cubana, que mais uma vez abalou o continente, desencadeando uma onda de solidariedade não só na América Latina, mas também nos Estados Unidos e na Europa.

Naquele país havia uma ditadura semelhante à de Batista em Cuba: a dinastia Somoza. Também como Cuba, a Nicarágua era uma pequena república dominada pelo império yankee. Neste contexto, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) surgiu na segunda metade dos anos 70. Em contraste com os guerrilheiros foquistas que permaneceram isolados, a FSLN começou a ganhar forte prestígio e simpatia entre a população para enfrentar a ditadura de Somoza.”1

Porém, infelizmente, as esperanças na revolução sandinista foram frustradas e, em 2022, Ortega e Murillo dão os últimos golpes no que restou da vitoriosa revolução de 1979.

Apesar de triunfante, a revolução sandinista não foi completa. Entregou à uma fração da burguesia – os Chamorro – parte do controle sobre a economia, fato que resulta no fortalecimento de uma ala burguesa com interesses próprios.

Além de alimentar um inimigo interno, como as eleições de 1989 viriam a confirmar, a guerra civil com “Os Contra”, financiados pelos EUA, e os posteriores acordos de Esquipulas e Contadora – que deram legalidade a estes – desmantelaram a revolução.

Finalmente, com a derrota eleitoral de 1989, ocorre o que ficou conhecido na Nicarágua como “La Piñata” onde a cúpula da FSLN, o alto escalão do governo e a família de Daniel Ortega e Rosario Murillo se apropriaram de bens, móveis, imóveis, propriedades rurais e de diversas indústrias que pertenceram ou ao Estado ou a ala burguesa derrotada pela revolução sandinista. Um marco no processo de burocratização e no curso patrimonialista, que ainda hoje marca a família Ortega/Murillo.

Boa parte dos mais de 150 presos políticos do regime de Daniel Ortega foram ex-guerrilheiros, figuras importantes na derrota da dinastia Somoza. Mas as divergências que levaram a suas prisões não começaram com as duras, brutais e sangrentas repressões as mobilizações de 2018, contra a reforma do regime de previdências. Dora Maria e Hugo Torres, para citar apenas nomes mais emblemáticos, fundaram movimentos de renovação sandinista, hoje conhecido como UNAMOS. Seguramente o regime da principal organização que comandou a revolução nicaraguense foi decisivo para o curso autoritário da Nicarágua. Vejamos como resume Pedro Fuentes o papel da FSLN após encerrada a etapa revolucionária na Nicarágua:

“Desta forma, uma importante situação revolucionária foi encerrada, cuja responsabilidade central, neste caso, reside no papel desempenhado pelas direções. Há uma mania entre as correntes sectárias ou dogmáticas de ver revoluções por toda parte que não triunfam por causa do papel das direções. Neste caso, a política das direções teve uma influência decisiva. Faltava democracia revolucionária para decidir o curso da política. A vanguarda seguia aos partidos-exercito que tinham disciplina militar e, portanto, não eram partidos onde a democracia operária era praticada.”2

Parte da esquerda latino-americana e mundial faz vista grossa para as atrocidades de Ortega, acreditam que ele representa a resistência ante o império do Norte, e por isso precisa ser apoiado, que os “excessos” que eventualmente comete são justificados pelas sucessivas tentativas de desestabilização promovidas pelos EUA e seus títeres centro americanos. Essa mesma parte da esquerda, que avaliza as ações autoritárias de Ortega, apoia a agressão imperialista de Putin à Ucrânia e é incapaz de posicionar de maneira independente diante de qualquer governo que esteja, supostamente, fora do “campo” do imperialismo norte-americano.

Ao mesmo tempo, vê tentativas desestabilizadoras em qualquer ação independente do movimento de massas, contra políticas desses governos. Ao mesmo tempo que não confiam na força transformadora do movimento de massas, apostam todas suas fichas que, chegando ao governo, por qualquer meio, farão reformas no Estado capitalista. Felizmente as coisas não funcionam assim e, como veremos, a Nicarágua, assim como a Venezuela, está na contramão do continente.

Nicarágua na contramão do continente

As mobilizações que sacudiram o Chile em 2019 trouxeram consigo uma série de mudanças importantes no mapa político latino americano, assim como, no final da década de 90, converteu fortes mobilizações do movimento de massas em importantes vitórias políticas, levando pela via eleitoral setores independentes do imperialismo, e até com características anticapitalistas, caso de Chávez no pós-golpe. A vitória de Gabriel Boric no Chile foi também uma vitória das ruas. Centenas de milhares de chilenos ocuparam as ruas por semanas, numa verdadeira insurreição popular contra o governo de Piñera e por uma nova constituição. Piñera se arrastou no cargo até seu último dia de mandato, mas o Chile ganhou uma Assembleia Constituinte de maioria feminina e na qual os representantes dosinteresses burgueses e da extrema-direita são minoritários. No rastro das mobilizações chilenas, o povo boliviano, com a COB e o Sindicato dos Mineiros a frente, tomou as ruas e derrotou o golpe da extrema-direita (apoiada por Bolsonaro), que forçou a renúncia de Evo Morales, e obrigou a Añez e as instituições bolivianas a convocar novas eleições, que deram a vitória ao MAS.

América: Agitação de norte a sul. A extrema direita encurralada.

Os dois anos de pandemia tem sido de agitação política, e aos poucos a extrema-direita vai perdendo espaço. Até mesmo nos EUA, a vitória de Biden é expressão do esgotamento das experiências autoritárias. Biden é, mais que Trump, um legítimo representante do establishment político norte-americano. Contudo, o voto em Biden foi um voto contra o autoritarismo, representado por Trump. No México, a vitória de Lopez Obrador carrega o mesmo signo. Tudo indica que Colômbia e Brasil serão os próximos capítulos desta nova etapa da luta de classes no continente americano. Não queremos dizer com isso que a extrema-direita esteja morta ou acabada, mas vem sofrendo derrotas e se debilitando.

Campismo é base teórica da cumplicidade com Maduro e Ortega

Segundo Pedro Fuentes, dirigentes internacionalista e fundador de nossa corrente, o campismo poder ser entendido da seguinte maneira:

O termo campismo surgiu após a Segunda Guerra Mundial, quando em Yalta o mundo foi dividido entre os EUA e a União Soviética. Nessa época foram formados dois blocos: de um lado o imperialismo americano, que se tornou hegemônico no Ocidente, e do lado Oriental a burocracia soviética. Desta situação surgiu o que no trotskismo veio a ser conhecido como política campista. Ou seja, pensar que a luta de classes mundial passou pelo apoio ao bloco da ex-URSS.

Obviamente, a dissolução da URSS não significou o fim do campismo, mas sua atualização, e agora com um programa mais rebaixado, que manteve a luta contra o imperialismo norte-americano como elemento. Obviamente, sempre defendemos que frente a uma agressão imperialista a qualquer país independente era dever dos revolucionários se solidarizar e estar ao lado, não só do movimento dos trabalhadores e de seus partidos, como também fazer unidade de ação com seus governos, contra a agressão imperialista. Foi esta certeza que nos levou a defender o governo de Chávez frente ao paro petroleiro e ao posterior golpe na Venezuela. Foi o mesmo que nos levou a marchar juntos com o MAS contra o golpe parlamentar na Bolívia, exigindo o fim do governo golpista de Añez. Mas durante todo o governo de Chávez nossa corrente na Venezuela se manteve independente de Chávez, ainda que fizesse parte do mesmo PSUV. Não confundimos a necessidade tática de unidade de ação ou frente única anti-imperialista com a estratégia campista.

A classe como fator determinante na luta anti-imperialista e anticapitalista

A estratégia campista é apenas parte do programa de um setor da esquerda reformista, ou do chamado campo progressista. Eles não confiam na classe e não acreditam no potencial revolucionário do movimento dos trabalhadores por um lado, e por outro lado, o dos regimes burocratizados e autoritários, como os de Maduro e Ortega, temem a ação independente da classe, pois são uma ameaça a seus privilégios e sua permanência no poder.

Os atuais julgamentos em Manágua são consequência da reforma da previdência, de corte neo-liberal, imposta por Daniel Ortega na Nicarágua. O povo foi às ruas protestar contra a reforma da previdência e não contra Ortega a dura e brutal repressão fez o governo virar alvo dos protestos. Mas para o campismo e para Ortega os protestos não passaram de mais uma tentativa de desestabilização Yankee.

Nossa estratégia é apostar o que motor das transformações estruturais da classe está na própria classe e em suas mobilizações. A vitória eleitoral de Gabriel Boric no Chile foi resultado de uma insurreição popular que desmoralizou a direita neoliberal que comandou o país por décadas, da mesma forma que foi “Caracazo” que deu a vitória a Chávez na Venezuela.

É preciso denunciar os crimes de Ortega e Murillo, exigindo a extinção dos processos, com anistia geral e irrestrita a todos os presos políticos. É fundamental que todos os assassinos, dos mais de trezentos nicaraguenses mortos em 2018, sejam identificados, julgados e condenados. Por trair o povo nicaraguense, os ideais que inspiraram Sandino e os revolucionários sandinistas Daniel Ortega e Raquel Murillo merecem o lixo da história.

1 Fuentes, Pedro. Setenta anos de lutas e revoluções na América Latina (e nossa história), Editora Movimento, 2021, pg 107

2 Fuentes, Pedro. Setenta anos de lutas e revoluções na América Latina (e nossa história), Editora Movimento, 2021, pg 112


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