A quem interessa a privatização da Sabesp
Garantir a manutenção da Sabesp como uma empresa pública se afirma como uma luta urgente e pautada na solidariedade de classes
Tarcísio de Freitas (Republicanos), governador bolsonarista recém eleito em SP, afirmou na última quarta (18), em sua participação no Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, que pretende privatizar a Sabesp até 2024. Para isso, nomeou seu vice, Felício Ramuth (PSD), político experiente, ex-prefeito de São José dos Campos, para estar à frente do estudo que pode dar de bandeja para o mercado uma empresa pública responsável pela gestão de um bem estratégico essencial para o povo paulista.
No ano de 2023, a companhia completa 50 anos de existência, sendo hoje a última estatal de grande porte do Estado de São Paulo. A Sabesp atende 375 municípios do Estado que tem a segunda maior cobertura de saneamento do Brasil, ou seja, um grande filão para os empresários desfrutarem no caso de uma privatização.
Garantir a manutenção da Sabesp como uma empresa pública se afirma como uma luta urgente e pautada na solidariedade de classes. Afinal, se considerarmos ainda insuficiente e desigual a infraestrutura para água e esgoto, sobretudo nos territórios mais pobres, esse cenário pode piorar com a privatização, já que segundo o Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Estado de São Paulo (Sintaema). Dos 375 municípios operados pela empresa, 242 têm até 20 mil habitantes, e na área de atuação da empresa, mais de 20% da população está em alta vulnerabilidade, sendo mais de 10% em extrema pobreza.
Para que o interesse social da Sabesp fosse preservado, a maior preocupação do governo (acionista majoritário) deveria ser com a universalização do saneamento, o que infelizmente é a antítese do projeto de Tarcísio, que se revela, mais do que nunca, alinhado com os agentes do mercado. Isso é expresso na declaração de analistas do Banco Credit Suisse, que defendem que os municípios atendidos pela companhia defendam e implementem modelos de privatização baseados na necessidade de fazer caixa para as eleições de 2024:
“Considerando as eleições municipais em 2024, acreditamos que um formato de privatização semelhante ao da Eletrobras seria atraente, em que fundos são criados para remunerar ou compensar os municípios por novos contratos de concessão, ganhando o apoio de alguns prefeitos para obter recursos para seus mandatos futuros”. ¹ (publicado no portal da Revista Veja em 12/12/2022).
O legado privatista dos tucanos
Não é de hoje que o mercado financeiro acompanha, atônito, a possibilidade de privatização da maior empresa de água do Brasil. A Sabesp, embora não tenha sido totalmente privatizada, tem parte do capital social misto – ou seja, 50,3% controlado pelo governo estadual e 49,7% nas bolsas de valores (Bovespa e New York Stock Exchange-NYSE).
Desde os anos 90, no bojo das reformas neoliberais do PSDB a nível nacional e estadual, a Sabesp é alvo de reformulação de sua estrutura organizativa e do controle acionário. A primeira foi em 1995, quando o então governador do PSDB, Mário Covas, implementou as chamadas Unidades de Negócios, um ensaio para transformação da Sabesp em uma holding, uma espécie de uma sociedade gestora de participações sociais que administra conglomerados de um determinado grupo. Foi em 1998 que ocorreu, enfim, a abertura de capital para os mercados de ações, o qual obteve a divisão do controle acionário em 85,43% para o governo do Estado de São Paulo; 3,03% DAEE/SP; e 11,54% para o capital privado na Bolsa de Valores, chegando em 2002 com o modelo de divisão acionária que vigora até os dias de hoje, que reduziu a participação do Estado e ampliou a participação do setor privado.
As últimas gestões reforçaram a ideia. Desde Geraldo Alckmin, que em 2017 chegou a enviar um projeto para Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) que autorizava a transferência da administração da Sabesp para outra empresa (privada) até a última gestão (Doria-Garcia), que a partir do então secretário de Projetos e Ações Estratégicas, Rodrigo Maia, trouxe novamente o assunto à tona, indicando novos estudos para a privatização.
Os interesses do Banco mundial, da Coca-Cola, da Nestlé e da AMBEV
O Banco Mundial, que pelo menos desde a década de 90 tem participado ativamente de discussões internacionais sobre saneamento a fim de influenciar, a partir de consultorias sobre modelos de gestão, os Estados e municípios que estudam privatização da água, atuou fortemente na discussão da MP 868. A medida provisória instituiu o novo marco legal do saneamento. Em um de seus relatórios, lançados em 2020 a partir de um acordo de cooperação celebrado três anos antes entre o Water Resource Group (WRG 30) e a Associação Brasileira de Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib), a Abdib aparece a seguinte análise sobre o setor público e privado:
“Tradicionalmente, o olhar do setor privado focaliza o modelo de negócio e os aspectos de economia, eficiência, segurança, competitividade e rapidez. A indústria também tende a focar em soluções de curto prazo e individuais, enquanto que os governos precisam trabalhar com horizontes de planejamento mais longos e com soluções coletivas concertadas entre os diferentes setores usuários dos recursos hídricos. Participando do planejamento de longo prazo, as indústrias podem também encontrar suporte para seus próprios projetos, e superar desconfianças em relação à eficiência do setor público” (https://2030wrg.org/where-we-work/sao-paulo-brazil/).
O tal fórum WRG 30 é uma iniciativa do Banco Mundial, cofinanciada por diversas empresas, dentre elas Coca-Cola, Nestlé e AMBEV. Essa relação entre grandes empresas e a discussão sobre água e saneamento não é uma coincidência, nem mesmo uma consequência do interesse genuíno dessas pelo tema, mas, sim, uma forma de sobrepor as intenções de ampliação do lucro acima da efetividade da proposta que defendem de privatização.
A articulação para a mercantilização da água é central para essas corporações, pois a água se configura como a principal matéria-prima para seus produtos. Em 2014, por exemplo, ano da última grande crise hídrica do Estado, a Sabesp fechou um acordo com grandes clientes, dentre os quais estão essas empresas, no valor de R$ 30 milhões, impactando sobre exonerações tarifárias. A Ambev declara usar 2,94 litros de água para cada litro de bebida produzida, enquanto a Coca-Cola utiliza 1,67 por litro.
O lobby se aprofundou no governo Temer, quando o então presidente editou, em 2018, a Medida Provisória 868, que abriu ainda mais espaço para a privatização da água nos Estados e municípios. Segundo apuração do Jornal O Joio e o Trigo (https://ojoioeotrigo.com.br/2019/06/qual-o-interesse-de-coca-e-ambev-na-privatizacao-da-agua-da-torneira/) uma reunião do então presidente da Nestlé, Paul Bucke, no mesmo ano, teria passado também por esse tema. O relator da MP no Senado não poderia ser outro, o escolhido foi Tasso Jereissati (PSDB-CE), que pertence à família dona da empresa Solar, simplesmente a maior responsável pelo engarrafamento de Coca-cola no nordeste e em parte do Centro-Oeste.
Essas empresas, além de se mostrarem interessadas no tema de água e saneamento e fazerem parte do WRG 30, também têm em comum a aposta no Infra 2038, um grupo de corporações que defende a busca por uma melhor posição do Brasil no ranking global de infraestrutura. Os participantes do grupo têm em comum, relação com a Fundação Lemann, ligada ao empresário João Paulo Lemann, bilionário dono da Ambev e grande financiador de campanhas eleitorais e iniciativas políticas.
As experiências que já deram errado
Essa tendência global da privatização dos serviços de água e saneamento vem em compasso com as reformas neoliberais da década de 90, como mencionado anteriormente. Portanto, passadas algumas décadas desse processo, temos diversos exemplos de experiências fracassadas, principalmente com elevação de tarifas, desaceleração da expansão dos serviços e dificuldade de fiscalização pelas agências reguladoras.
A privatização da Cedae, no Rio de Janeiro – Estado do governador Tarcísio de Freitas -, em 2021, além de estar no centro de uma investigação do MP por corrupção e cargos fantasmas, também teve impacto sobre as tarifas. A tarifa social da Sabesp com consumo até 10m³ é de R$ 20,42, enquanto no Rio de Janeiro é de R$ 45,30. A tarifa normal residencial da Sabesp com consumo até 10m³ custa R$ 65,44 e no Rio de Janeiro, com a empresa privatizada, custa R$ 111,92.
No caso do Estado de Tocantins, o governo do Estado privatizou a empresa de saneamento em 1998, e os 125 municípios do Estado passaram a ser atendidos pela pela Odebrecht – ambiental, que posteriormente foi vendida para o fundo de investimento canadense Brookfield (BRK). Em 2010, quando comprovada a ineficiência do setor privado em administrar o contrato, foram devolvidos à gestão pública os 78 menores municípios ao Estado, exatamente onde há maior incidência de vulnerabilidade social e ambiental.
Podemos ainda falar da Corsan, no Rio Grande do Sul, que, segundo denúncias do sindicato, vendeu a empresa a um valor abaixo do valor de mercado e não ampliou o acesso ao saneamento – ou mesmo de Paris e Berlim, grandes cidades européias que recentemente reestatizaram seus serviços de água. Mas nada disso seria suficiente para frear os interesses de uma parcela do capital privado no Brasil de dominar o setor. Como evidenciado em diversas fontes, esse interesse é pari passu com o da classe política, pois os próprios agentes políticos têm interesses pessoais envolvidos nessa privatização, ou são empresários também ou apostam nesse processo como grande potencializador de futuras campanhas.
¹ GIMENES, Diego. A temperatura da privatização da Sabesp na Faria Lima. Veja, Dezembro de 2022.