A culpa não é da chuva. Nem das vítimas
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A culpa não é da chuva. Nem das vítimas

Sujeitar trabalhadores pretos e pobres ao risco de morte, por falta de infraestrutura e boas políticas urbanas, é uma escolha que o poder público renova anualmente

Tatiana Py Dutra 23 fev 2023, 14:00

São Sebastião foi a primeira cidade a se formar no litoral norte de São Paulo. Enquanto sesmaria, teve economia baseada na pesca – setor que hoje, junto com o turismo, sustenta a maior parte dos atuais 90 mil habitantes do município. Considerada uma das 15 Estâncias Balneárias do estado, atrai anualmente milhares de turistas, além de milionários, que construíram imóveis luxuosos na localidade.

Mas você provavelmente não viu nenhuma moradia opulenta destruída pelos alagamentos e desmoronamentos trazidos pela chuva histórica do último dia 16 de fevereiro, quando foram registrados 600 milímetros de precipitação. Os 47 mortos e os cerca de 50 desaparecidos, habitavam a área menos nobre da cidade.

“Tem uma divisão bem nítida de classes aqui na região. A Rio-Santos corta o litoral. Do lado da praia, são casas de alto padrão. Inclusive a família Safra tem casa aqui, Abílio Diniz, pessoas muito, muito ricas. Do outro lado da Rio-Santos, que é o lado morro, é onde moram os trabalhadores. Muitos dos que trabalham no turismo e mesmo nessas casas, cozinheiros, jardineiros, faxineiros. Essas pessoas foram atingidas por desabamentos, muitos perderam familiares, perderam casas, não sabem se vão ter trabalho, porque a região foi impactada de forma muito forte e o turismo não se recupera de uma hora para a outra. As pessoas que estavam no lado da praia foram embora de barco, de helicóptero, enquanto as pessoas do lado do morro, dos trabalhadores, permanecem aqui até hoje”, conta a deputada estadual Monica Seixas (PSOL-SP), que visitou São Sebastião na última quarta (22).

A parlamentar levantou várias preocupações sobre a situação das famílias atingidas. Uma delas é com o sustento, já que a rodovia Mogi-Bertioga, que é a que liga mais facilmente São Paulo àquela região, ainda levará dois meses para ser recuperada, impedindo a retomada de qualquer atividade turística. Mas a inquietação mais premente é o atendimento às necessidades dos flagelados da chuva. Segundo Monica, as áreas mais destruídas, como Barra do Sahy, contam com uma assistência importante, mas com muitas dificuldades. 

“Não tem assistente social, não tem apoio psicológico para essas famílias e mesmo para os trabalhadores que estão como voluntários ou direcionados pela Defesa Civil e companhia. Vai chover nos próximos dias, e eles seguem aqui, em situação de risco. Há uma decisão judicial que saiu hoje para que as famílias sejam removidas da região, só que para onde elas vão? Mesmo os abrigos ainda estão sendo organizados. A gente percebe que há uma dificuldade logística. Estão recebendo muitas doações, mas não sabem o que vai para onde. Na Barra do Sahy, onde houve o maior número de mortos, está chegando muita doação. Só que tem outros lugares, também prejudicados, que não está chegando nada. Os trabalhadores fazem o que podem, mas a logística é insuficiente”, relata.

Ao menos um plano de contingência poderia ter sido elaborado pelo município, uma vez que o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) alertou Estado e prefeitura sobre o risco de desastre com dois dias de antecedência, inclusive mencionando o local de maior risco, a Barra do Sahy. Ainda assim, os moradores não receberam o alerta e não houve pedido para que deixassem suas casas mesmo diante do perigo de deslizamentos. 

“Agora estamos vendo a insuficiência completa do poder público, municipal e estadual”, diz Monica.

Despreparo

A prova do despreparo é que o prédio do Instituto Verdescola, organização da família Civita, está sendo usado como centro de apoio para as atividades de acolhimento de famílias, apoio a trabalhadores, recepção de mantimentos, e mesmo de corpos de vítimas, já que a localidade não tem IML.

“Os corpos estão ficando nas salas de aula, em área reservada sem o devido acondicionamento. Não há uma logística para a retirada. Como você recebe as famílias com os corpos ao lado?”, questiona a parlamentar.

Os moradores, por sua vez, consideram estar sendo tratados como “entulho”. Sem água, sem luz, sem perspectivas, desesperam-se com a interrupção do trabalho de resgate – substituído pelo de desobstrução de ruas. 

“A comunidade quer participar das decisões. Pede que siga as buscas por corpos e que parem a retirada de entulhos”, completa Monica.

Sem ação

Não se trata apenas de Estado e prefeitura terem ignorado a advertência do Cemaden – órgão do governo federal que monitora áreas de risco e emite alertas para os órgãos de prevenção – para o desastre. É fato notório que o verão (em especial sua segunda metade) é temporada de chuvas fortes no Sudeste, que não raro acarretam alagamentos e deslizamentos de terra. Reduzir o número de desabrigados e mortos depende de planejamento e de boa vontade. Mas será que o poder público tem? 

A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) do governo de São Paulo conta com um projeto de urbanização da Barra do Sahy engavetado há sete anos. O plano foi elaborado após demanda encabeçada justamente pelo mesmo Instituto Verdescola que hoje abriga sobreviventes e cadáveres. 

Dias antes da tragédia se abater no Litoral Norte paulista, São Gonçalo, na região metropolitana do Rio de Janeiro, ficou embaixo d’água por causa de 200mm de chuva. O pronto-socorro local foi alagado e uma pessoa morreu em um deslizamento de terra.

O deputado estadual professor Josemar Carvalho (PSOL) sustenta que os transtornos e perdas enfrentados pela população seriam evitados se o poder público municipal retomasse o projeto de obras no sistema de galerias e escoamento elaborado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). O plano foi elaborado há dois anos, mas nunca saiu do papel.

“Houve um volume de chuvas mais alto, mas esse não é o problema. O escoamento da água não é adequado, está mais lento pelo adensamento urbano, pela falta de limpeza das galerias. Outro aspecto importante seria um acordo entre a prefeitura e o Instituto Estadual do Ambiente (Inea) para fazer limpeza, dragagem dos rios, fundamental para não ter assoreamento, o replantio de mata ciliar e topos de morro. Mas o sistema capitalista não prioriza o meio ambiente nem a vida das pessoas”, protesta Josemar.

O desastre do Bolsonarismo

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) era um sujeito que se preocupava pouco com a perda de compatriotas por motivos evitáveis. Na pandemia, um chiste de extremo mau gosto viralizou: “Não sou coveiro, pô!”. Com desastres naturais ele também não se afligia. Tanto que sua gestão reduziu em 99% a verba para as áreas de Defesa Civil e Combate a Prevenção, o que interfere diretamente na capacidade de ação do governo federal em situações como a enfrentada agora. Segundo o Ministério do Planejamento e Orçamento, o governo Bolsonaro previa apenas R$ 671,54 milhões para ações de prevenção e gestão. A PEC da transição fez o valor subir para R$ 1,17 bilhão.

Mas prefeitos alfabetizados na cartilha bolsonarista também não costumam se apoquentar com “miudezas”. Os recursos para infraestrutura que poderiam evitar o drama que hoje estampa jornais são reduzidos para abrir espaço às verdadeiras prioridades. Ainda que alertados pelo Cemaden, as cidades paulistas de Ubatuba e São Sebastião mantiveram seus carnavais. Os turistas atraídos ao litoral também ficaram ilhados no município que, deles, preferia o dinheiro.

Racismo ambiental

A falta de investimento em ações e obras de política urbana tem várias razões, mas o deputado Josemar Carvalho destaca o racismo ambiental como um dos principais. Pessoas negras e pobres são maioria entre os habitantes de áreas de risco socioambiental, exiladas de qualquer programa de mitigação de riscos trazidos pelo clima, enquanto as regiões mais seguras não foram feitas para elas. O racismo está na base até nos processos de formação territorial. 

“Em São Gonçalo há famílias morando em palafitas no nível do mar ou abaixo, junto a mangues, rios e áreas alagadiças, locais onde há um problema crônico de alagamentos e enchentes. Quem mora ali são ribeirinhos, pessoal pobre, pessoas negras, pessoas que já são vítimas há mais de 500 anos”, resume o deputado fluminense.

Falta vontade de resolver. Obras de infraestrutura que organizem o espaço urbano de um morro – como a construção de casas populares, por exemplo – são perenes demais para certos interesses privados. Quando o espaço à beira-mar acabar, a especulação imobiliária fatalmente subirá o morro. E aí, o poder de barganha das grandes fortunas provará (mais uma vez) que construções em áreas íngremes podem, sim, ser seguras. Sujeitar trabalhadores pretos e pobres ao risco de morte, especialmente no verão sudestino, é uma escolha que o poder público renova anualmente.


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Pedro Micussi