É preciso um movimento dos ‘de baixo’ para desneoliberalizar a educação pública 
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É preciso um movimento dos ‘de baixo’ para desneoliberalizar a educação pública 

Exigir a pauta que sempre esteve na ordem do dia dos professores comprometidos com a educação pública voltada para a transformação da sociedade é condição primordial

Paulo Neves 14 fev 2023, 16:00

Assumimos a Secretaria de Assuntos Educacionais da Apeoesp, em junho de 2005, com uma grande polêmica na época: a inclusão da Filosofia e da Sociologia na Matriz Curricular do Ensino Médio.

Naquela oportunidade, havia no sindicato um Coletivo de Professores destas disciplinas formado por ativistas de base, que estava desarticulado. Nossa primeira tarefa na Secretaria foi rearticulá-lo para que a luta pudesse ter capilaridade de base organizada, numa demanda representada por mais de 10 mil professores de Filosofia e Sociologia só no Estado de São Paulo e milhares pelo Brasil afora.

No contexto daquela luta havia uma decisão recente tomada pelo então presidente, o sociólogo Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e o veto ao projeto do deputado paranaense Padre Roque Zimmermann (de saudosa memória) – projeto este, aprovado pelo Congresso Nacional em 2001. O veto teve como justificativa a falta de professores para exercer essas profissões, um argumento totalmente absurdo. O objetivo real foi evitar gastos com o pagamento dos salários dos docentes dessas disciplinas. Investimento em educação de qualidade para os agentes do mercado sempre foi gasto.

Após este primeiro revés, foram criadas várias comissões de professores de Filosofia e Sociologia e alguns Estados, inclusive professores de Psicologia foram incorporados à luta, com objetivo de derrubar o veto. Em São Paulo, centenas de docentes e estudantes universitários participaram dessa luta. Porém, com o fim da legislatura, o veto foi mantido e, com o início do primeiro governo Lula, o debate voltou à tona com força. Naquele momento, nos deparamos com mais uma barreira que parecia intransponível, a Resolução CNE/CEB 03/98 elaborada pela então conselheira do CNE, Guiomar Namo de Mello, que defendia o ensino dos conteúdos – principalmente ética e cidadania-, porém sem a necessidade da inclusão das disciplinas como obrigatórias. A professora da USP fazia coro com os neoliberais. Os filhos dos trabalhadores não deveriam aprender a pensar e analisar criticamente o mundo.

Na primeira reunião do Coletivo, contamos com a presença de representantes do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo e de Diretores da UNE. Aprovamos, então, realizar uma campanha nacional a partir de contatos com sindicatos e associações de professores e as entidades do movimento estudantil de outros Estados, pois sabíamos que não seria uma luta fácil. Elegemos uma coordenação do Coletivo composta, dentre outros membros, por José de Jesus Costa, Celso Torrano, Aldo Santos, Chico Gretter, Diógenes Freitas (in memoriam), Júlio Cesar Goulart, Alvira Reis, Rita Diniz e dezenas de professoras e professores de várias subsedes do Estado de São Paulo.

Um registro fundamental foi não apenas o incentivo, mais a presença determinante do então presidente da Apeoesp, professor Carlos Ramiro de Castro (in memoriam),  da professora Maria Isabel Noronha (Bebel), então Secretária de Finanças do sindicato, e do então secretário-geral, professor Fábio Santos de Moraes. Douglas Izzo, dentre os diretores da entidade, Edgar Fernandes Neto, Moacir Américo, Sílvio de Souza, Geraldinho e Ozani Martiniano; além de várias diretoras e diretores do sindicato compareceram ao encontro, dada à importância desse tema não apenas para nossa entidade, mais para a educação brasileira.

Em seguida, eu e o vice-presidente do Sindicato dos Sociólogos, Lejeune Mihan, fomos até Brasília para uma reunião no gabinete do então ministro da Educação, Fernando Haddad. Naquela oportunidade, fomos informados da necessidade de elaborar um substitutivo ao Parecer  03/98. Foi então que conheci o professor da USP Amauri César Moraes. Coube ao membro da Câmara de Educação Básica do CNE César Calegari apresentar o documento a partir da minuta do Professor Amauri Moraes, aprovada pelo MEC e encaminhada para apreciação dos doze Conselheiros do CNE/CEB, em novembro de 2005.

O período de tramitação da minuta no CNE foi até julho de 2006. Nesse período, houve a indicação de novos conselheiros da CEB, dentre os quais a professora Maria Isabel Azevedo Noronha, cujo trabalho foi essencial tanto para defender a aprovação do parecer como para articular os votos dos demais conselheiros. Nesse período, viajei diversas vezes à Brasília, sofrendo retaliações que resultaram na perda do cargo de professor na Prefeitura de São Paulo.

No dia da apreciação e votação final do Parecer na CEB, mobilizamos professores e estudantes de diversas partes do Brasil. Só de São Paulo foram três ônibus. Lembro que um dos seguranças do CNE afirmou que nunca havia presenciado professores participando das discussões no Conselho.

Ao final das discussões, o Parecer foi aprovado pela CEB por unanimidade com o número de Parecer 38/2005 e foi aprovada a Resolução CNE/CEB 04/2005, alterando a Resolução 3/98 no “artigo 2° § 3º. No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia”.

Mesmo após a aprovação da obrigatoriedade, diversos Estados – dentre os quais, São Paulo – recusavam-se a incluir as disciplinas como obrigatórias, levando ao deslocamento da luta para o Congresso Nacional. Após dois anos de lutas e muita pressão, conseguimos aprovar a Lei 11.684/2008, inciso IV no artigo 35º da LDB inserindo Filosofia e Sociologia como disciplinas obrigatórias.

A vitória do movimento com a conquista legal em 2008 durou pouco tempo. O golpe jurídico parlamentar de 2016 colocou como um dos primeiros objetivos a reversão da enorme conquista. O governo do golpista Michel Temer (MDB) encaminhou para o Congresso Nacional em setembro de 2016 a MP 746,  alterando a LDB, impondo a Reforma do Ensino Médio. Logo em seguida, foi aprovada a Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Assim, todos os avanços conquistados ao longo de décadas foram suprimidos numa canetada, sem discussão com os mais de dois milhões de docentes da Educação Básica e os cerca de 10 milhões de alunos de Ensino Médio. A expressão máxima do autoritarismo na educação pública foi aprovada pelo MEC no dia 15 de dezembro de 2017, com apenas três votos contrários. O referido parecer foi homologado no dia 20 de dezembro daquele ano. 

As consequências são um verdadeiro desastre para a educação pública. Professores, alunos e comunidades escolares sofrem com a desestruturação e a imposição do tecnicismo chamado de “itinerários formativos”, uma invencionice de tecnocratas que na prática têm por objetivo excluir da escola pública a capacidade de criticidade dos professores e dos alunos, além de vincular fundações privadas através de convênios com Estado para desviar dezenas de milhões de reais para o setor, dando início, de forma velada, ao processo de privatização da educação pública.

O problema central neste momento em que Bolsonaro foi derrotado, mas em que o bolsonarismo permanece vivo na sociedade, é que precisamos limpar da realidade a face econômica privatista do fascismo que é o neoliberalismo, inclusive para desconstruir a sua versão mais perversa que é a concepção ideológica incorporada à cultura de milhões de pessoas da própria classe trabalhadora. Nesse sentido, a nomeação de Camilo Santana para Ministério da Educação, e de Izolda Cela como número dois da pasta, evidencia que teremos uma continuidade da política privatista – vinculada às fundações privadas como Fundação Lemann, Itaú Cultural e Instituto Ayrton Senna -, além de dezenas de outras instituições privadas espalhadas pelo território nacional, com o argumento falso de uma evidência da qualidade de ensino na rede pública do Estado do Ceará, de duvidosa comprovação, sem levar em conta que o Ceará não é o Brasil.

Desconstruir e descaracterizar este discurso dominante é tarefa primordial dos educadores brasileiros. Nesse sentido, exigir a pauta que sempre esteve na ordem do dia dos professores lutadores, comprometidos com a educação pública voltada para a transformação da sociedade é condição primordial. A revogação da BNCC e da Reforma do Ensino Médio e o retorno das disciplinas que têm por natureza o desenvolvimento do pensamento crítico, através da cidadania ativa e da formação para a ação organizada na sociedade são passos fundamentais para recolocar a escola pública brasileira a serviço da transformação da sociedade. Lutar, resistir e vencer!


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