Quando as batalhas apenas começam
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Quando as batalhas apenas começam

Luta de classes se acirra no continente europeu com o levante de trabalhadores na França.

Israel Dutra 28 mar 2023, 10:57

(Foto: NPA)

“O único fator progressivo da história hoje não é o espírito de combinação dos deputados e jornalistas: é o ódio legítimo criador dos oprimidos contra os opressores. É preciso voltar para as massas, para suas camadas mais profundas. É preciso fazer um chamado a sua razão e a sua paixão. É preciso rejeitar essa “prudência” mentirosa, que serve de pseudônimo à covardia e que, nas grandes viradas históricas, equivale a traição. A Frente Única deve tornar como lema a fórmula de Danton: “De l’audatoujours de l’audace, et encore de l’audace.”

Leon Trotsky, “Aonde vai a França” (1936)

Enquanto escrevo essas linhas, as ruas de Paris estão conflagradas. A aprovação da reforma da Previdência de Macron só foi possível por utilizar de um mecanismo antidemocrático, o dispositivo 49.3, que permite a sanção sem consulta ao parlamento.

A visita de Charles III, monarca do Reino Unido, à França foi cancelada por razão da greve geral convocada. Se somam novas lutas. Uma crise se abre.

Há algumas semanas, escrevemos o artigo “Inverno da luta de classes na Europa” –  e alguns se indagaram se havia algo de “otimismo da vontade” ao considerar que o “inverno quente” indicava o começo de um novo ciclo de lutas, e que essas lutas tinham um potencial superior ao período anterior – marcado pelas lutas dos indignados.

Os acontecimentos dos últimos dias vieram a ampliar a potência do movimento inicial.

Há que entender outros eventos ainda em desenvolvimento  e de suma importância, como o desenlace da guerra e os abalos no sistema financeiro (SVB, Credit Suisse e uma possível quebra do Paquistão).

A dinâmica está em aberto, mas a entrada em cena da classe, combinada com crise da burguesia liberal, projeta uma nova situação – por ora, na França, mas com potencial para se alastrar pela Europa.

Cabe ao ativismo no Brasil, em situação bastante distinta e singular, buscar as lições do debate conjuntural e estratégico que está sendo disputado “a quente”.

Um ponto de virada

Há um novo nível de atividades da luta de classes no continente europeu. A França está na ponta de lança, mas outros países encontram-se em franco processo de intensificar a ação das lutas. O ponto alto foi nas duas grandes jornadas de greve geral (em 7 e 23 de março), quando 3,5 milhões de pessoas saíram às ruas, generalizando a luta com a entrada de mais setores.

A greve geral de um dia se combinou com algumas importantes greves renováveis, entrada em cena da juventude, e mesmo conflitos de uma vanguarda radicalizada. É o caso da luta ambiental pelo direito à água, que contou com 30 mil ativistas num duro conflito com as forças de repressão, conforme ilustrou o dirigente do NPA, Leon Cremeiux:

“A partir de 16 de março e a aplicação do art. 49.3 [para impor a reforma roubando a decisão do Parlamento], Macron e seu governo provocaram uma nova onda de mobilização popular, em todas as suas formas: greves renováveis, bloqueios, manifestações e até incorporação ao movimento estudantil. Mas, sobretudo, à crise social junta-se agora uma verdadeira crise política, uma crise do regime, da qual, neste momento, Macron não tem a certeza de poder sair, porque é a sua legitimidade, a sua pretensão de continuar à frente do nos próximos quatro anos o que está em jogo, a legalidade da sua legitimidade institucional formal é cada vez mais contraditória com uma legitimidade popular que lhe falta totalmente.”

O Reino Unido também enfrenta um novo momento da luta de classes. As lutas salariais estão dando um salto, tanto na quantidade quanto na qualidade. No dia 15 de março, quando o primeiro-ministro apresentou e votou seu orçamento, os sindicatos convocaram um dia de paralisação que contou, novamente, com 500 mil grevistas. Categorias como enfermeiras, motoristas, médicos, metroviários obtiveram vitórias importantes em acordos salariais superiores, que vão dando confiança e recolocando os métodos de luta como eficazes para conquistas parciais e, quem sabe, lutas mais gerais.

No mês de março, nos dias 8 e 16, tivemos duas greves gerais na Grécia, num violento protesto contra o verdadeiro crime que foi o choque de dois trens, em Tempe, graças ao sucateamento da empresa privatizada.

As greves se espalharam em Portugal, após a histórica mobilização de professores, chegando a ferroviários e outras categorias. Apesar dos pactos sindicais, a Espanha segue vendo os servidores da saúde mobilizados: depois da “maré branca” em Madrid, o fenômeno se repetiu na Andaluzia, Galícia e Astúrias, penetrando em diversas regiões do estado espanhol.

Em 10 de março, uma greve geral do serviço público paralisou a Bélgica. Na Suíça, também os servidores públicos fazem greves e a campanha por um novo salário mínimo entra em outro patamar, com maior apoio de massas.

A Alemanha que, de longe, carrega o status de país com maior estabilidade da Zona do Euro, teve uma greve que paralisou todo o setor dos transportes, incluindo portos, ferrovias e aeroportos no dia 27 de março. A dimensão do movimento foi tamanha que a imprensa batizou de “mega greve”.

Crise orgânica e mal-estar social

O novo elemento é que as reivindicações encontram eco num repúdio ao mal-estar generalizado. Com a imagem do “descongelamento” das relações sociais, após mais de dois anos de pandemia, podemos ilustrar um dos fatores. O outro é, por óbvio, efeito do aumento do custo de vida.

Países outrora tidos como o “paraíso da estabilidade”, onde a social-democracia fazia seus cartões postais, como os países nórdicos, hoje atravessam dias difíceis. Como mostra a reportagem da Folha de São Paulo de 26/03, a Suécia “encara a inflação e o aumento absoluto da pobreza”, com a inflação de alimentos chegando a 21% em um ano, pior marca desde os anos 50, insuflando a desigualdade crescente.

Tais elementos também aparecem nas mobilizações que aconteceram no começo do ano na Dinamarca. Os elementos de crise social também se alastram para outras dimensões da vida política e social, como o mundo da arte, do esporte e do entretenimento.

Um dos elementos mais importantes foi a crise envolvendo o ex-jogador e apresentador de BBC, Gary Lineker. Com um tweet questionando a política migratória do governo de Rish Sunak, Lineker gerou uma cadeia de solidariedade entre futebolistas, espectadores, intelectuais e artistas que fizeram a BBC entrar em crise e atingiram a “consciência média” do povo inglês.

A luta se expressou na França também, desde os atos na França mais profunda, com artistas tomando contato, até no jogo entre França e Holanda, no qual a torcida cantou contra a reforma e Macron, aos 49 minutos, num belo e divertido protesto.

Ou o caso dos trens na Grécia: como um aspecto parcial, mesmo que profundo, toca toda a situação geral do país. A revolta popular teve componentes programáticos mais nítidos, com a crítica à privatização galvanizando a tragédia que vitimou 57 pessoas. O movimento operário, juvenil e democrático retomou o protagonismo que teve na luta contra a Troika (2010-2014), com a diferença que as lições programáticas estão mais vivas agora.

Estamos diante de um aprendizado de massas no âmbito internacional. Em meio à crise multidimensional, com fortes dúvidas sobre uma nova crise financeira no horizonte, são dezenas de milhões de pessoas que assistem via TV e redes sociais os embates da classe trabalhadora europeia.

A polarização política e ideológica contra a extrema direita existe e implica em uma necessidade de politização dos setores da classe, ora premida por direções sindicais moderadas ou rotineiras, ora pela fragmentação do trabalho e falta de representação.

Uma luta com potencial histórico

Se abriu uma “porta estreita” da luta de massas na França. A batalha contra a reforma da Previdência se transformou numa batalha contra o governo Macron, seu aparato repressivo, e começa a tocar até o regime da V República.

Sem dúvidas, estamos diante de um movimento mais extenso e profundo que foram as jornadas de 2010 e 1995; estamos ainda distantes de um levante generalizado como foram os de 1936 e 1968. Contudo, a memória da luta de classes na França é múltipla e tem tradições de radicalização.

Enquanto se desenvolve a greve geral do dia 28, muitas interrogações estão no ar. A  questão do potencial histórico e de até onde pode ir o movimento vai depender de um passo à frente nas greves renováveis e na generalização rumo a uma greve geral política. Tal evento poderia alterar a relação de forças e impor uma realidade, colocando na ordem do dia a queda da reforma e até do governo Macron.

Entrarão com mais força os estudantes? Os coletes amarelos vão bloquear regiões centrais? Vai se conseguir superar a moderação das principais direções sindicais, mesmo com um nível baixo de auto-organização?

Essas são interrogações abertas. O fato é que as batalhas estão apenas começando. Temos que acompanhar os próximos passos e ver como isso se conecta com as lutas do sul global, a começar pela América Latina, onde acabamos de ter um duro enfrentamento popular no Peru. E articular essas lutas com questões estratégicas para a esquerda radical no mundo. Como construir alianças com as lutas democráticas dos imigrantes? Como enfrentar a extrema direita sem perder a radicalidade do programa? Como costurar a pauta de classe com a pauta ambiental, como os ativistas que enfrentaram a polícia de Macron na luta conta as megabacias, ou a aliança entre o movimento grevista de transporte e o coletivo ambiental “Sextas para o futuro”?

Essas questões e outras devem ser discutidas no marco da solidariedade à luta francesa e da necessidade da reconstrução da subjetividade de classe, com a classe diversa e heterogênea como a do século XXI. Perguntas como essa foram feitas por Olivier Sabado, militante histórico do NPA, em entrevista há alguns meses, quando da crise do partido.

A resposta está sendo construída e costurada no terreno direto da luta de classes, das alternativas políticas que estão se gestando. Do Brasil, nos somamos aos companheiros do NPA e ao conjunto das organizações combativas da esquerda francesa que estão lutando, como costumamos falar, “ao pé do canhão” nessa grande batalha.


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