1985: o exemplo argentino
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1985: o exemplo argentino

O exemplo dos julgamentos de responsáveis pela ditadura argentina deixam um exemplo sobre a necessidade de justiça no Brasil.

Thais Coutinho 2 abr 2023, 19:03

Foto: Flickr / Reprodução

Via Boletim do Tempo Presente

O ganhador do Globo de Ouro de melhor filme estrangeiro, Argentina, 1985 (do diretor Santiago Mitre) reconstrói o julgamento histórico sobre os crimes da ditadura argentina que colocou no banco dos réus seus chefes militares. Ao nos apresentar parte importante da história argentina, o filme mais do que conhecimentos sobre o passado, traz importantes lições para o presente.

O filme se passa durante os primeiros anos do governo de Raúl Alfonsín (primeiro presidente pós ditadura, que governou de dezembro de 1983 até julho de 1989). Ao trazer uma Argentina que está reconstruindo a democracia, o filme retrata um momento no qual ainda eram recentes os traumas vividos por esta sociedade durante o Processo (Processo de Reorganização Nacional), isto é, o período da ditadura cívico-militar da Argentina.

O protagonista do filme é o promotor Júlio César Strassera (1933-2015). Strassera, interpretado pelo ator Ricardo Darín, foi o responsável por acusar líderes da Junta Militar, inclusive ex-presidentes da ditadura, com a ajuda de Luís Moreno Ocampo (interpretado por Peter Lanzani) e uma equipe de jovens que encararam o desafio de provar que a repressão, tortura, assassinatos e outras violências ocorridas na ditadura não tratavam de simples excessos isolados, mas um método, algo sistêmico e criminoso desse regime.

Através do protagonista podemos perceber as inquietações de uma época. A começar pelo próprio temor que envolve o julgamento. Um temor pela segurança pessoal e de sua família, algo natural para quem acabara de sair de uma ditadura e enfrentaria suas mais altas figuras. A dificuldade em montar sua equipe ou em garantir a segurança das testemunhas mostradas no filme também chamam atenção para a difícil tarefa de reconstrução da democracia, com parte do aparato estatal ainda nas mãos de pessoas que fizeram parte ou colaboraram com a ditadura. Além disso, a incerteza de Strassera, no início do filme, de que algo realmente pudesse ser feito reflete bem o espírito de uma sociedade que vivera anos sob um Estado repressor que buscou controlar os mais diversos aspectos das atividades sociais na argentina.

O filme evidencia a dificuldade da construção de uma justiça transicional e mostra que os tribunais argentinos tiveram um relevante papel para dar conta de desafios essenciais para a edificação da democracia. Strassera assume, portanto, uma grande responsabilidade, pois os crimes da ditadura era um tema delicado, que muitos atores sociais preferiam silenciar. Resgatar esses crimes, apurá-los, responsabilizar os culpados seriam tarefas cruciais para esta justiça transicional. Mas para além disso, o julgamento de 85 seria um marco para a construção de uma memória sobre a ditadura argentina. O filme evidencia o papel dos tribunais como esse palco de disputa e sua relevância para formação desta memória coletiva. E ainda mais, ao trazer esse tema hoje, o filme tem um papel fundamental para o presente (afinal de contas uma produção cultural, por mais que aborde o passado, também diz muito de sua própria época): ajuda a resgatar e colabora então para a solidificação de uma memória sobre as ditaduras do cone sul que não deixe cair no esquecimento a violação dos direitos humanos promovidas pelo próprio Estado.

Ao escolher como tema o julgamento, o filme coloca no centro a questão dos Direitos Humanos, debate que foi fundamental durante o período de transição para a democracia. Traz toda a complexidade da discussão a respeito dos desaparecidos políticos que de longe teve um tratamento uniforme na Argentina.

Durante muito tempo o discurso da luta contra subversão (e de uma guerra) foi bem aceito. No período de transição, sob os últimos governos da ditadura, ainda era possível ver o reconhecimento dos discursos de combate à subversão fora dos círculos militares, e mesmo entre setores oposicionistas. Até a Multipartidária, que agrupava diversos partidos políticos objetivando construir a transição para democracia, reconheceu durante um período o discurso de combate a subversão (mesmo crendo na necessidade de dar respostas aos familiares) e havia divergência entre os partidos de como tratar esta questão. Mas, principalmente, após a derrota da Argentina nas Malvinas e crescente crise do Processo, ascendeu o discurso de que se tratava de uma repressão ilegal. E, já no governo de Alfonsín, no qual se passa o filme, o discurso que os militares tentam sustentar já não tinha tanto espaço na sociedade. Mas ainda assim, episódios demonstram as contradições do período, como o informe de 1984 da CONADEP (Comissión Nacional sobre la Desaparicion de Personas), que apresentava a violência do Estado como resposta à violência da esquerda. Outros exemplos vemos em cenas do filme: como as falas dos réus e do advogado de defesa que ainda se apegavam a narrativa que haviam construído (e que durante um tempo ajudou a ditadura se manter no poder). Porém, o argumento que existia uma guerra ou a tentativa de culpabilizar as vítimas (que aparece no filme através do discurso do ministro do interior de Alfonsín) cada vez mais trazia indignação.

Cabe retroceder um pouco no tempo para destacar que já durante o governo de Bignone (o último da ditadura), os militares não tinham mais força para impor algum acordo que atrelasse as eleições ao tema dos desaparecidos. Este sempre fora um ponto delicado para a ditadura, mas com ela enfraquecida, não poderiam criar condicionantes. Neste período final da ditadura, foi quando a Junta demonstrou sua maior fragilidade e crise durante todo o regime, mas um ponto de unidade era exatamente evitar a revisão da luta contra a subversão. Entretanto sem grande sucesso.

Voltando ao filme, na cena do tribunal em que aparecem os chefes militares da ditadura, percebemos uma fala recorrente entre os réus “não reconhecemos a legitimidade do presente tribunal.” Esta remete ao debate sobre a quem caberia o julgamento. E na opinião dos militares era nítido que por se tratar de uma guerra, caberia a um tribunal militar. A frase é uma reafirmação do discurso construído ao longo da ditadura: da existência de um inimigo. Um inimigo (e uma guerra) que justificasse fechamento do regime, repressão, etc. E que desresponsabilizasse a ditadura pelos seus crimes. Portanto, o tribunal civil, mesmo antes da condenação, já fora uma vitória.

Sem dúvida, o momento mais impactante do filme ocorre durante os relatos das vítimas no julgamento. Aqui fica evidente a crueldade da ditadura argentina que assassinou mais de 30 mil pessoas. Através das falas das vítimas podemos perceber o uso geral e indiscriminado da tortura durante a ditadura.

Se mesmo antes da presidência de Alfonsín, no início da década de 80, as evidências dos crimes da ditadura se fizeram cada vez mais presentes e levavam, por parte da sociedade, à condenação moral dessa repressão ilegal, o julgamento foi essencial para se cristalizar a posição desses atos da ditadura como injustificáveis.

Se outrora parte da sociedade desprezava essas evidências, se em outro momento regeu a incredulidade diante dos fatos, agora seria o momento de reparação e mesmo uma autocrítica da sociedade argentina. E uma personagem expressa bem essa mudança de visão: a mãe do promotor adjunto Ocampo. Ela, pertencente a uma família de militares, que frequentava a mesma Igreja de Videla, representa uma classe média que serviu de base e mesmo chegou a justificar os argumentos da ditadura. Sua mudança de posição em acreditar que a repressão ilegal existiu de fato, com toda a crueldade, tortura, assassinatos por parte do Estado, não é apenas algo individual. E, por isso, o convencimento da personagem era tão importante. Era simbólico. A fala da personagem para seu filho mostra um sentimento coletivo daqueles que agora querem a condenação dos culpados. A condenação é um momento de reparação também para aqueles que se silenciaram. O julgamento representa um encerramento nesse ciclo de debates e posições que durante anos transitou pela sociedade argentina e deu seu veredicto. A condenação de seus líderes (mesmo que não todos) é condenar a própria ditadura.

Por fim, gostaria de destacar que o filme ao nos levar para a Argentina de 1985, traz importantes ensinamentos. Primeiramente sobre o papel da sociedade, com destaque para grupos como Madres de Plaza de Mayo (também presente no filme), que não deixaram os crimes do Estado passar em vão. A luta e busca por reparação (que passava pela responsabilização e punição dos culpados) é um importante legado deste e outros movimentos. Mas esses movimentos nos mostram também a importância de lutar contra o apagamento da história.

Cabe ressaltar ainda, que a democracia está em construção permanente, na qual a luta constante pela manutenção dos direitos é necessária sob a pena de sofremos retrocessos. E isso aconteceu na Argentina. O filme termina com o fim do julgamento, mas a história seguiu e com idas e vindas. Houve retrocessos como a “lei ponto final” de 1986 e indultos presidenciais à chefes militares. Mas movimentos como Madres de Plaza mantinham viva a memória daqueles tempos sombrios e mostravam que a luta continuava sendo o caminho. Durante o governo de Néstor Kirchner foi anulada a “lei ponto final” e novamente a reparação se tornou pauta. O período democrático da Argentina tem mostrado que a memória continua sendo palco de disputa e que a luta continua sendo o caminho para manutenção das conquistas. Neste sentido, o filme tem um papel fundamental também para os dias atuais, pois ajuda a resgatar essa memória.

Em particular, nós, brasileiros, podemos muito aprender com nossos hermanos. A maneira como nossos vizinhos caminharam e reconstruíram a democracia após sete anos de ditadura traz lições relevantes, em especial, no que tange a importância da responsabilização e punição dos líderes pelos seus crimes. E, em um Brasil atual, onde recentemente vimos tentativas de ataques à democracia, olhar a história de um país vizinho que passou por um processo semelhante de ditadura mas com desfecho distinto (no que se refere a cúpula do poder) pode trazer importantes reflexões sobre a necessidade de revisitarmos nosso passado e de fortalecermos a base da nossa democracia. Não podemos deixar que essa página infeliz da nossa história caia no esquecimento, nem que o caráter seletivo da memória minimize o que foi a ditadura brasileira ao ponto de ser reivindicada sua volta. Para estes setores que bradam contra a democracia e reivindicam a volta da ditadura, o filme Argentina, 1985, deixa uma última lição, expressa na famosa frase de Strassera durante o julgamento “Nunca mais!”

Thais Coutinho é doutoranda em História pelo Programa de Pós-Graduação em História Comparada (UFRJ). Mestre em Ciências Sociais pelo CPDA (UFRRJ) e graduada em História pela UFF.


Referência Bibliográfica

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PROJETO MEMÓRIA E RESISTÊNCIA NA AMÉRICA LATINA. Histórico da Ditadura Civil- Militar Argentina. Disponível em: paineira.usp.br/memresist/?page_id=239


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