Os direitos socioambientais não são negociáveis e nem estão sujeitos ao balcão de negócios do Governo com o Congresso
Os diversos ataques contra o meio ambiente aprovados recentemente no Congresso exigem uma reação imediata
Foto: Marizilda Cruppe / Amazônia Real
Nesta quarta-feira, 24, o Congresso Nacional resolveu passar a boiada e o governo Lula, infelizmente, decidiu abrir a porteira. Com o voto da bancada liberado pelo governo federal, os deputados aprovaram na Câmara o regime de urgência do Projeto de Lei 490, que estabelece o Marco Temporal de terras indígenas. Horas antes, com apoio efusivo da bancada do PT no Senado e do ministro Alexandre Padilha, uma Comissão Mista do Congresso já havia aprovado o relatório da MP 1154/23, que esvazia os Ministérios do Meio Ambiente (MMA) e dos Povos Indígenas (MPI). O ataque à agenda socioambiental ainda contou com a aprovação pela Câmara da MP 1150/22, que flexibiliza e facilita o desmatamento na Mata Atlântica.
Com as definições do Congresso, o PL 490 deve ser votado na próxima semana pelos deputados. O projeto estabelece a Constituição Federal como o Marco Temporal para demarcação de terras indígenas no Brasil. Ou seja, só considera como pertencente aos indígenas as áreas tradicionalmente ocupadas e com atividades produtivas ou necessárias à preservação em 5 de outubro de 1988, ignorando toda a história, a memória, os saberes, a cultura e a ancestralidade. Um retrocesso que nega o direito à terra aos seus legítimos proprietários e contribui para o apagamento e extermínio dos povos indígenas e da própria história do país.
A ofensiva dos ruralistas contra os indígenas e os direitos socioambientais contou ainda nesta quarta, 24, com a aprovação, por 15 votos a 3, do relatório do deputado Isnaldo Bulhões Jr. (MDB-AL), alterando a MP 1154, que trata da estrutura administrativa de Ministérios. O texto aprovado pela Comissão Mista do Congresso retira a principal atribuição do Ministério dos Povos Indígenas, que é a demarcação de terras, e repassa ao Ministério da Justiça. Com isso, restabelece uma espécie de tutela sobre os povos indígenas, retirando-lhes a autonomia necessária para as definições acerca do território. O relatório também esfacela o Ministério do Meio Ambiente, com a transferência do Cadastro Ambiental Rural e da Agência Nacional de Águas para os Ministérios da Gestão e Inovação e do Desenvolvimento Regional, respectivamente.
Importante destacar que o MPI é uma reivindicação histórica dos povos indígenas, fruto do avanço de sua auto-organização e seu esvaziamento representa uma política conservadora de contenção desse movimento. Em um momento em que a Amazônia e a pauta socioambiental ganham centralidade e que o mundo debate justiça climática, o Congresso Nacional, com o apoio do governo, escolhe ampliar a voracidade e lucratividade do capital sobre a natureza e territórios.
Trata-se, portanto, do esvaziamento e desmonte de dois órgãos fundamentais na área socioambiental, e que são essenciais para evitar que o mercado capitalista avance sobre novas fronteiras, destruindo ecossistemas e vidas, em um período histórico e decisivo para o futuro da humanidade, marcado por pandemia, mudanças climáticas, desmatamento, violação de direitos e extermínios dos povos dos rios e das florestas.
Mais ainda: é um ataque misógino e racista a duas mulheres, Marina Silva e Sônia Guajajara, uma negra e outra indígena, cujas trajetórias e histórias de vida se entrelaçam com a luta em defesa da Amazônia, do bem-viver, dos rios, das florestas e do direito à terra e território. E que, mundialmente, representam o efetivo compromisso do Brasil com o combate às mudanças climáticas e com a preservação da sociobiodiversidade, essencial para que a humanidade não caminhe para um futuro de autodestruição.
Apesar do grande impacto e da repercussão internacional que as mudanças nos dois Ministérios podem ter, não houve resistência e nem empenho necessário por parte do governo para impedir tal esvaziamento. Pelo contrário. A bancada do PT no Senado e o ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, comemoraram a aprovação da MP.
As decisões do Congresso Nacional não chegam a surpreender, considerando que grande parte dos parlamentares tem relação com o agronegócio, com o bolsonarismo e com elites urbanas e rurais, que perseguem lideranças e criminalizam movimentos sociais legítimos, como estamos vendo agora na CPI do MST. Mas o que surpreende é a falta de empenho, a conivência e, quiçá, a concordância do governo Lula com as medidas aprovadas, como na votação do PL do Marco Temporal, em que a liberação da bancada foi fundamental para que a medida seguisse adiante.
A aprovação dessas medidas ocorre um dia depois da votação pela Câmara do Arcabouço Fiscal, em que o governo aprovou um novo teto de gastos, que limita investimentos, precariza as condições de trabalho de servidores públicos e contribui para o desmonte de serviços essenciais para a sociobiodiversidade, considerando que políticas públicas de saúde, educação e assistência social são basilares para a garantia de justiça ambiental. Além do que, tal medida de ajuste reforça as políticas liberais do governo, que na Amazônia se materializam também por meio da financeirização da natureza e privatização de recursos naturais. Não é a toa a pressão da Casa Civil sobre o Ibama, por conta da decisão técnica de não permitir a prospecção de petróleo na foz do Rio Amazonas.
Assim, as decisões tomadas pelo Congresso nesta quarta-feira, 25, com a anuência do governo, expressam que o compromisso de Lula com o combate às mudanças climáticas, com a redução do índice de desmatamento e com a proteção de povos indígenas e comunidades tradicionais não tem concretude. Já ficou provado que no processo de negociação com o Centrão ou com a base fisiológica da direita, o governo prefere rifar a pauta socioambiental, se enfrentando com a bancada do Cocar e dos direitos socioambientais, para não se contrapor aos ruralistas e seus aliados.
A pauta socioambiental não está em negociação, tampouco está sujeita ao balcão de negociatas do Congresso Nacional. É necessário firmeza para afirmá-la e defendê-la, bem como respeito aos indígenas e demais povos da Amazônia, cujo compromisso foi firmado por Lula ainda na campanha eleitoral, de que iria protegê-los e que combateria as práticas predatórias que destroem nossa sociobiodiversidade.
Nesse sentido, é urgente fortalecer as lutas contra estes ataques. É preciso somar força às lutas históricas dos povos indígenas, quilombolas, demais comunidades tradicionais e o conjunto dos amazônidas para intensificar a pressão sobre o governo Lula e o Congresso Nacional pela rejeição do PL do Marco Temporal, bem como contra o desmonte das políticas socioambientais e pelo restabelecimento das atribuições dos Ministérios do Meio Ambiente e dos Povos Indígenas.