Crise econômica e política: uma breve caracterização sobre o período pré-eleitoral argentino

Crise econômica e política: uma breve caracterização sobre o período pré-eleitoral argentino

A crise econômica no país vizinho coloca em xeque a permanência do oficialismo no poder. No terreno político, há disputas internas e externas entre a maioria dos candidatos.

Vitor Cesario 3 jun 2023, 10:09

A Argentina e, em especial, a crise econômica no país ‘hermano’ é um tema frequentemente abordado pela grande mídia brasileira. A inflação galopante e uma crise heterogênea no setor de empregos se refletem na política de maneira desanimadora, e as eleições para o executivo na Argentina esse ano são fundamentais tanto para o contexto sócio-econômico e político da classe operária daquele país quanto para pensar os rumos políticos do continente.

De maneira geral, a crise econômica argentina afeta a todos os setores da classe trabalhadora. Se por um lado as classes médias não conseguem manter o acesso ao consumo da mesma maneira que antes e as classes mais baixas sofrem diretamente com a fome, por outro empresas gigantes aumentaram suas margens de lucro durante o governo do presidente Alberto Fernandez. Os problemas econômicos se centram na desvalorização do peso, que está quase 500 vezes menor que o dólar, e na inflação galopante que em abril atingiu a marca de 108% de variação em relação ao ano passado, segundo o Instituto Nacional de Estadística y Censos de la República Argentina. Esses números se fazem sentir nas ruas de todo país, onde a população tem dificuldade de saber o preço real dos produtos básicos que variam muito de um lugar a outro e sobem constantemente. Além disso, é frequente ouvir pelas esquinas porteñas que com os salários atuais é “impossível chegar ao fim do mês”. O processo de desvalorização do peso gera um efeito dominó, afeta desde bens de consumos básicos como os alimentos até o mercado imobiliário e força uma dolarização da economia, prejudicando, ainda mais, os mais pobres. Outro medidor econômico que chama a atenção é o índice de desemprego relativamente baixo (6,3%, segundo o INDEC) que o país apresenta. A ausência de trabalho não é o foco da crise, há empregos, mas esse número está mascarado pela grande massa de trabalhadores informais e não leva em consideração a baixa remuneração e a exaustiva jornada de trabalho. Ainda nesse cenário caótico, o atual presidente, do Partido Justicialista, Alberto Fernandez legitimou a dívida contraída de maneira ilegal pelo ex presidente Maurício Macri ao firmar um acordo com o FMI, no qual o país deve cumprir uma série de medidas de austeridade/ajuste fiscal.

O movimento de massas atualmente tem pouca vazão. Alguns poucos setores se mobilizaram nos últimos tempos, com destaque aos médicos residentes que protagonizaram a vitoriosa marea blanca e, principalmente, ao movimento piquetero que foi linha de frente no ano passado e neste ano na luta contra o ajuste e em defesa dos setores mais vulneráveis. O movimento piquetero teve como expoente a marcha federal piquetera, que ocorreu no primeiro semestre de 2022 pela primeira vez e em meados de maio deste ano voltou às ruas. 

A crise econômica é sem dúvidas a capa diária de todos os jornais argentinos, debatida nos ‘colectivos’, ‘subte’, bares e ‘bodegones’. E, durante essas conversas, seja nos estúdios do canal de televisão C5N ou na ‘plaza constitución’ é impossível não ouvir prognósticos sobre a eleição presidencial deste ano. A situação política é bastante complexa, envolve muitos atores e os resultados eleitorais são cruciais para a classe trabalhadora argentina e podem influenciar toda América Latina.

Atualmente governo, A Frente de Todos (FdT) está fragilizada. Alberto Fernandez é motivo de chacota tanto pela situação quanto pela oposição, além de não ter base social ou política, fez um governo ruim e desde que assinou o acordo com o FMI, emergiu-se uma fração pública dos setores kirchneristas contra ele. Fernandez não conseguiu avançar em praticamente nenhum projeto que propôs, recuou por pressão da grande mídia na tentativa de expropriação da Vicentin (gigante argentina do agro), teve um governo marcado pela crescente crise econômica e uma má gestão da pandemia. A crise política no FdT se aprofunda com a perseguição judicial que sofre a vice-presidenta Cristina Kirchner, que prometeu, mais de uma vez, que não será candidata.  Cristina e o kirchnerismo se rebelaram de maneira republicana contra o acordo com o FMI, denunciaram desde as redes sociais e através da câmara de deputados, mas não mobilizaram suas bases para lutar nas ruas e praças contra a legitimação de uma dívida ilegal. Dentro do peronismo, o espectro político é amplo, encontra-se desde setores de direita como Santiago Cúneo que saúda governos protofascistas como o do salvadoreño Bukele até setores populistas mais ligados à nova centro-esquerda latinoamericana como Juan Grabois. Nem todos dentro da Frente de Todos, que também pode ser tão ampla quanto o peronismo. Quem será o candidato da FdT? Até o presente momento (31/05) ninguém foi anunciado, mas é certo de que há um esforço coletivo para que fechar uma fórmula e que a frente chegue nas PASO (primárias eleitorais argentinas), que ocorrerão em agosto, unificada. Atualmente, nota-se uma intensa divulgação do atual ministro de interior Wado de Pedro nas redes sociais e fala-se de uma possível chapa formada por ele e pelo ministro de economia Sérgio Massa, figurão liberal que agrada o mercado e que também se dispôs a disputar uma vaga no senado pela província de Buenos Aires.

Dentro da direita tradicional, o Juntos por el Cambio (JxC) composto entre outros pelo PRO e UCR devem disputar as PASO com dois nomes brigando diretamente pelo posto de candidato da frente. Por um lado, Horacio Larreta, atual governador da cidade de Buenos Aires, representa uma direita “moderada” (entre muitas aspas), liberal em muitas pautas sociais e um protótipo de defensor dos direitos humanos mas com uma agenda econômica liberal em mãos, pronto para aplicar todo e qualquer ajuste e massacrar ainda mais a classe trabalhadora. Recentemente, Larreta aplicou mudanças significativas na distribuição dos planos de assistência social na capital e prometeu que se eleito também vai inverter a lógica de assistência a nível nacional. Ele é inimigo dos movimentos sociais e vai usar os planos de assistência social para tentar desmobilizar a classe, em especial, o movimento piquetero. Por outro lado, Patricia Bullrich, figura já conhecida na política argentina e com sobrenome oligarca, que dá nome a um dos shoppings de Recoleta  (bairro de elite em Buenos Aires), Bullrich faz parte da direita tradicional e conservadora, recentemente celebrou o assassinato de um rapaz acusado de roubo pelo twitter e não medirá esforços para colocar o aparato policial nas ruas para reprimir manifestantes, já que entre suas promessas de campanha está “acabar” com os piquetes. É um nome com forte ligação com o agronegócio e ao longo da pré-campanha já demonstrou algumas vezes que vai batalhar pelo apoio desse setor.

Se as eleições de 2019 foram polarizadas por essas duas frentes anteriormente descritas, em 2023 há uma infeliz novidade no cenário político argentino: Javier Milei e o partido libertário. Expoente da “nova” extrema direita mundial, Milei congrega o que há de mais conservador na área social, é a expressão de um movimento reacionário majoritariamente masculino e, infelizmente, presente em muitos setores da classe. Ele se postula como outsider, ataca e criminaliza a política e fala em “dinamitar” o sistema. Em termos econômicos, o pré-candidato do partido libertário defende a dolarização do peso, avanço na agenda de ajustes e outras medidas ultraliberais. A transgeracional expressão brasileira “não tem um pingo de vergonha na cara” se encaixa perfeitamente com essa figura que, publicamente, já defendeu a regulamentação da venda de órgãos e disse que se eleito governaria para o mercado.

Já no outro extremo do espectro político, a esquerda revolucionária está fragmentada. Alguns partidos como o PSTU e o Nuevo MAS não têm capilaridade eleitoral. Em termos de disputa, a Frente de Izquierda de los Trabajadores Unidad (FITu) é a maior e melhor ferramenta disponível. Atualmente, há uma disputa dentro da frente: PTS vs MST e PO. O Movimiento Socialista de los Trabajadores (MST) e o Partido Obrero (PO) apresentaram a fórmula Vilma Ripoll e Gabriel Solano e propões que a frente não dispute as PASO, mas sim que decida internamente através de uma assembleia. Ambos partidos atuaram com muito entusiasmo no movimento piquetero ao longo dos últimos anos e estão presentes de forma massiva nos bairros e villas através das frentes MST Teresa Vive e Polo Obrero. Entretanto, a gigantesca base que movem não reflete necessariamente em votos. Já o Partido de los Trabajadores Socialistas (PTS) propõe uma fórmula sangue puro com Myriam Bregman e Nicolas del Caño, dois deputados nacionais. O PTS propõe levar a decisão de candidatura para as PASO. Há uma encruzilhada dentro da frente de esquerda. Por um lado PTS apresentando nomes com mais capilaridade eleitoral e por outro lado, MST e PO mobilizam mais pessoas, mas isso não necessariamente se converte a votos. Alguns setores da esquerda autônoma ou autodenominados “nova esquerda” como o Marabunta defendem o FITu como ferramenta eleitoral e devem se engajar na campanha, mas pontuam, acertadamente, que a frente de esquerda precisa superar suas pequenas divergências e focar em um programa em comum.

Muitas províncias desdobraram as eleições locais da eleição federal, ou seja, estão votando antes para os cargos executivos e legislativos regionais. Até agora, o peronismo manteve-se soberano, ganhando em fortalezas eleitorais históricas. Isso pode ser um excelente sinal para a frente de todos em termos nacionais ou pode simplesmente ser o atestado de que a conta da crise não foi repassada aos governadores, mas que sim há um descontentamento em termos gerais com o governo federal. Cristina Kirchner aposta na segunda opção e falou disso ao vivo no programa ‘duro de domar’ há algumas semanas. Nas províncias de San Juan e Tucuman, onde, ao que indicavam as pesquisas, o peronismo também triunfaria, as eleições foram suspensas pela suprema corte argentina 5 dias antes da votação. Há uma perseguição judicial ao oficialismo e isso deve ser combatido por todos os setores democráticos argentinos. A esquerda (FITu) foi muito bem votada na província de Jujuy, obteve um crescimento expressivo no número de parlamentares jujeños e ficou em terceiro lugar na disputa pelo cargo executivo da província, crescendo 360% em relação à última eleição em 2019. Providencialmente, os grandes derrotados politicamente foram os libertários de extrema direita, o que abre uma brecha para um respiro do progressismo e nos faz questionar se Milei pode se projetar com força para além da capital e província de Buenos Aires.

Por fim, as eleições na Argentina seguem indefinidas. Há uma preocupação grande de como os resultados podem influenciar o continente e travar alguns projetos de integração, por exemplo. O fato é que nessa eleição, a disputa entre os dois setores tradiconais da casta política argentina ganha um novo protagonista de agenda fascista e ultraliberal. A falência do modelo de conciliação de classes deve ser lido como uma fresta, onde nos podemos meter para fazer política. O papel da esquerda revolucionária argentina deve ser de apresentar um programa sólido para superar a crise que massacra diariamente as trabalhadoras e trabalhadores, denunciar o ajuste fiscal e combater veementemente o reacionarismo e o fascismo. É necessário mostrar ao povo que a alternativa ao falido sistema não passa pela extrema direita, nós, da esquerda revolucionária, somos quem tem um projeto real de emancipação da classe.


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