Junho de 2013 e a rebelião transnacional contra o capitalismo global – Entrevista com Thiago Aguiar
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Junho de 2013 e a rebelião transnacional contra o capitalismo global – Entrevista com Thiago Aguiar

Um diálogo sobre os eventos de Junho de 2013 e suas consequências políticas

Foto: Wikimedia Commons

Israel Dutra1 e Nathalia Bittencourt2

Publicamos, a seguir, uma entrevista com Thiago Aguiar, doutor em Sociologia (USP), pesquisador do IFCH/Unicamp, do Cenedic-USP e membro do GT CLACSO “Fronteiras, regionalização e globalização” sobre sua participação nas Jornadas de Junho de 2013 e suas consequências ao longo dos últimos dez anos, a partir de sua trajetória posterior como sociólogo e pesquisador.

Nathalia Bittencourt – Eu não gostaria de começar imediatamente por Junho de 2013 porque ali houve o auge de um processo de mobilizações que começou muito antes. Junho foi resultado de diversas situações que influenciaram aquelas manifestações. Em sua visão, quando Junho começou? Qual a relação com a situação mundial nos anos de 2010?

Thiago Aguiar –Faz dez anos de Junho de 2013 e os elementos de balanço estão presentes, mas muito contaminados pela disputa política atual justamente por se tratar de um evento muito marcante e definidor da conjuntura posterior. Então, é difícil falar sobre os últimos dez anos sem de algum modo tomar uma posição a respeito do que ocorreu. Os eventos de Junho não foram isolados e estão relacionados à crise do capitalismo global. No final dos anos 2000 e no início dos anos 2010, houve uma espécie de rebelião transnacional contra o capitalismo global. É mais fácil dizer isso hoje porque temos a distância do tempo, o que torna possível a vinculação de uma série de eventos. De todo modo, já em 2013, nas ruas, apresentava-se essa vinculação. Em particular, naquele momento, com a Turquia, onde um pouco antes havia começado uma mobilização que, por sua vez, tinha também sido estimulada pela “Primavera Árabe” no norte da África e no Oriente Médio, além dos desdobramentos na Europa e nos Estados Unidos. Por isso, não há nenhum exagero em falar em uma rebelião transnacional contra a crise do capitalismo global. As condições de cada uma dessas lutas são diferentes, marcadas por características nacionais, mas havia um pano de fundo mais amplo, relacionado à crise de 2008. Certamente, ali se desencadeou um desmanche ideológico do neoliberalismo depois de praticamente trinta anos de um consenso ideológico. Houve um desmonte dessa ideologia triunfante do neoliberalismo e uma dificuldade econômica crescente para as massas populares, que vai inflamando as ruas e praças em todo o mundo. Todos os movimentos mencionados estiveram vinculados a esse descontentamento com a piora dos níveis de vida, com a dificuldade de identificar perspectivas de futuro e com a perda de legitimidade dos governos e regimes políticos.

A crise foi se desenvolvendo em fases: uma primeira fase mais concentrada nos Estados Unidos, uma crise financeira, bancária e do mercado de hipotecas. Depois, cruza o Atlântico Norte, como uma crise das dívidas públicas na Europa, ensejando políticas de austeridade que levaram a cortes de aposentadorias, benefícios, salários e serviços públicos. Como consequência, ocorre uma desaceleração do crescimento da China e uma crise nos países fornecedores de commodities, com quedas intensas nos preços do petróleo, dos grãos e minérios, fazendo com que os efeitos da crise chegassem à América Latina e ao Brasil. A crise global é o grande pano de fundo. Nesse contexto, os governos também precisaram lidar com a crise de legitimidade: de um lado, uma insatisfação crescente das massas populares e, de outro, uma enorme incapacidade dos governos de respondê-la pelas pressões da crise econômica e pela captura dos Estados nacionais pela burguesia financeira transnacional. A crise vai revelando a incapacidade dos Estados de atender às demandas e, ao mesmo tempo, empurra os Estados a lançar mão de respostas cada vez mais repressivas.

Todos esses elementos comuns às rebeliões transnacionais contra a crise do capitalismo global também estão presentes em Junho de 2013, apesar de toda a propaganda feita por Lula, anos antes, a respeito da “marolinha” quando do primeiro choque no Brasil da crise financeira, entre 2008 e 2009, seguido por uma recuperação rápida, num primeiro momento, resultante de uma política anticíclica agressiva do governo. Entretanto, anos depois, a crise reaparece com mais força, dado o desenvolvimento da crise das dívidas públicas na Europa e a vertiginosa queda das commodities. O modelo de desenvolvimento do lulismo, muito assentado na demanda internacional de commodities, enfrenta dificuldades sérias a partir de 2012 e 2013, culminando na grande crise brasileira de 2015-16, o um capítulo local da crise global. Então, 2013 já aparecia como um momento-limite, um ponto de chegada de dez anos de promessas de ascensão social, pelos governos do PT, por meio do consumo, do crédito, do crescimento do salário-mínimo acima da inflação, aumento da formalização do emprego, políticas sociais, etc. Com a crise, esse modelo já não estava mais funcionando, e o aumento da inflação foi um grande sintoma. Não é por acaso que a questão do transporte público e dos serviços públicos apareceu. Começaram, então, a se revelar os limites do modelo de desenvolvimento lulista e o esgotamento popular com o regime político, com os acordos típicos da Nova República, que vincularam o PT a forças políticas conservadoras e reacionárias numa série de episódios que foram povoando o imaginário coletivo: as alianças, a “governabilidade”, a corrupção dos megaeventos esportivos, o achaque da escória parlamentar. São questões que seguem, o que Marcos Nobre chamou de “peemedebismo”, e que também foi bastante explorado nas análises de Vladimir Safatle.

Em 2013, uma nova vanguarda entrou em cena, menos referenciada na geração anterior, que lutou contra a ditadura militar e pela redemocratização, desejosa de transformações e que identificou a incapacidade do regime político de promovê-las. No entanto, estava evidente a dificuldade das ferramentas políticas anteriores de organizar essa nova geração. Foi uma época de experimentação de novas formas de participação política. Se fizéssemos uma arqueologia de Junho de 2013, encontraríamos uma série de lutas de menor escala ao longo dos anos anteriores: protestos estudantis de uma nova geração que entrava na universidade com a ampliação do acesso à educação superior; movimentos de luta contra o aumento de tarifas de transporte desde meados dos anos 2000; novas experiências do movimento de mulheres, do movimento antiproibicionista e o fortalecimento do movimento negro; a luta por moradia nos bairros e periferias das grandes cidades, contra as remoções e os megaeventos, o que também estimulou o rechaço à Copa do Mundo de 2014.

Seria preciso mencionar, ainda, as transformações nas comunicações e na formação da opinião pública com o aumento das conexões de internet e a disseminação das redes sociais, que modificaram e aumentaram as possibilidades de participação. Temos que reconhecer que fomos muito otimistas e ingênuos com o potencial dessas ferramentas, muito embora esse otimismo tivesse relação com o exemplo de outros processos, particularmente a utilização do Facebook na convocatória de manifestações na Primavera Árabe. No entanto, houve – e ainda há – grande ingenuidade na compreensão do papel dessas corporações transnacionais, visto que são o centro da acumulação capitalista contemporânea: uma simbiose entre grandes transnacionais financeiras, da internet e da comunicação, e o complexo militar-industrial. De todo modo, a rebelião transnacional dos anos 2010 também foi uma novidade para essas próprias empresas, que não estavam preparadas para isso. A burguesia transnacional não estava preparada, como os governos não estavam. Mas todos eles aprenderam muito e retiraram lições importantes para reagir com força na sequência.

NB – A negação das velhas formas de fazer política envolveu a comunicação, a forma de organizar protestos e os debates sobre quem, como e se nos representam, ou seja, há novos elementos subjetivos e políticos nos movimentos da época. Era também uma forma de atuar com novas pessoas, inexperientes, e que pensavam diferente. Eu gostaria que tu falasses sobre esse processo de construção.

TA –Lidar com memória é difícil, já que ela muda ao longo do tempo, mas a discussão sobre a capacidade de organização e de convocatória é um dos principais elementos que deveríamos refletir hoje. Em Junho de 2013, o movimento extrapolou qualquer capacidade organizativa e até mesmo, digamos, “interpretativa”. O movimento extrapolou a capacidade de organização do MPL, que foi o primeiro a convocar as manifestações contra aumento da tarifa em São Paulo, e extrapolou as capacidades organizativas de qualquer outro dos movimentos que se envolveram desde o início. Mas é preciso reconhecer, igualmente, que o movimento também pôde extrapolar as capacidades organizativas do Estado, que recorreu a várias táticas: a princípio, uma tática de esvaziamento, repressão e condenação; depois, uma tática de disputa, acomodação e reorientação. Em conjunto com o Estado, claro, atuaram vários aparelhos ideológicos, sobretudo a televisão. A mídia tradicional também foi muito desafiada e se assustou com a dificuldade de controlar a formação da opinião, que sempre dominou. Junho de 2013, então, testou e extrapolou as capacidades organizativas de todos. A crise de legitimidade do regime político e a dificuldade dos governos de responder às demandas também tiveram consequências sérias para as organizações tradicionais do movimento social e da esquerda no Brasil, afinal, era o PT que governava. As entidades estudantis, por exemplo, estavam paralisadas: a UNE, em geral, fazia a defesa do governo federal e de algumas prefeituras, como a de São Paulo, o que virtualmente impedia que fosse um espaço crível de organização da juventude.

Há, também, a grande questão da presença dos partidos. Depois da onda de repressão e da ampliação da escala dos protestos, cresceu a disputa por movimentos, partidos, governos e imprensa. Certamente, foi traumático o episódio da expulsão dos partidos da manifestação de 20 de junho em São Paulo, que ocorreu quando Fernando Haddad, Geraldo Alckmin e Eduardo Paes já haviam recuado do aumento das tarifas. As manifestações ganharam uma dimensão maior e a pauta ficou ainda mais genérica e em disputa, não estava mais diretamente ligada à redução da tarifa. Apesar de ter sempre havido o grito “sem partido”, e de algum atrito, os partidos e grupos organizados desde o início não haviam enfrentado confronto físico. É certamente possível que houvesse, naquele dia, a presença de provocadores, provavelmente infiltrados da polícia ou por organizações de extrema direita, nunca saberemos exatamente. Mas há um elemento fundamental que deve ser lembrado: a política do PT foi a pior possível – denunciar que as manifestações eram realizadas por vândalos e criminosos, com Haddad e Alckmin em Paris pedindo que a polícia reprimisse, atendendo ao clamor da imprensa. Depois, quando os governos são forçados a recuar do aumento, o PT tenta reorientar sua linha, indo da condenação a uma tentativa de disputa da rua: Rui Falcão, presidente do PT à época, comunicou que a militância do partido estava convocada para as manifestações depois que a tarifa caiu. No dia 20, então, o PT organizou um bloco grande e, de certa forma, provocativo, já que as manifestações até então se enfrentavam contra a política do PT. De repente, depois da vitória na marra da redução da tarifa, apareceu um bloco enorme, cheio de bandeiras do PT. A multidão tomou aquela presença de aparato como provocação e começou a hostilizar o partido. Assim começou o confronto físico, provavelmente iniciado por provocadores se aproveitando da hostilidade generalizada, que terminou empurrando os blocos de várias organizações políticas, logo atrás do bloco do PT, para uma travessa da Paulista. Hoje, pensando nisso, não deixa de ter um elemento, digamos, metafórico e trágico do que aconteceu com a esquerda brasileira nos anos seguintes porque a crise do PT termina sendo uma crise de toda a esquerda brasileira, com todos arrastados por essa onda.

O Estado e a grande burguesia, apesar de surpreendidos, certamente aprenderam muito mais do que os movimentos sociais e as organizações de esquerda, socialistas, e aplicaram esse aprendizado em todas as frentes: uso de novas ferramentas de comunicação, introdução de novas técnicas de repressão – o que experimentamos já ao longo dos meses e anos seguintes –, formação de novas porta-vozes e uma certa tentativa de reciclagem, não muito bem-sucedida, de alguns velhos políticos, abrindo espaço para toda uma nova geração de políticos, um fenômeno mais evidente à direita, mas que também ocorreu na esquerda.

Então, o aprendizado da classe dominante foi enorme, mas para nós também houve um aprendizado, que precisa ser matizado, com um exercício de lembrança permanente da atuação de cada um para evitar simplificações. Particularmente, creio que é preciso reconhecer a debilidade, senão a ausência, de programa. Essa debilidade segue evidente, e parece ter-se aprofundado nos últimos anos de defensiva política generalizada.

Israel Dutra – Houve uma transição entre  Junho, com a potência dessa rebelião, e a política que a burguesia teve após algumas aproximações de forma errática. Acho que se poderia fazer uma analogia com Walter Benjamin, quando relembrou a história da morte de Blanqui, o personagem mais identificado com a rebelião de 1848, e a política da burguesia, inclusive com as reformas urbanas para alargar ruas e passeios de Paris. Ou seja, houve uma política restauracionista da burguesia. A burguesia responde de forma sistemática, com muito estudo. A Globo, por exemplo, ficou desesperada e quase acéfala por alguns dias. Em 17 de junho, o Jornal Nacional durou quatro horas, falava-se sobre um possível golpe e havia dúvida sobre o que aconteceria no Brasil. O poder ficou um pouco em suspenso nesses dias, pelo menos de 17 a 20 de junho. Nos anos posteriores, houve uma restauração ou simulacro, e uma parte da esquerda se viu então despreparada. Talvez a burguesia tenha forçado tanto a mão nesse simulacro e nessa restauração, que aí sim abriu o passo para o bolsonarismo. A política da burguesia foi reativa à revolta de junho, não foi parte da revolta. É muito importante separar esses dois momentos. 

TA – Infelizmente, essa compreensão sobre Junho de 2013 é muito minoritária, mas o balanço do tempo histórico também se transforma. Pode ser que quando se discutirem os vinte, os trinta ou cinquenta anos de Junho essa compreensão mude, mas hoje não é assim. Vamos tomar, por exemplo, um trabalho que deve tornar-se uma interpretação consagrada de Junho, a produção da socióloga Ângela Alonso. Ela tem dado entrevistas sobre o livro que acaba de publicar e tem apresentado como uma das explicações para a ascensão da extrema-direita uma resposta “muito à esquerda” de Dilma Rousseff, que teria excluído os personagens da direita em 2013. É um pouco surpreendente ouvir isso para quem viveu aquele período. Que respostas à esquerda de Dilma? Alguém poderia mencionar a proposta trôpega, que não durou vinte e quatro horas, de uma assembleia constituinte para realizar a reforma política – sugestão devidamente engavetada pelo governo após se manifestarem as vozes da direita, a começar por suas porta-vozes na imprensa, pelo seu vice Michel Temer, por Gilmar Mendes e por outros cardeais do Congresso e do Judiciário, que bombardearam em uníssono a ideia. Dilma recebeu membros do MPL para uma reunião e tirou fotos, mas suas propostas após Junho foram os tais “cinco pactos”, empacotados pelo publicitário João Santana, sendo o primeiro deles um pacto pela responsabilidade fiscal! Depois, vieram as propostas de legislação contra “organizações criminosas” e antiterrorismo, que foram uma tentativa de desestimular novas manifestações e atender às demandas da FIFA e do COI, que exigiam uma garantia para a realização dos megaeventos.

O que vivemos nos últimos dez anos é resultado das respostas dos agentes sociais e políticos: não há uma ligação direta no tempo. É preciso analisar as respostas das diferentes frações da burguesia, que foram múltiplas e eventualmente contraditórias. Gostaria de argumentar que há, também, uma vinculação mais ampla com as respostas da classe capitalista transnacional às rebeliões transnacionais da década de 2010, que dividiram a burguesia transnacional, numa leitura certamente simplificada, em duas linhas. Há uma fração que percebeu a gravidade da crise e a necessidade de reformas, mas que não consegue realizá-las justamente pela gravidade da situação e pela redução da margem de manobra dos Estados, que, além do mais, estão divididos em linhas nacionais e lidam com uma crise global que extrapola completamente suas capacidades. Um exemplo dessa fração pode ser encontrado nos famosos economistas neoliberais dos anos 1990, como Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs, que hoje clamam por ajustes e tentam alertar a classe dominante dos perigos da crise, assim como uma ala do Partido Democrata dos Estados Unidos, certas alas da social-democracia e até do centro neoliberal na Europa. Tal fração costuma manifestar-se com ênfase no Fórum Econômico Mundial, cujos documentos têm há tempos insistido na necessidade de reformas dados os graves riscos da crise. Trata-se de uma fração que teve papel decisivo na conformação do capitalismo global e da crise atual, mas nesse caso justamente o cinismo termina sendo muito eloquente. Outra ala da burguesia transnacional, por sua vez, igualmente reconhece a gravidade da crise e, precisamente por isso, oferece uma resposta diretamente reacionária: é o que tem sido chamado de neofascismo ou fascismo do século XXI, que, sem nos preocuparmos com a precisão de definições acadêmicas, tem aparecido com força ao longo desses anos em várias partes do mundo, o que também pode contribuir para compreender o que ocorreu aqui, evidentemente com as características da luta de classes no Brasil, do que poderíamos chamar de o capítulo brasileiro dessas rebeliões transnacionais que vivemos em 2013.

A respeito da surpresa do Estado e dos aparelhos ideológicos, em particular da televisão, eu gostaria de compartilhar uma experiência pessoal algo anedótica: em 17 de junho, uma produtora da Globo nos encontrou na concentração da manifestação no Largo da Batata, em São Paulo, e convidou o movimento Juntos para participar de um debate no programa da Fátima Bernardes. Debatemos, entre nós, se deveríamos participar e acabei indo representar o movimento na manhã seguinte. O programa modificou a composição da equipe e o Pedro Bial foi escalado para conduzir a discussão. Ele estava ali justamente porque a Globo estava testando mudar a sua cobertura. A empresa havia sido muito questionada pela linha repressiva no início das manifestações, o que era visto como uma repetição de seu comportamento na ditadura militar e na luta pela redemocratização, quando ela mentiu sobre o comício das Diretas Já na Praça da Sé. Esse passado da Globo foi questionado em Junho de 2013 e, ao final da manifestação do dia 17, um grupo grande de pessoas foi para a frente da sede da Globo em São Paulo. Nesse momento, ao vivo, o Jornal Nacional leu um editorial improvisado de desculpas com uma autocrítica da Globo pela cobertura das manifestações e durante a ditadura militar! Isso foi uma coisa inesperada, conquistada nas ruas. Então, a Globo começou a se relocalizar e eu tenho a impressão de que, na manhã do dia seguinte, quando eu participei do debate na Globo, estava ocorrendo esse ensaio de mudança da linha.

Não digo isso para dar nenhuma importância para mim, poderia ter sido qualquer outro. Ao participar do programa, ficou muito claro que o Pedro Bial estava ali para controlar o que se discutia. O enquadramento do programa apresentava na tela o sofá, mas em geral a edição de imagem focava em quem falava ou nas pessoas que estavam imediatamente ao lado – além de mim, participaram um intelectual de direita, um autoproclamado especialista em segurança, atores da Globo e a Fátima Bernardes. Não era um ambiente fácil e eu não tinha dormido depois da noite anterior de protestos. Bial quase nunca aparecia no enquadramento da tela, salvo quando falava, e a câmera era direcionada de acordo com quem falava ao microfone, com poucas perguntas diretas. Era preciso tomar a palavra e, em vários momentos em que eu quis falar, o Bial fora do enquadramento me cortava rispidamente, com gestos grosseiros e mesmo falando fora do microfone: “Você não vai falar!”, “Não, não vai falar, não é a sua vez!”. Esse comportamento só foi direcionado a mim. Em outros momentos, ele me interrompeu e tomou a palavra enquanto eu falava. O mais interessante – poderia até dizer, etnograficamente – ocorreu quando o programa terminou. De repente, o Boninho, diretor do programa, um dos mais importantes da Globo, desceu para o estúdio e reuniu numa roda a equipe do programa, o Bial, alguns produtores e começou a gritar: “Muito bem! Quero ver agora questionarem a Globo! Quero ver dizerem que a Globo não debate os protestos! Excelente audiência, excelente programa! Parabéns!”. Então, parecia e era realmente uma operação política. Eu tive a oportunidade de ver a Globo reorientando sua linha política ali mesmo. Depois dessa primeira reorientação “a quente”, vamos dizer assim, para disputar o rumo dos protestos e tirar sua potencialidade mais explosiva, buscaram direcionar as manifestações para o debate da corrupção e das tentativas de retirar poderes do Ministério Público, a tal PEC 37. Dias depois, fui entrevistado novamente para o Globo Repórter. A edição selecionou pequenos trechos anódinos e edulcorados da entrevista gravada: apareci como um jovem universitário falando sobre suas expectativas para o futuro, com um céu azul radiante ao fundo.

Começou, então, a fase seguinte, uma resposta do Estado e da burguesia contra os protestos, mas também aprendendo com eles e buscando aproveitar ao máximo a oportunidade. Não foi apenas uma resposta, mas uma busca por aproveitar a oportunidade para passar à ofensiva. E isso aconteceu. Uma reconstrução séria teria inescapavelmente que tratar dos anos seguintes, das eleições de 2014 e 2018, do papel da Lava Jato na desestabilização do governo, do desenvolvimento da crise econômica e da vitória de Bolsonaro, o que me levaria muito longe, então quero destacar apenas alguns aspectos. Sem deixar de levar em conta as divisões da burguesia nem tomá-la como um monolito, ela aproveitou a oportunidade para tomar a iniciativa e decidiu assumir as rédeas mais diretamente, com menos intermediários. Percebe-se uma brecha para retirar o PT do governo, a princípio utilizando a eleição de 2014, o que não ocorreu por pouco. Não conseguiram tirar o PT naquele momento, e o PT igualmente não havia perdido totalmente o apoio de algumas frações da burguesia. Paulatinamente, consolida-se uma decisão majoritária da burguesia por um governo sem intermediários. Como dissemos, houve também grande aprendizado sobre o potencial da comunicação digital: começam a ser promovidos grupos, com recursos nacionais e estrangeiros, como o MBL e muitos outros. Houve realmente uma grande injeção de recursos para promover novos personagens que soubessem utilizar as novas tecnologias de comunicação. 

Houve também, por outro lado, uma espécie de revolução passiva, uma tentativa de isolar a esquerda mais crítica, limitando-a ao espaço dos debates sobre direitos civis, moralidade, costumes e até mesmo do entretenimento de massas, numa chave similar à da esquerda do Partido Democrata, algo que a Nancy Fraser chegou a classificar como “neoliberalismo progressista”. A esquerda socialista foi um pouco pressionada, empurrada a ficar nesse lugar. Mas ao mesmo tempo houve uma conquista, ainda que contraditória, já que um espaço importante se abriu após Junho de 2013 para as lutas pela emancipação de populações historicamente marginalizadas e oprimidas. Há uma disputa por pautas, ênfases e mesmo uma tentativa de recrutamento ou, é preciso reconhecer, de cooptação. As redes sociais, cuja lógica de operação tem sido virtualmente inexpugnável, tiveram uma contribuição decisiva nesse sentido ao direcionar e circunscrever o debate público a certos limites palatáveis à burguesia, o que também reduziu a margem de atuação da esquerda, ao mesmo tempo pressionada pela ofensiva contra o PT, que redundou no impeachment, e contra toda a esquerda genericamente. A extrema-direita foi igualmente muito habilidosa nessa ofensiva, vinculando a discussão sobre a corrupção e a crise do governo Dilma à lutas por direitos civis, por direitos das mulheres, LGBTs, e antirracistas que se fortaleciam nas ruas. O resultado foi uma forte disputa de novos personagens que emergiram, envolvendo mesmo uma nova agenda empresarial, com uma mudança de discurso e das campanhas publicitárias, num esforço para vincular, ou confundir, a luta pela emancipação coletiva à ascensão social individual: ou seja, não deve haver espaço para a emancipação coletiva, mas para a ascensão de novas e novos personagens na imprensa, no entretenimento e até na política, revelando com seus talentos e popularidade que todos podem agora ter um lugar ao Sol. Essa ideologia ganhou muita força e limitou a capacidade crítica da esquerda, contribuindo também para a neutralização dos protestos, muito embora tenha havido uma série de desdobramentos positivos, como as ocupações secundaristas e a Primavera Feminista. Trata-se de um cenário contraditório que segue.

Com o impeachment, há uma unificação da burguesia para responder à crise econômica de um ponto de vista de classe. Durante os governos do PT, havia um fracionamento mais evidente e mesmo um enfrentamento no interior da burguesia ao redor das formas de incorporação brasileira ao capitalismo global. No período seguinte, é possível identificar a unificação da burguesia para responder à crise, uma resposta de classe que visava à compressão dos custos do trabalho e à recuperação das taxas de lucro. É a pauta burguesa dos governos Temer e Bolsonaro até o início da pandemia, entre 2016 e 2020, a reforma trabalhista, a aprovação da terceirização sem limites, a reforma da previdência, a recuperação da agenda de privatizações, a redução do papel dos bancos públicos, de mecanismos paraestatais de financiamento, a ampliação dos canais de financiamento via fundos transnacionais, etc. 

Então, houve uma resposta da burguesia em várias frentes e Junho de 2013 não tem um capítulo imediatamente seguinte na vitória da extrema-direita com a eleição de Bolsonaro em 2018, ou seja, houve uma série de disputas em que a burguesia realmente tomou a iniciativa e terminou vencendo. Mas poderíamos também recorrer à história, com algum risco de esquematismo, e pensar na dinâmica típica de revolução e contrarrevolução: o espectro do Termidor e da resposta termidoriana tantas vezes vistos ao longo da história das revoluções. A burguesia não domina por acaso, controla o Estado, os meios de comunicação, as formas de produção ideológica. Então, a burguesia tem seus governos, seus aparelhos, sua elite dirigente e conseguiu oferecer uma resposta em todos os níveis. A esquerda também respondeu, houve e segue havendo uma disputa cruenta. O fato é que o país se transformou profundamente e devem ficar as lições para as muitas lutas que teremos no futuro.

ID – O Brasil mudou desde então e você estudou muito o papel das grandes empresas transnacionais. Fale um pouco sobre isso, como relacionar a mudança na estrutura social e econômica brasileira com Junho? 

TA –Essa é outra pergunta complexa, que demandaria muito tempo. Minha sensação é que o Brasil se transformou e, portanto, há descontinuidades, mas também existem muitas continuidades e não se pode perder a visão disso. Nesse ponto também há diferenças muito grandes de interpretação. Eu talvez compartilhe uma interpretação bastante minoritária. Penso que é preciso olhar para um processo de mais longo prazo, que é a incorporação da economia brasileira ao capitalismo global. As transformações na estrutura econômica e social do Brasil são de mais longo prazo. Poderíamos colocar como um marco o esgotamento do modelo desenvolvimentista nos anos 1980, o fim da ditadura militar e as transformações que vieram desde então. São quase quarenta anos dessa grande transformação, vinculadas às mudanças na economia internacional. Então, é preciso ver a continuidade nas descontinuidades: a continuidade é justamente a incorporação da economia brasileira ao capitalismo global. Os governos do PT, ao contrário do que dizem os ideólogos do partido, não foram uma exceção nessa transformação de longo prazo. Em muitos aspectos intensificaram, aprofundaram e qualificaram essa incorporação. 

Durante os governos do PT, buscou-se colocar o Estado a serviço da acumulação transnacional de uma forma particular, em que se vincularam fundos públicos, capitais paraestatais e capitais nacionais aos capitais transnacionais, numa variedade de transnacionalização muito alavancada pelo Estado e por fundos estatais e paraestatais, o que a rigor vem desde as privatizações de grandes empresas estatais promovidas no governo Fernando Henrique nas quais capitais do BNDES e dos fundos de pensão foram muito mobilizados, por exemplo, nos casos da CSN, da Vale, de empresas do setor elétrico e de telefonia. No governo Lula essa vinculação aprofundou-se, mas a partir da crise de 2008 começa a haver mudança de vulto. Não se ouve mais falar, como se ouvia entre 2009 e 2012, das empresas “campeãs” nacionais e mundiais. Bem, elas já não tinham muito de “nacionais” e hoje ainda menos. Se tomarmos a JBS por exemplo: trata-se uma corporação transnacional cuja principal fonte de receitas, atualmente, não vem do Brasil, mas do mercado dos Estados Unidos, além de ter seu em seu controle capitais de distintas origens nacionais. A JBS, apesar da presença relevante dos Batista em seu controle, não é mais uma empresa brasileira ou dos Estados Unidos, por mais que ela tenha operações enormes nos dois países e esteja discutindo a mudança da sua sede corporativa para os Estados Unidos. 

Com a crise, a capacidade de financiamento do Estado e dos fundos estatais e paraestatais foi reduzida. Desde então, tem havido uma luta política encarniçada no interior das empresas e a burguesia tem buscado livrar-se de alguns “intermediários”, por exemplo, os sindicalistas que eram dirigentes dos fundos de pensão, que foram sócios e administradores desse processo, mas em anos recentes foram sendo retirados. Se olharmos a composição do capital social da Vale atualmente, por exemplo, veremos que entre seus principais acionistas estão dois grandes fundos transnacionais: a BlackRock, que administra algo como oito trilhões de dólares em ativos, e o Capital Group, que administra cerca de seis trilhões de dólares em ativos. São fundos que controlam ativos no mundo todo e que tem capitais de distintas origens, sendo, portanto, propriamente transnacionais e que passaram a ter muito mais peso no que o jargão da administração chama de “governança corporativa” das grandes empresas, influenciando decisivamente para onde se direciona o valor extraído, produzido e capturado pelas empresas. Esse é o grande debate que, na verdade, fica fora da discussão pública e muitas vezes aparece de forma parcial, torta. A mudança na política de preços dos combustíveis, por exemplo, foi resultado de uma reorientação da estratégia corporativa da Petrobras depois do impeachment que tem tudo a ver com isso que estamos discutindo. É uma mudança sobre o destino dos lucros da petroleira, que passaram a fluir em escala inaudita para os acionistas, entre os quais fundos nacionais e transnacionais como os que mencionei. Na realidade, essa fronteira entre nacional e transnacional está muito borrada porque também há muitos cotistas brasileiros de fundos transnacionais. De todo modo, o importante é destacar que houve, em geral, uma grande reorientação das estratégias corporativas das grandes empresas sediadas no Brasil nos últimos anos, com impactos decisivos para os trabalhadores, sindicatos, comunidades e meio-ambiente. A dominação financeira sobre o país aumentou sensivelmente e o Estado perdeu ainda mais ferramentas de intervenção desde então. O Estado, na realidade, está em processo permanente de adaptação e transformação para promover as melhores condições para a acumulação e a dominação.

Então, nessa continuidade de longo prazo da incorporação da economia brasileira ao capitalismo global, podemos ver descontinuidades conjunturais, que dizem respeito às respostas que vão sendo dadas. O certo é que existe uma crise estrutural do capitalismo em curso, sem resolução à vista, e com aspectos preocupantes se desenvolvendo, como o retorno, após décadas, da ameaça de guerra nuclear e o agravamento da crise ambiental. Uma série de especialistas, como o pesquisador Luiz Marques, tem alertado sobre um “decênio decisivo” para uma tomada de ação a respeito da crise ambiental, sem a qual corremos riscos existenciais.

Ao mesmo tempo, a crise subjetiva da classe trabalhadora e das massas populares, a debilidade ou falta de alternativa ideológica, política, programática e organizativa, na minha opinião, não se resolveu desde a crise de 2008, mas, pelo contrário, parece ter-se agravado. As principais ferramentas que foram construídas na esteira da rebelião transnacional dos anos 2010 entraram em crise rapidamente. Poderíamos mencionar a experiência trágica do Syriza, que cheguei a acompanhar mais de perto, e terminou numa verdadeira traição. A experiência do Podemos também revelou debilidades graves de toda ordem e retrocedeu. Seguem as dificuldades de construção de uma alternativa de esquerda nos Estados Unidos, por mais que tenha havido boas novidades. Na América Latina, onde houve muitas lutas decisivas nos últimos anos, também conhecemos nossas tremendas limitações, das quais é exemplar o último choque que recebemos do Chile. Nossas capacidades organizativas estão agora muito vinculadas ao que o cientista político italiano Paolo Gerbaudo tem chamado de “partido digital”. Ao longo do tempo, a política vai transformando suas formas de organização: no final do século XIX e no começo do século XX, na Europa, houve os grandes partidos de massas; depois, durante o século XX, surgiram partidos de quadros parlamentares, homens de terno e gravata com suas campanhas eleitorais no rádio e na tevê; agora estamos experimentando uma política organizada e disputada digitalmente nas redes sociais, mas a internet não é um ambiente neutro, é uma estrutura organizada por corporações transnacionais que controlam a produção e difusão de informações como um negócio bilionário. Desse ponto de vista, as transformações são muito desafiadoras. 

ID – Para encerrar, uma última pergunta: o petismo, nos debates sobre Junho, aposta na continuidade da narrativa do medo e num apagamento do acontecimento. Qual é o seu ponto de vista sobre essas posições? 

TA –Esse incômodo permanente do PT com a existência de Junho, que não pode ser apagada, termina sendo inócuo porque não existe o “se” na história. Tentei argumentar, aqui, que Junho também foi o resultado de uma crise grande, profunda e estrutural, que responde a dinâmicas muito maiores do que o próprio espaço nacional brasileiro, e também de uma série de lutas e circunstâncias nacionais, entre as quais, com grande relevância, a política do PT no governo. Portanto, questionar a existência de algo que também é resultado de suas escolhas não é apenas inócuo, mas uma demonstração de incapacidade de interpretação. O PT atuou de uma forma muito despreparada sobre Junho, primeiro de forma repressiva e depois capitulando para uma agenda de ajuste. O PT culpa 2013 pelas tragédias que aconteceram depois. Mas a agenda adotada por Temer no pós-impeachment já vinha sendo ensaiada por Dilma, especialmente no início de seu segundo mandato.

Por último, deveríamos olhar, igualmente, para as escolhas e responsabilidades de nós mesmos que participamos decididamente daquele movimento. Há toda uma memória para se preservar a respeito de como cada um respondeu a Junho. A primeira fase da luta contra o aumento das tarifas teve uma dinâmica e, depois da vitória, houve uma decisão do MPL de se retirar da convocatória dos atos – explicando suas razões, mas de certo modo abrindo mão da disputa – e houve uma escolha consciente de parte majoritária da esquerda brasileira, que estava dentro ou fora do governo, de combater Junho na sequência. A maioria do PSOL, por exemplo, teve uma escolha majoritária de não vocalizar Junho e eventualmente negá-lo. A campanha presidencial imediatamente posterior, de Luciana Genro em 2014, reivindicou e até tomou Junho como um slogan, mas a verdade é que a escolha majoritária do partido não foi essa, muito menos construir um espaço político que apostasse na organização da nova geração que surgiu em Junho de 2013. É um processo, por outro lado, contraditório porque o PSOL deu vazão política, especialmente nas disputas parlamentares, para vários desses personagens que vocalizaram processos e lutas que apareceram em Junho e depois. Elas encontraram no PSOL um espaço, mas o partido majoritariamente não teve a política de vocalizar e organizar uma fração disposta a uma ruptura do regime político no Brasil, ainda que como um esforço de propaganda, disputa e educação para o futuro. Essa não foi a escolha do PSOL e não foi a escolha, na verdade, de nenhum dos protagonistas daquele evento. 

Então, não cabe de modo algum lamentar Junho, mas seguir aprendendo com esse acontecimento para que numa próxima oportunidade estejamos mais preparados. A questão não é se, mas quando vai existir outra ruptura e outro grande ciclo de manifestações, já que a crise continua e só se aprofunda. Meu receio é que nossas capacidades subjetivas parecem ainda estar muito aquém do que virá adiante. Mas devemos ter orgulho da ousadia e do esforço de nossa geração. Há muita vida pela frente.

1 Secretário-geral do PSOL, é sociólogo, membro da Direção Nacional do partido e do Movimento Esquerda Socialista (MES).

2 Jornalista, Coordenadora Geral do DCE UFRGS e dirigente do Juntos! RS em 2013.


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Pedro Micussi