Dogmatismo e oportunismo, ou “como não viver uma vida na esquerda”
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Dogmatismo e oportunismo, ou “como não viver uma vida na esquerda”

Os dogmáticos se baseiam em fórmulas atemporais. Os oportunistas seguem o caminho de menor resistência. O truque é reconhecer a sedução de ambas as armadilhas – e evitar cair nelas

Neal Meyer 3 jul 2023, 16:00

Foto: Stephen Crowe / The Call

Via The Call

A maioria das pessoas tem um demônio em um ombro e um anjo no outro. Um socialista é um pouco diferente. No ombro esquerdo está “O Dogmático”, usando um boné de jornaleiro, sacudindo um exemplar de uma publicação impressa e murmurando sobre o ano de 1917. No ombro direito está “O Oportunista”, usando uma gravata, mexendo seu café e falando sobre como tal Democrata é realmente um amigo do povo.

Todo socialista, desde Marx e Engels, enfrentou o desafio de eliminar as duas vozes. E todo socialista cometeu alguns erros dogmáticos e outros oportunistas. É preciso ser generoso e não acusar tão rapidamente um camarada de um desses erros. Mas também devemos aprender a identificar o que é e o que não é dogmático e oportunista. Se quisermos evitar cometer um erro, precisamos saber como é cometê-lo.

O que é dogmatismo?

Os dogmáticos seguem “regras por fórmulas atemporais”. Em vez de uma mente aberta a novos desafios e uma disposição para adaptar a estratégia e as táticas a um determinado momento, o dogmático insiste que certos artigos de fé perenes podem orientar o trabalho de um movimento em todos os lugares e sempre. Por serem atemporais, essas fórmulas tendem a se parecer mais com ideias abstratas do que com planos concretos.

É isso que torna os dogmáticos incapazes de empreender o trabalho complicado de construir o poder da classe trabalhadora – eles tendem a evitar aqueles que discordam de sua fé rígida ou simplesmente não a compreendem. Um dia, argumenta o dogmático, todos aprenderão a lição e colocarão o dogmático no comando. Até que esse dia chegue, o dogmático continuará alegremente torcendo o nariz para o mundo e traçando linhas rígidas entre o seu lado e o lado errado.

Às vezes, o trabalho de criar suas próprias fórmulas atemporais parece muito trabalhoso. Ou talvez o dogmático esteja inseguro sobre suas próprias qualificações para liderar. Então, pegando um atalho, o dogmático mergulha nos livros de história, eleva alguma figura do passado como o Grande Líder e copia seus planos e estratégias. É muito mais fácil copiar do que ser original.

Algumas pessoas confundem dogmatismo com ter opiniões impopulares. Não é isso. Se fosse, todo socialista em nosso momento atual seria um dogmático. É correto e bom manter-se firme em suas crenças – desde que elas estejam enraizadas na realidade – e defendê-las. Não seja desagradável com relação a isso. Não faça da concordância em todas as questões o pré-requisito para o trabalho coletivo. Mas, em conversas, reuniões e campanhas, você tem o direito de apresentar seu argumento.

Algumas pessoas confundem dogmatismo com aprender com o passado. Isso também não é verdade. Se alguém usa o passado como pretexto para criar essas fórmulas atemporais que mencionei, então sim, isso é dogmatismo. Alguns grupos realmente fazem isso. Mas a maioria das pessoas que quer estudar história o faz porque raciocina, corretamente, que há muito a ser aprendido com o passado, mesmo que não haja respostas prontas.

Como é cometer um erro dogmático? Em 2015, algumas pessoas da esquerda dos EUA ficaram horrorizadas quando Bernie Sanders se preparou para concorrer à presidência nas primárias democratas. Décadas de experiência com o Partido Democrata levaram alguns da esquerda a transformar o bom princípio de que os socialistas deveriam ser independentes do Partido Democrata em uma fórmula atemporal de tática: é sempre uma má ideia concorrer nas eleições primárias do partido. Como Bernie estava concorrendo como Democrata, simplesmente tinha de ser o caso de Bernie estar tramando algo ruim. Como disse um líder da Organização Socialista Internacional (ISO) em 2015, “a campanha de Bernie Sanders dentro do Partido Democrata é um obstáculo” para o projeto de “romper com o Partido Democrata e construir uma alternativa eleitoral como complemento da luta de baixo”. Portanto, os socialistas não poderiam ser apoiadores ativos da campanha de Bernie.

Independentemente do que se possa pensar sobre a trajetória política de Bernie desde 2015 – e certamente tenho minhas críticas -, parece difícil dizer que qualquer uma das campanhas presidenciais de Bernie foi negativa para os oponentes do Partido Democrata. As campanhas de Bernie ajudaram a polarizar os apoiadores do partido entre suas alas esquerda e direita. Organizações como o DSA, que se dedicaram com entusiasmo à candidatura de Bernie em 2016, saíram das eleições daquele ano com muita energia e dezenas de milhares de novos membros. E a maioria desses membros passou a desenvolver políticas mais incisivas e uma profunda hostilidade à liderança do Partido Democrata.

O que é oportunismo?

Os oportunistas seguem “a regra pelo caminho de menor resistência”. Para o oportunista, o caminho mais fácil é sempre o melhor. É muito melhor conquistar uma pequena vitória agora, por qualquer meio necessário, do que sacrificar ganhos de curto prazo por possíveis ganhos de longo prazo. Tampouco há necessidade de um debate sério sobre o desafio de lutar por objetivos de longo prazo, porque a estratégia está subordinada a uma única fórmula: seguir o caminho mais fácil.

O oportunista está especialmente sintonizado com o canto da sereia da opinião pública liberal. Se todos na sociedade “respeitável” fazem algo, deve ser porque essa é a maneira correta de fazer.

Assim como há muitos equívocos sobre o que é dogmatismo, há muita confusão sobre oportunismo.

Não é oportunismo querer vencer. Ganhar um acordo sindical, ganhar uma eleição e ganhar uma campanha de reforma são partes essenciais de estratégias de longo prazo para mudar o mundo. Esses tipos de vitórias podem ajudar a fortalecer a classe trabalhadora.

No entanto, às vezes, a questão é como ganhamos. Será que tomamos atalhos e impedimos que os membros de uma organização tomem decisões para vencer? Adotamos uma cultura de sigilo organizacional porque é mais fácil tomar decisões com um pequeno grupo com o qual sabemos que concordaremos (e talvez porque haja menos risco de perturbar as pessoas poderosas com as quais estamos tentando fazer acordos)? Comprometemos os princípios e, ao fazê-lo, desmoralizamos nossos organizadores? Ocultamos nossos planos reais por enquanto sob a suposição errônea de que, como os soldados do Cavalo de Troia, podemos entrar sorrateiramente no campo do inimigo e depois começar a lutar? Bajulamos o ego de algum político ou burocrata rival para obter uma vantagem e, no processo, enganamos nosso próprio povo, fazendo-o pensar que ele é um amigo?

Não é oportunismo pesar as palavras com cuidado. Às vezes, não é o momento certo para pressionar um debate ou uma discordância dentro de uma organização ou movimento. Às vezes, é o momento de enfatizar o que um grupo tem em comum. Não há nenhuma regra que possa ser usada antecipadamente para julgar quando é e quando não é apropriado enfatizar a unidade ou pressionar para fazer mudanças controversas. Isso tem de ser descoberto em uma situação concreta.

Como é cometer um erro oportunista? Em 2021, as organizações da esquerda progressista tiveram que fazer uma escolha: atacar o novo governo de Joe Biden de fora dos corredores do poder ou mudar de marcha para assumir cargos de conselheiros do novo presidente e outros cargos dentro do Partido Democrata. Tragicamente, muitas organizações cometeram o erro de tentar entrar no governo e influenciar o governo Biden por dentro. Como disse um crítico inteligente desse movimento, o resultado foi que a esquerda progressista foi “desarmada” e cooptada para o “mundo Biden” – mesmo quando o governo descartou prioridade progressista após prioridade progressista. Os ativistas queriam acreditar que o governo Biden representava a oportunidade de fazer grandes mudanças pelas quais eles esperavam há muito tempo. Eles acreditaram nas alegações do governo de que era assim e, no processo, desarmaram a si mesmos e a seus membros.

Obtendo o equilíbrio correto

Há um equilíbrio a ser alcançado entre consistência e compromisso, observando as lições aprendidas no passado e aproveitando novas oportunidades. É normal cometer erros nesse ponto, enfatizar uma abordagem em detrimento da outra em um determinado momento de sua vida ou da vida de uma organização. O dogmático em nosso ombro esquerdo nos chama a atenção em um ano, e o oportunista no ombro direito nos fisga no ano seguinte.

Em meu tempo na esquerda, passei a acreditar que as pessoas são mais suscetíveis a cada perigo em diferentes momentos de seu desenvolvimento político e em diferentes funções em uma organização.

O novo socialista está cheio de entusiasmo. Muitas vezes, uma pessoa recém-chegada ao socialismo pode ser consumida pela empolgação de derrubar qualquer visão de mundo antiga e erguer os andaimes de uma perspectiva socialista. Ao fazer isso, é mais provável que se debruce sobre os livros de história e supervalorize alguma fórmula desgastada ou queira passar o tempo concentrado naquilo que o veterano “mais sábio” descarta como debates abstratos. O maior perigo, portanto, para o novo socialista é o dogmatismo.

Às vezes, algo semelhante pode ser dito sobre o membro comum de uma organização. Distanciados de alguns dos desafios difíceis que os líderes enfrentam, eles lamentam todo compromisso como oportunismo.

O socialista experiente é cheio de perspectiva. Muitas vezes, eles se arrependem de alguns de seus excessos mais jovens. É mais provável que apreciem a necessidade de fazer concessões e estejam mais aptos a ver as coisas em tons de cinza. Mas, às vezes, eles enfatizam demais o compromisso. Às vezes, são rápidos demais para abandonar suposições que antes eram fundamentais para sua visão de mundo. Às vezes, eles olham para os projetos políticos à sua direita e pensam: “Ei, a grama é realmente mais verde lá!” O maior perigo, portanto, para o socialista experiente é o oportunismo.

Algo semelhante pode ser dito de um líder de uma organização. Concentrados nos desafios que enfrentam, erguidos como representantes de um grupo e em contato com a sociedade de elite “respeitável”, o imenso peso da opinião pública liberal pode parecer esmagador. Parece ser mais fácil se dar bem com os Democratas, os figurões dos sindicatos e os intelectuais renomados com os quais, de repente, se está em contato.

Aprender a evitar as armadilhas do dogmatismo e do oportunismo requer prática, tempo e um esforço consciente. É um pouco como aprender a andar de bicicleta de duas rodas. Não caia à sua esquerda ou à sua direita. Siga em frente.


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Pedro Micussi