A centralidade do antirracismo no Movimento Esquerda Socialista (MES)
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A centralidade do antirracismo no Movimento Esquerda Socialista (MES)

Leia o artigo de introdução da nova edição da Revista Movimento debatendo o marxismo negro e assine a revista!

Letícia Chagas 27 nov 2023, 09:35

Foto: Instagram

Esta revista é o resultado de um trabalho coletivo, tocado já há muitos anos. Ela é a expressão da centralidade que a questão racial vem tomando nas elaborações políticas e na estratégia de luta do Movimento Esquerda Socialista (MES). E não poderia ser diferente: se partimos da luta de classes como motor da história, é fundamental compreender que a população não branca vem sendo o centro da luta de classes no Brasil e no mundo. 

Como bem elaborou Clóvis Moura, o povo negro foi o centro da luta de classes no escravismo colonial, marcada pelo antagonismo entre população negra escravizada e senhores de escravos. Nesse sentido, os quilombos foram um exemplo de resistência ao sistema escravocrata, na medida em que forçavam o rompimento da relação de trabalho entre escravo e senhor (1).

Mesmo com a abolição da escravatura, a população negra seguiu sendo a base da pirâmide brasileira. No início do século XX, diversas teorias pseudocientíficas buscaram afirmar a inferioridade do negro em relação ao branco europeu, servindo como base para o desenvolvimento de políticas de embranquecimento e exclusão da população negra. O imigrante europeu foi considerado o “trabalhador ideal”, e a massa de negros libertos foi jogada ao desemprego ou inserida em empregos super precarizados (2). 

Apesar das importantes mudanças que vêm ocorrendo nos últimos anos – como a adoção das políticas de cotas étnico-raciais nas universidades públicas e a maior presença negra em espaços institucionais de poder – a “carne mais barata do mercado”, nas palavras de Elza Soares, ainda é a carne negra. É por isso que o enfrentamento ao racismo só pode ser plenamente realizado a partir de um enfrentamento ao modo de produção capitalista. 

Ora, como Marx analisa em “O capital”, o capitalismo é um sistema marcado pela generalização das trocas mercantis, em que os detentores do modo de produção buscam transformar dinheiro em mais dinheiro, ou seja: transformar dinheiro em capital. Para isso, a exploração do trabalho é primordial. É a força de trabalho que gera mais valor – ou “mais-valia” – aos capitalistas. 

 A extração do mais-valor ocorre por intermédio do contrato de trabalho. Através dele, salário e força de trabalho são considerados ambas mercadorias equivalentes, que podem ser trocadas. Na prática o trabalhador trabalha por muito mais tempo do que o correspondente ao valor que ele recebeu como pagamento, e é neste tempo a mais que ele produz mais-valor.

Nesse contexto, as hierarquias sociais, como a hierarquia entre brancos e negros promovida pelo racismo, é bastante útil para a extração de mais-valor. Em um país marcado pelo desemprego da população negra, é mais fácil oferecer empregos por salários muito aquém do mínimo necessário para sobreviver – afinal, quem não tem nada não tem lá muito poder de escolher salários melhores. 

Com base na divisão internacional do trabalho, toda a classe trabalhadora no capitalismo dependente – seja ela negra ou branca – é submetida ao fenômeno da superexploração, mas é inegável que esta ocorre com ainda mais afinco quando estamos a tratar do povo negro. Na atualidade, uma expressão da superexploração do trabalho negro é o trabalho por aplicativos. Os entregadores desses serviços são em sua maioria jovens negros que trabalham horas por dias para conseguirem o mínimo para sobreviver, conforme desenvolve Diogo Dias no texto “Trabalhadores por aplicativo: a nova forma de racismo e exploração da classe trabalhadora”.

Por isso, é impossível uma luta socialista que não tenha a luta antirracista como centralidade.  A classe trabalhadora não é uma mera abstração, tampouco um conceito idealizado e dogmático. Muito pelo contrário: ela é material e real. No Brasil, falar de classe trabalhadora é falar de povo negro. 

Não à toa, Adriano Mendes, em seu texto “A crise no capitalismo e o levante negro no mundo”, escreve que “a luta de classe e a luta antirracista são fenômenos indissociáveis”. Por esse motivo, o movimento negro tem sido o protagonista de diversas lutas antissistêmicas no Brasil e no mundo, à exemplo do movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos. 

Um movimento antirracista que não tenha o fim da exploração do trabalho como estratégia se resumiria “à integração dos negros à sociedade salarial de modo precário”, como denuncia Alessandra Devulsky (3). É impossível uma emancipação completa de nosso povo enquanto vivermos em um mundo em que as coisas são mais importantes do que as pessoas; em que a troca de mercadorias torna-se uma prática incessante e voraz, realizada não para satisfazer nossas necessidades de sobrevivência, mas para gerar lucro pra 1% da população, enquanto os 99% vivem em situações degradantes, suscetíveis a morrer de fome ou por “desastres ambientais” gerados pelas mudanças climáticas que o capitalismo tem provocado. 

É inegável que a ideologia burguesa vem, já há muitos anos, buscando cooptar a luta antirracista, tornando-a uma luta a serviço da reprodução das relações de produção capitalistas. Uma das maneiras pelas quais essa cooptação se expressa é através de narrativas que buscam negar o marxismo, pintando-o como uma epistemologia unicamente branca e europeia. Comumente, aqueles que defendem essa posição buscam apenas afirmar a raça enquanto identidade política e cultural. É o clássico “não sou de direita nem de esquerda, sou negro”. Ao fazerem isso, descuidam do fato de que a ideia de raça também é um produto da ideologia burguesa. 

Devemos compreender que a ideologia racial é parte da estratégia burguesa para manter o modo de produção capitalista. Afinal, o racismo dificulta a união entre trabalhadores brancos e negros contra esse sistema de exploração. Por isso, se hoje afirmamos nossas identidades como potencialidades políticas, o fazemos para que um dia seja possível abolir a ideia de raça. Assim, como afirma Silvio Almeida, “em um sentido revolucionário, a afirmação da raça é feita apenas para que um dia seja possível superá-la” (4).

O marxismo não é um dogma. É um método de análise da realidade, que foi utilizado por diversos teóricos, inclusive teóricos negros. Nesse sentido, os textos de Gilvandro Antunes (“Frantz Fanon: Um Revolucionário Antirracista e de Pensamento Decolonial”), bem como o de Danilo Serafim ( “Leon Trotsky e os apontamentos com C.L.R. James”) e Estéfane Morães (“A revolução de São Domingos”) apresentam importantes notas de como dois grandes intelectuais negros – Frantz Fanon e C.L.R. James – desenvolveram uma teoria e uma prática antirracistas tendo o marxismo como método. No Brasil, as obras de Clóvis Moura e Lélia Gonzalez também são exemplos disso, demonstrando a intersecção entre marxismo e luta negra.

Mas também é verdade que por muito tempo diversas organizações de esquerda apagaram a história e a relevância desses teóricos, contribuindo para disseminar a ideia de que o marxismo seria mero “dogma branco”. Muitos partidos de esquerda negligenciaram a questão racial, excluindo pessoas negras de espaços de decisão e ignorando a centralidade desse tema para se pensar o modo de produção capitalista. 

Lélia Gonzalez denunciou esse processo ao tratar do “racismo por omissão” no Partido dos Trabalhadores (5). Mas não só o PT está suscetível a isso. A ideologia racista é uma realidade que permeia os mais diversos espaços, inclusive espaços de nossa própria organização. Reconhecer isso é um passo importante para promover mudanças reais e o consequente avanço de nossas lutas. 

Reconhecer as potencialidades e insuficiências deste tema em nossa própria organização demonstra que o MES é uma organização em permanente construção, viva e pulsante. Os avanços promovidos pelo movimento negro nos últimos tempos também alcançaram nossa organização. Hoje, possuímos diversos militantes negros provenientes das políticas de ações afirmativas nas universidades públicas, da construção de uma educação popular, das lutas ecossocialistas e do campo, entre tantos outros locais. Nossa presença tem sido a força motriz desse processo de renovação da teoria marxista dentro do MES e se materializa nas lutas que temos tocado nos últimos anos e em nossas posições políticas na conjuntura nacional e internacional. 

Nossos mandatos são um reflexo dessa política coletiva desenvolvida em nossa organização. Apesar dos limites da institucionalidade, eles vêm sendo um importante exemplo de resistência e apoio à luta popular. Em seu texto “Luta racial no Brasil: apontamentos para uma práxis antirracista”, o deputado estadual pelo Rio de Janeiro, prof. Josemar, demonstra que nossos parlamentares vem elaborando uma práxis antirracista coletiva e refletindo um programa de lutas para nosso país. 

Assim como ele, Luana Alves, liderança do Rede Emancipa de Educação Popular e vereadora na cidade de São Paulo, também vem se utilizando do espaço parlamentar para promover importantes lutas sociais, como a luta pelo direito à memória da população negra. Em 2021, Luana apresentou o projeto de lei “São Paulo é Solo Preto e Indígena”, que busca proibir a homenagem a figuras racistas e eugenistas na cidade. Ela conta essa experiência e a importância dessa luta em seu artigo “O Brasil é Solo Preto e Indígena”. 

Além de Luana, diversas outras mulheres negras vem protagonizando a luta política parlamentar em nossa organização, como Mônica Seixas e as co-deputadas do Mandato-Movimento Pretas, em São Paulo; Camila Valadão, no Espírito Santo; Juliana Curvelo, em Osasco/SP e Debóra Firmino, em Marabá/SP. A legislatura passada da Câmara dos Deputados também contou com a presença do mandato federal de Vivi Reis, uma potência na luta antirracista e ambiental na Amazônia. Além dos mandatos delas, temos também Fábio Félix, o deputado distrital mais votado na história do DF, com um programa de luta radical que une o anticapitalismo ao movimento negro e LGBTQIA+. 

Para além dos parlamentos, diversas mulheres negras vêm construindo conosco luta social no campo e na cidade. Na entrevista realizada por Bruna Silva e Alex da Mata, conhecemos a trajetória de uma dessas lutadoras do MES: Antônia Cariongo, importante liderança quilombola no Maranhão. 

Além dela, Ana Laura Oliveira, Dani Sanches e Lucas liderança do movimento Emancipa Axé, escreve sobre como o avanço do cristianismo no Brasil esteve relacionado a um processo de apagamento da cultura negra. Hoje, há igrejas neopentecostais que têm sido parte ativa da disseminação de políticas conservadoras em nosso país. Ana Laura apresenta a potencialidade das religiões de matriz africana para a luta anticapitalista, e a importância da organização desses povos para a construção de um novo amanhã. 

Desde sempre, mulheres negras foram lideranças em seus territórios. Construir um movimento feminista que esteja a serviço de suas demandas, tendo o antirracismo e o anticapitalismo como centrais, é parte da tarefa que abordam Carla Zanella e Zeneide Lima no texto “Os desafios do feminismo negro na luta anticapitalista”. 

Para nós, uma práxis teórica marxista e negra é essencial para enfrentar os desafios do nosso tempo. Como já apresentado, o antirracismo está em disputa. De movimentos sociais a grandes corporações, diversos setores vêm buscando elaborar “políticas de diversidade”, o que vem gerando consequências na atual conjuntura política. 

Ao analisar o crescimento do fascismo trumpista nos EUA, Nancy Fraser aponta que Trump nasceu como alternativa a um neoliberalismo progressista: um setor que aliou políticas de reconhecimento e “diversidade” a um projeto neoliberal de distribuição; um “casamento” entre setores do movimento negro, feminista e LGBTQIA+ com a burguesia (6). Evidentemente, esse setor perdeu sua hegemonia, já que a classe trabalhadora não é burra: ao perceber que a política de diversidade exaltada por políticos como Obama não transformou sua realidade, foi mais fácil que discursos radicais como o de Trump ganhassem espaço.

No Brasil, Lula e Dilma parecem ter sido expressões desse neoliberalismo progressista, fazendo com que Bolsonaro, um político que propunha acabar com “tudo isso daí” vencesse as eleições em 2018. Não à toa, nas eleições do ano passado a diferença de votos entre Lula e Bolsonaro foi tão pequena. Infelizmente, o atual governo Lula parece estar cometendo o mesmo erro. 

Obviamente, a diferença entre Lula e Bolsonaro é gritante, não à toa fomos parte ativa de sua campanha em 2022. Contudo, pouco adianta indicar figuras negras para a alta cúpula do governo enquanto aprova um ajuste fiscal que poderá diminuir o investimento em políticas sociais – o que afeta principalmente a população negra. Pouco adianta que negros subam a rampa do Planalto durante a posse presidencial se o governo leva adiante um projeto de privatização dos presídios e contribui para a manutenção da política de guerra às drogas que tem matado nosso povo e provocado o encarceramento em massa da população negra. 

Para nós, a representatividade é importante, mas não basta. Como parte da classe trabalhadora negra, devemos ser parte da linha de frente da derrubada do capitalismo. 

REFERÊNCIAS

  1. OLIVEIRA, Dennis. Racismo estrutural: uma perspectiva histórico-crítica. São Paulo: Editora Dandara, 2021.
  2. FAGUNDES, Gustavo Gonçalves. O racismo no caso brasileiro e as raízes da superexploração do proletariado negro. Em pauta: Revista da Faculdade de Serviço Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, v. 18, ed. 45, p. 55-68, 1º semestre de 2020.
  3.  DEVULSKY, Alessandra. Estado, racismo e materialismo. Margem Esquerda: Revista da Boitempo, São Paulo, ed. 27, outubro de 2016.
  4. ALMEIDA, Silvio de. Prefácio da edição brasileira. In.: HAIDER, Asad. A armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje. São Paulo: Veneta, 2019.
  5. GONZALEZ, Lélia. Racismo por omissão. In: Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020. 

FRASER, Nancy. Do neoliberalismo progressista a Trump – e além. Política & Sociedade, Florianópolis, v. 17, ed. 40, , p. 43-64, 2018


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