Camila Valadão: “se a esquerda não ocupar as ruas, quem ocupará será a extrema direita”
Uma entrevista com a deputada estadual Camila Valadão (PSOL Espírito Santo), recém integrada ao MES/PSOL, sobre sua trajetória de lutas e a situação política no estado
Bruno Magalhães: Muito obrigado pela entrevista companheira. Para começar, eu gostaria que você falasse um pouco sobre a sua trajetória política.
Camila Valadão: Eu sou assistente social de formação, mestrado e doutorado em política social, atuei como assistente social. Comecei a minha trajetória e a minha militância política ainda muito jovem no Partido dos Trabalhadores, eu me filiei com dezessete anos de idade e participei ativamente desde muito jovem.
Ainda no primeiro mandato do Lula eu fiz parte da leva de militantes que saíram do PT na época após a formação da antiga APS (Ação Popular Socialista). Fui integrante da Força Socialista, a corrente anterior ainda dentro do PT, participei desse processo de transformação da Força na APS e então entrei no PSOL em 2005. Militei no partido no movimento estudantil, fui de centro acadêmico de serviço social, fui do DCE da Universidade Federal do Espírito Santo, Depois, formada como assistente social, comecei uma militância na área dos direitos humanos, fui integrante do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, que no caso do Espírito Santo teve uma atuação sempre muito importante na denúncia de violação de direitos do sistema prisional. O Espírito Santo já respondeu nas cortes internacionais por violação de direitos, e tivemos uma atuação muito forte contra o crime organizado.
A Scuderie Le Cocq era do Espírito Santo, não?
Exatamente. Então a atuação dos direitos humanos vem lá atrás, essa é anterior à minha atuação política, mas a luta dos direitos humanos no Espírito Santo foi uma luta muito forte, muito reconhecida em virtude disso. Depois de formada eu integrei o Conselho Estadual de Direitos Humanos, fui presidenta do Conselho Regional de Serviço Social, portanto com essa militância no âmbito da categoria profissional, e sempre continuei atuando no PSOL. Fui da Executiva Estadual, tive oportunidade de integrar a primeira geração de mulheres da Executiva Nacional do PSOL após a aprovação da paridade.
Na época o que o congresso [do PSOL] aprovou não era paridade ainda, eram os 30% de mulheres na direção. Eu integrei a Executiva na época como parte do Enlace e a representação que foi um grande aprendizado, um amadurecimento político meu dentro do PSOL, mas não tinha sido candidata ainda. Em 2014, decidimos no âmbito do partido estadual a importância de ter uma candidatura ao governo do estado que fosse uma candidatura de uma mulher negra e jovem, então apresentamos o meu nome.
Eu tinha 29 anos na época, fazia trinta no meio da campanha. Do pleito eleitoral, na época, fomos inclusive uma das candidaturas mais jovens do Brasil ao governo do estado e apresentamos uma campanha na raça e na militância, por assim dizer, com debates importantes porque a gente teve nessa eleição aquela histórica polarização do nosso estado, Paulo Hartung (PMDB) e Renato Casagrande (PSB). Casagrande inclusive é o atual governador hoje . Então a gente lançou uma candidatura para botar o dedo na ferida e com todas as contradições, eu acho que a gente conseguiu cumprir bem esse papel.
Em 2016, eu fui candidata a vereadora na cidade de Vitória. Fui a 5ª mais votada, mas não entrei devido ao coeficiente eleitoral. Em 2018, fui candidata à deputada estadual, fiquei entre os trinta mais votados, no Espírito Santo são trinta deputados estaduais, mas não entramos também pelo coeficiente. Em 2020, fui eleita vereadora na capital como a primeira mulher negra eleita para cidade de Vitória.
Nunca se tinha elegido uma mulher negra em Vitória? A primeira foi só em 2020?
Na capital? Exatamente. É uma cidade, um estado extremamente conservador, racista, machista. Falamos muito disso, que nossa vitória era por si só um instrumento de denúncia de como [funciona] o sistema político capixaba. No país todo, mas aqui no estado é uma reprodução muito fiel desse sistema racista, patriarcal e, enfim, velho também, no sentido de ele não tem muito espaço para jovens lideranças. E eu fui a segunda mais votada da cidade de Vitória, então chegamos com o pé na porta na Câmara Municipal, com uma votação muito expressiva
Foi uma grande surpresa, inclusive para vários setores da esquerda que não acreditavam que o PSOL pudesse eleger. Foi a primeira cadeira, o primeiro mandato do PSOL no estado do Espírito Santo. Até então, o PSOL nunca tinha elegido nenhum parlamentar no estado e, com a nossa vitória na Câmara, eu acho que conseguimos ter uma projeção para todo o estado no sentido de evidenciar o potencial de um mandato parlamentar de um partido como o nosso. Um partido que tem bandeiras, princípios, projeto, muito firme, que não se vende, que não tem rabo preso.
E, mais do que isso, com a capacidade de intervir politicamente, de servir como espaço para ecoar a luta dos movimentos sociais. E então entramos num contexto em que a extrema direita elegeu a prefeitura da cidade de Vitória. Um prefeito bolsonarista, com DNA bolsonarista, e a gente na Câmara como um dos poucos, eram só dois mandatos na oposição, o nosso e de uma vereadora do PT. Era um cenário muito isolado na Câmara Municipal, de muito boicote.
São quantos vereadores na Câmara de Vitória?
Quinze vereadores ao total e só duas na oposição. Mesmo com todo o boicote, conseguimos fazer um estrago, no sentido de sermos uma oposição firme e com muita capacidade de mobilização. Acho que o nosso mandato foi reconhecido como um mandato dos movimentos do serviço público, que visitava os lugares da cidade, que denunciava a retirada de direitos, as atrocidades. Era um mandato de confiança também, com uma atuação muito ética, recebendo denúncias e conseguindo formalizar isso de uma maneira muito ética e respeitosa. Foi um mandato muito respeitoso com o serviço público. Eu acho que isso também foi uma marca.
E um outro aspecto em que o nosso mandato ficou reconhecido foi no enfrentamento da extrema direita, sem medo e sem se curvar. Esse enfrentamento nos custou inclusive muita violência política de gênero nesse enfrentamento aos bolsonaristas, então o nosso mandato também ficou reconhecido como esse traço. Eu sofri vários episódios de violência política de que ficaram muito marcadas demonstrando a virulência do do bolsonarismo no estado e também essa violência no parlamento contra as mulheres parlamentares jovens e negras.
Uma delas foi no primeiro ano do mandato, um questionamento sobre o uso da minha roupa no dia 8 de março que ganhou uma repercussão nacional. No dia seguinte ao ato, o movimento de mulheres foi para a porta da Câmara, todas as mulheres com a blusa de um ombro só, assim como eu estava vestida. Uma outra agressão que sofremos, que também resultou em um ato público dos movimentos de mulheres, foi um dia quando esse mesmo vereador me mandou calar a boca e a gente começou uma discussão muito violenta que quase resultou em agressão física. Então, aconteceu a mesma coisa, foi convocado um ato pelos movimentos sociais na porta da Câmara. E aí ficou também esse marco como uma [parlamentar] que não anda sozinha, sabe? Um mandato que está lá e que representa muita gente.
Foi nesse contexto que a gente lançou a nossa candidatura para deputada estadual na eleição passada. Acreditando que a gente tinha todas as condições de ampliar a representatividade do PSOL do Espírito Santo. E tivemos uma votação surpreendente, fui a mulher mais votada da história do Espírito Santo e chegamos como a 4ª candidatura mais votada da Assembleia Legislativa, desbancando políticos de famílias muito tradicionais do estado. O que fez a gente chegar na Assembleia também num contexto de muito respeito pela nossa trajetória, pelo nosso mandato.
E qual é o cenário da Assembleia Legislativa do Espírito Santo hoje?
Eu acho que temos um cenário bem diferente da Câmara Municipal porque hoje na Assembleia a oposição dura é [feita pela] direita, é um governo do PSB como vice do PSDB, é um governo que fizemos campanha no 2º turno das últimas eleições exatamente porque do outro lado era a candidatura do PL. Então fizemos campanha para o atual governador porque era um contexto de uma campanha do PL, de um candidato extremamente negacionista.
Mas a gente mantém independência na Assembleia. A oposição ao governo hoje é feita pela extrema direita bolsonarista, mas a gente mantém uma relação de total independência em relação ao governo. Não integramos o governo, não integramos o bloco do governo na Assembleia, mantemos uma relação de independência porque é a melhor relação para a luta dos trabalhadores do serviço público
E sobre a conjuntura estadual? Quais são as principais lutas hoje no estado?
O Espírito Santo ele é um estado extremamente conservador do ponto de vista das pautas morais, digamos assim, o que significa que aqui a gente tem sempre pulsando lutas em defesa dos direitos das mulheres, do povo negro, LGBTQIAPN+, e para além disso a gente tem uma lógica do ponto de vista econômico que é uma lógica de um estado que explora ao máximo de recursos naturais. Temos, por exemplo, na região norte a cultura de eucalipto, o crime da Vale do Rio Doce em Mariana nos impactou também porque o rio deságua no nosso litoral. E a gente tem comunidades tradicionais nessa região impactadass por esses grandes projetos econômicos de exploração de recursos e da natureza.
Então temos um mandato muito conectado com essas lutas e eu destacaria alguns movimentos, como eu já disse até agora. Uma é essa pauta mais vinculada aos direitos humanos e, para além disso, o mandato acompanha muita discussão de quilombolas, a discussão indígena e de comunidades quilombolas. O debate ambiental aqui é um debate muito difícil, nós apresentamos algumas semanas atrás um projeto de lei que inclusive vem sendo debatido em vários outros locais do país sobre a proibição de pulverização de agrotóxicos e temos vivido uma reação virulenta da direita e do agronegócio com mobilização, articulação de eventos, enfim, como a gente não viu em nenhuma outra proposição. O que significa que a gente está tocando na ferida.
E também obviamente a defesa dos direitos de servidores públicos, que é uma luta que sempre pulsa aqui, além dos demais direitos sociais. Por exemplo, a gente está acompanhando agora a discussão em torno de fechamentos de escolas a partir do processo de municipalização do ensino fundamental, então temos apoiado bastante essas lutas de comunidades contra fechamento de escolas. Eu acho que esses são os nossos principais eixos de atuação.
Para encerrar, você recentemente se juntou às fileiras do Movimento Esquerda Socialista (MES/PSOL). Quais são suas perspectivas nessa nova etapa, tanto do ponto de vista estadual como do nacional?
Ótimo. Primeiro eu acho importante falar da minha felicidade de integrar uma organização que sempre esteve muito firme nos posicionamentos em relação a independência do nosso partido, no sentido de um partido conectado com as necessidades do anseio da classe trabalhadora e dos movimentos sociais. Esse inclusive foi um dos eixos fundamentais da minha escolha para ingressar no MES. Desde que estou no PSOL, sou militante de correntes e defendo a dinâmica partidária no sentido de ter diferentes organizações e vertentes. A minha escolha foi exatamente por entender que estamos num novo momento da conjuntura e precisamos de um partido forte e independente, com capacidade de ecoar a luta dos e das trabalhadoras sem se curvar aos interesses que hoje estão colocados no âmbito do governo federal.
É óbvio que a luta e enfrentamento contra a extrema direita continua, é uma luta fundamental nossa, mas eu entendo que para que essa luta seja efetiva, para que a gente consiga derrotar a extrema direita, nossa independência política também é fundamental. Portanto, eu acredito na capacidade de travar esse debate para que nosso partido seja um partido independente também para contribuir no processo de organização das lutas da classe trabalhadora, e é fundamental essa luta nesse próximo período. Se a esquerda não ocupar as ruas através de mobilizações, senão quem ocupará será a extrema direita.
Eu acredito que derrotar a extrema direita passa hoje pela nossa capacidade de luta e de organização, não pela nossa capacidade de silenciamento. Diante de tudo que acontece no âmbito do governo e dos outros espaços da sociedade também. Então a minha expectativa nesse processo é poder contribuir para que essa organização esteja muito conectada com essas lutas, que seja uma organização ainda mais ampla, ainda mais forte, ainda com mais capacidade de formular politicamente e de intervir em diferentes partes da sociedade.Eu tenho uma trajetória formada na luta das mulheres e do povo negro e quero contribuir com esses debates. O debate racial para nós é fundamental, o debate das mulheres e também o debate ecossocialista, eu sou totalmente convencida da importância e da necessidade do ecossocialismo.
O último aspecto que foi muito importante na minha definição é o caráter internacionalista. Eu acredito num processo de construção revolucionária e acredito numa revolução internacional. E, por isso, eu acho fundamental que organizações tenham essa perspectiva pensando a luta de classes para além da menção circunscrita à esfera de um país. Precisamos ter essa capacidade de articulação com as lutas internacionais de solidariedade de classe internacionalmente, acompanhar o movimento da luta também da IV Internacional. Eu acho que esses foram os principais motivos e por isso a minha expectativa de contribuir com essa organização e a minha felicidade também de estar a integrando nesse momento.