Guerra é o pior negócio, exceto para assassinos
Este é um esplêndido negócio, protegido por silêncio e cumplicidades, visível nos países europeus da NATO, que em 10 anos aumentaram as despesas militares de €145 mil milhões para €215 mil milhões
Via Esquerda Net
Foto: Haitham Imad/EPA
Se já se perguntou se algum Governo do mundo poderia atacar impunemente um outro país e em dois meses assassinar quase 20 mil pessoas, na maioria crianças e mulheres, liquidar mais de uma centena de funcionários da ONU e expulsar os seus representantes, tomar como alvo jornalistas e prender médicos, destruir hospitais e escolas — se já fez essa pergunta é porque sabe a resposta. Só Netanyahu tem o direito de dirigir uma coligação racista para exterminar sistematicamente um povo, conseguindo para isso o financiamento e o armamento dos mais poderosos governos, a começar pela Casa Branca. A guerra tornou-se o seu instrumento de extermínio e prossegue implacavelmente a espiral de destruição. O terrorismo tem hoje um farol no mundo, é Netanyahu.
Saramago escreveu, tanto tempo antes desta orgia de morte, que “um dia far-se-á a história do sofrimento do povo palestiniano e será um monumento à indignidade e cobardia dos povos”. Talvez não pudesse imaginar os abismos de indignidade a que estamos agora a assistir.
As duas vitórias de Netanyahu
O Governo de Telavive conseguiu duas vitórias expressivas. A primeira, que tem a atenção dos produtores de tecnologia militar, é a experimentação de novos instrumentos de destruição. O mais destacado será o sistema de inteligência artificial chamado perversamente “Habsora”, ou “Evangelho”, que seleciona os alvos para os bombardeamentos.
Segundo um estudo da Associated Press, durante a guerra de 2014, que durou 51 dias, foram atingidos 6 mil objetivos, provocando 89% de mortes de civis, incluindo em 20 famílias, que perderam mais de 10 membros. Agora, só no primeiro mês de combate foram destruídos 15 mil alvos e, segundo a ONU, cerca de um quinto das vítimas estão em 312 famílias, que perderam mais de 10 dos seus membros. Ora, a determinação dessa mortandade cria alguma hesitação entre os militares ocupantes, que sabem melhor do que ninguém que estão a cometer crimes de guerra e a matar por um critério xenófobo: o palestiniano deve morrer. Por isso, a transferência da decisão para uma máquina retira a agência humana, despessoaliza o míssil e permite multiplicar a violência da ofensiva. Netanyahu está a usar o que pode vir a ser uma das principais armas do futuro, e os comerciantes da guerra estão maravilhados com a inovação.
A segunda vitória, talvez uma meia vitória, é a submissão de alguns governos ocidentais à invocação de um “direito de defesa” que proclama a legalidade do genocídio e culpabiliza quem se lhe oponha como promotor de “discurso de ódio”. Uma professora de Direito da Universidade de Chicago, Genevieve Lakier, denunciou esta lógica como macarthista. O caso mais célebre desse mecanismo de censura foi a proibição da escritora Adania Shibli na Feira de Frankfurt ou a interdição de manifestações pró-Palestina em França. No entanto, manda a verdade dizer que se impuseram manifestações em França e que a cultura palestiniana é mais escutada, como um sinal da resistência à atrocidade. O que isto sublinha é como o conflito se faz também na opinião pública.
Depois da violência do ataque do Hamas em 7 de outubro, que vitimou cerca de 840 civis e 350 soldados, levou à captura de 240 reféns e, segundo os Médicos pelos Direitos Humanos de Israel, a crimes sexuais, não estamos a assistir a uma vingança nem muito menos à defesa de Israel. Estamos a olhar para a banalização do terror, à terraplanagem de um país em nome de um objetivo impossível, pois nenhuma paz dos cemitérios resolverá o conflito do Médio Oriente, nem tal é pretendido por Netanyahu, que quer a guerra como forma de sobrevivência no seu julgamento por corrupção e como cimento para o Governo que escolhe a morte como bandeira.
E entretanto o negócio da morte
Guerra em Gaza, guerra na Ucrânia, extensão da NATO, tensões no mar do sul da China — este é o paraíso para a venda de armas. Mas nem isso explica que hoje o investimento em armamento supere o do tempo da Guerra Fria, quando a confrontação planetária era uma ameaça. A razão é outra: este é um esplêndido negócio, protegido por um biombo de silêncio e cumplicidades, visível nos países europeus da NATO, que em 10 anos aumentaram as despesas militares de 145 mil milhões de euros para 215 mil milhões de euros, triplicando a importação de armas (metade dos EUA).
Ora, este bom negócio é uma má escolha para os europeus. Um estudo publicado nas últimas semanas por uma equipa das universidades de Florença, Milão e Newcastle, dirigida por Mario Pianta, “Arming Europe”, indica que entre 2013-2023 o produto real da União aumentou 12%, o emprego 9% e a despesa com armas 46% (ver, no gráfico, o detalhe de alguns países). O problema é que as armas destroem e não criam: no caso de Itália, estes académicos estimaram o efeito no produto de 1 euro de despesa militar, que é de 0,7 euros, ao passo que 1 euro em saúde, educação e ambiente gera uma variação de 1,9 euros. Para viver melhor é melhor investir na vida do que na morte.
*Artigo publicado no jornal “Expresso” a 15 de dezembro de 2023