24 de Março: uma jornada histórica, massiva e combativa na Argentina
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24 de Março: uma jornada histórica, massiva e combativa na Argentina

Mais de um milhão de pessoas ocuparam as ruas de todo país na manifestação do Dia da Memória. Ato fez frente ao governo Milei, negacionista da ditadura

Israel Dutra 26 mar 2024, 11:07

Foto: Opinando San Nicolás

Centenas de milhares de argentinos ocuparam a Praça de Maio e seus arredores na manifestação do dia 24 de Março, Dia da Memória. O ato foi replicado nas províncias do interior, com multidões rememorando os 30 mil desaparecidos durante a ditadura. Foi a maior manifestação política da história recente da Argentina. 

Estive presente acompanhando a marcha ao longo do dia. O dia estava incrivelmente lindo. Ensolarado, após duas semanas de chuvas intensas. O calor recorrente arrefeceu um pouco. Senti a polarização, ao vivo, que envolve milhões; e uma energia combativa na disposição dos que estavam nas ruas. 

Já que estamos tratando de memória, afirmaria que foi inesquecível para quem esteve. 

Um governo em defesa dos genocidas 

A Argentina vive sua maior crise em décadas. A expressão máxima dessa crise é o governo de Javier Milei e Victoria Villaruel, negacionistas da ditadura, que aplicam um plano de guerra contra o povo e querem caminhar para um regime mais autoritário.  

Horas antes da manifestação, o governo divulgou um vídeo institucional escandaloso. Uma verdadeira provocação que insistia na tese negacionista de que não houve 30 mil desaparecidos. 

O vídeo, produzido dentro da Casa Rosada, tem 12 minutos e discute uma nova perspectiva sobre a ditadura, que teve início com o golpe de estado de março de 1976. 

O escritor negacionista Tata Jofre clama por “memória completa”, utilizando o depoimento da filha do militar Humberto Viola como suposta “vítima” do terrorismo do ERP.  O governo, que chega a cogitar nos bastidores o abrandamento da pena dos genocidas, afirma que os organismos de Direitos Humanos fazem “negócios” com a memória histórica. O vídeo, sem dúvidas, foi a maior declaração oficial em prol da ditadura e dos genocidas que se tem notícias na Argentina desde que caiu a junta militar, em 1983. 

A tensão evidente já se fez notar antes da divulgação do vídeo. A invasão do apartamento de uma militante de Hijos, grupo destacado na defesa dos direitos humanos, seguida de agressão física e sexual, foi uma terrível notícia, relativizada pelo governo. Um ataque bárbaro que recordou o pior dos porões da ditadura, deixando os escritos VLLC, “Viva La Libertad, Carajo”, consigna utilizada por Milei e seus seguidores. 

O vídeo foi contestado por diferentes setores da sociedade civil e levou a um embate público entre a titular das Abuelas de Praça de Maio, Estela Carlotto, e a vice-presidente, Victoria Villaruel. Carlotto conclamou a multidão a fazer “algo para que Milei mude ou se vá o mais rápido possível”. Villarruel respondeu a Estela: “Você não teve votos, Milei sim”. Vale registrar que Villaruel se projetou em carreira política como porta-voz do negacionismo histórico e dos interesses dos genocidas e suas famílias. Ainda que tenha mostrado distância em certos aspectos de Milei, o tema da revisão da memória histórica os une. 

Milei defende o processo de 1976 para impor uma derrota histórica à classe trabalhadora e reordenar uma Argentina a serviço da superexploração dos trabalhadores por parte das grandes corporações. 

A provocação, gravíssima, foi respondida com a confirmação do 24 de Março de 2024 como um dos maiores atos da história da Argentina. Com caráter nacional, com ampla extensão. Foi uma jornada histórica, pois marcou um antes e um depois, sendo um salto na resistência a Milei. Massiva e combativa, por sua composição e disposição para ir até o fim na luta. 

Uma espiral de resistência e esperança 

A jornada massiva pautou a sociedade como um todo. O que se sentia no ar era a combinação de um espírito de combate intransigente e uma enorme esperança que a multidão sentia ao ver se reunida. Ao longo de todo dia, no entorno da praça de Maio, houve duas concentrações distintas mas que, na prática, se tornaram um ato só e gigantesco. Centenas de milhares de pessoas, gente de todas as idades, levaram suas faixas, bandeiras, recordações e lenços. Alguns meios de comunicação falam em 400 mil pessoas no auge da primeira concentração, entre o final da manhã e o início da tarde, que se combinariam com as cerca de 200 mil estimadas na parte da tarde. Ou seja, tomando os números nacionais, superou a marca de um milhão de pessoas em todo país. 

Os jornais da segunda-feira falavam em 200 mil pessoas em Córdoba, de 30 a 40 mil pessoas em Mar Del Plata e Santa Fé. Nas outras cidades e províncias, informes e vídeos atestavam que eram as maiores manifestações políticas desse caráter na história de muitos. Para usar o exemplo, em Salta, no norte do país, as notícias que chegaram era de que a manifestação cobriu 25 quadras completas. 

O ato mostrou amplitude. A CGT, principal central sindical do país, de caráter burocrático e colaboracionista, foi obrigada a ser parte da convocatória. Figuras relevantes, da centro-direita, como Martin Losteau (Presidente Nacional da UCR), e Horácio Larreta, que foi o candidato derrotado nas prévias por Patricia Bullrich, estavam lá.

Contudo, o mais expressivo foi a disposição de centenas de milhares de enfrentar e derrotar Milei e seus planos. O impacto das reservas democráticas se sentiu para além das ruas. Nas redes, na esfera pública, com inúmeros artistas, referentes sociais e mesmo jogadores e clubes de futebol. O campeão mundial Lisandro Martinez defendeu “Memória, Verdade e Justiça. Nunca Mais” nas redes sociais. 

A esquerda cumpriu um papel muito importante. As colunas da FITU foram nutridas, especialmente a do MST. No ato da manhã, uma das maiores colunas foi a do partido Libres del Sur. A existência de dois atos distintos, ainda que não tenha tido impacto real no que foi a jornada, é um sintoma das dificuldades.  Há um clima muito combativo após o dia 24. Pode ser um ponto de inflexão na luta contra o governo dos genocidas.  

Um choque entre dois países 

Milei, em aliança com os grandes capitalistas e com o imperialismo, precisa derrotar o projeto de país vigente. A derrota profunda da ditadura em 1982/83 e o levante popular de 2001 foram elementos constitutivos das mediações institucionais da atual Argentina. Ainda que estejam dentro dos marcos de um capitalismo dependente, o setor de Milei precisa destruir essas relações de força para impor seu projeto. 

Sua proposta leva ao choque entre dois países. A coalizão ao redor de Milei prepara um conjunto de leis para aprovar o ajuste, chegar à dolarização, abrir as portas para a exploração sem limites dos recursos naturais e retirar todos os direitos dos trabalhadores. 

A outra Argentina se expressou nas ruas ontem. E está se expressando nas inúmeras lutas que estão em curso: aposentados, professores, os setores da cultura, piqueteiros, movimento de mulheres e a juventude que começa a se levantar enquanto setor. 

O ato do dia 24 foi o terceiro grande momento nacional de lutas contra o governo. Após as mobilizações do final do ano, que desafiaram o protocolo antipiquete, se pode falar em três grandes atos: a greve geral de 24 de janeiro, a manifestação feminista de 8 de Março e agora, o 24 de março. Batalhas foram dadas nas ruas nos dias das votações dos planos de Milei, que resultaram num certo impasse parlamentar. Milei não conseguiu aprovar nem a sua chamada “Lei ônibus” nem seu decreto de urgência. 

O impasse segue. Uma pesquisa publicada pelo Clarín, mostra que Milei já tem uma maioria que desaprova seu governo. Seriam cerca de 60% repudiando o governo, com 40% em seu apoio. Um número ainda alto, por óbvio, mas muito longe de qualquer presidente com menos de seis meses de mandato.  

30 mil presentes! Em defesa da memória, verdade e justiça para derrotar Milei


A Argentina é ponto concentrado da luta entre a extrema direita e a resistência popular. É um laboratório para todo continente. A jornada do 24 fortaleceu e deu confiança para os setores mais avançados possam cumprir com a orientação de Estela Carlotto, das Abuelas. Parar a mão de Milei e preparar a luta para derrotá-lo. O passo seguinte é unificar as lutas, como se ouviu na praça, no chamado à greve geral que deve se materializar nas próximas semanas, apesar do bloqueio da burocracia sindical. 

E com essa gana, os argentinos deram uma aula em defesa da memória, verdade e justiça, refutando as teses de Milei. Esse merece a lata do lixo da história. Os 30 mil desaparecidos, verdadeiros mártires da luta do povo latino-americano, estão presentes. 

A batalha recém começa. 


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Pedro Micussi