Ilan Pappé escreve em memória de Aaron Bushnell
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Ilan Pappé escreve em memória de Aaron Bushnell

Uma homenagem ao militar estadounidense que deu sua vida em protesto contra o genocídio em Gaza

Ilan Pappé 8 abr 2024, 17:11

Foto: Fatih Aktas/Anadolu

Via The Palestine Chronicle

Esperamos que um dia, em uma Palestina libertada, haja uma rua em homenagem a esses jovens corajosos que ensinaram ao mundo que o que está acontecendo na Palestina é uma injustiça intolerável.

Em 13 de março, ficamos sabendo do sacrifício do piloto americano Aaron Bushnell em solidariedade a Gaza e à Palestina. Aaron era um especialista em operações de defesa cibernética da Força Aérea dos EUA que morreu aos 25 anos de idade devido aos ferimentos sofridos quando ateou fogo em si mesmo em frente à embaixada israelense em Washington. O exército e a polícia dos EUA transmitiram condolências oficiais à família, mas não mencionaram o histórico de Aaron ou a causa pela qual ele estava disposto a morrer.

Na melhor das hipóteses, a ação foi descrita como um “evento trágico”. O Pentágono explicou que o protesto de Aaron era contra a guerra em Gaza e ignorou sua mensagem principal: que ele estava culpando os EUA por sua cumplicidade no genocídio. Espero que a maioria de nós não fique satisfeita com a resposta oficial. Se o fizéssemos, estaríamos desrespeitando o protesto determinado desse jovem e, nesse caso, seu sacrifício teria sido em vão.

O fato de Aaron Bushnell ter usado um uniforme militar e transmitido ao vivo seu ato heroico de sacrifício na Internet não foi por acaso. Como “membro do serviço ativo”, ele escreveu: “Não serei mais cúmplice de um genocídio”.

Palestina livre

Essa foi sua principal mensagem antes de se borrifar com um líquido transparente e atear fogo em si mesmo ao grito de “Palestina Livre”. Na mensagem antes da ação, ele escreveu: Estou prestes a realizar um ato extremo de protesto, embora, comparado ao que o povo da Palestina está vivenciando nas mãos de seus colonizadores, não seja nada extremo.

Escrevo este artigo com cautela, tomando cuidado para não parecer um incentivo para que outros cheguem a tais extremos, mas acho difícil não admirar a bravura de Aaron, reconhecida pelo movimento de resistência de Gaza, que elogiou o piloto americano, afirmando que:

Ele imortalizou seu nome como defensor dos valores humanos e do povo palestino em face de sua trágica condição de opressão pela administração dos EUA e suas políticas injustas.

Uma mensagem importante

A mensagem de Aaron é simples e clara: os EUA são cúmplices do primeiro genocídio televisionado dos tempos modernos. E se você serve na administração ou nas forças armadas dos EUA, você também é cúmplice. O local físico em que a cumplicidade se traduz em colaboração real é a embaixada israelense em Washington, e é por isso que Aaron escolheu protestar lá.

Há outras partes da mensagem de Aaron que precisam ser reiteradas, pois nos levam a ecoá-la.

Aaron se perguntou se as pessoas decentes deveriam ter ficado caladas durante a escravidão nos EUA ou durante o Apartheid na África do Sul. Ou em qualquer lugar do mundo, ao longo da história, onde pessoas sacrificaram vidas lutando por justiça.

Aaron não podia impedir a cumplicidade dos EUA com o genocídio, mas esperava que isso não passasse despercebido.

Mas não é apenas a mensagem de sacrifício de Aaron que é crucial. Sua pessoa era igualmente importante. Aqueles que o conheceram se lembram dele por “sua bondade, gentileza e consideração”. Um amigo disse aos repórteres que ele era “o garoto mais gentil, atencioso e inocente da Força Aérea” e “um dos camaradas com mais princípios”. No dia anterior à sua autoimolação, ele enviou um último desejo a um amigo, deu seu gato a um vizinho e deixou um registro de que sua geladeira estava cheia para que eles pudessem aproveitar.

Precisamos de você

É importante saber quem foi Aaron porque há uma tendência de rotular jovens como ele como loucos, fanáticos ou cabeças quentes. A verdade é que Aaron era uma pessoa sã que se sentia impotente diante do fato de fazer parte de uma instituição cúmplice do sofrimento dos palestinos. Ele era uma pessoa sensível que sacrificou sua vida na esperança de enviar uma mensagem.

Precisamos pedir a todos que não adotem medidas tão extremas: precisamos deles nas ruas e nos protestos. Precisamos que eles se demitam de seus cargos e empregos para mostrar sua humanidade diante de um genocídio que é televisionado para nós a cada hora e que ainda continua.

Aaron estava pronto para enfrentar os futuros desafios da vida. Ele estava se formando em engenharia de software na Western Governors University. Ele também estudou desenvolvimento de software na Southern New Hampshire University e ciência da computação na University of Maryland Global Campus, de acordo com informações em seu perfil no LinkedIn.

A grande mídia dos EUA perguntou como era possível que um jovem que adorava O Senhor dos Anéis e karaokê pudesse fazer algo tão extremo. Eles chamaram isso de mistério. Para eles, a resposta não era a Palestina, mas seu relacionamento com um grupo religioso, uma seita à qual ele pertencia quando criança e que supostamente maltratava seus membros. A explicação dada pela mídia dos EUA foi que, quando se deixa um grupo muito unido, é difícil se integrar a outro. Isso pode ser verdade, mas ainda não explica o ato de sacrifício de Aaron. Ele não fez isso porque era uma alma perdida.

Pelo contrário, o fato de ter sofrido injustiças o levou – nas palavras de pessoas próximas a ele – a tentar “defender aqueles que não são cuidados ou que não podem se defender sozinhos”. É por isso que ele decidiu se tornar um ativista social por causas justas.

Aaron não está sozinho

A grande mídia dos EUA se recusa a aceitar a percepção de Aaron e de muitos outros jovens americanos de que a injustiça na Palestina é igual à injustiça sofrida pelos escravos nos EUA ou pelas vítimas do imperialismo americano no Vietnã.

Mas cada vez mais jovens americanos estão se conscientizando de que as políticas de seu país são um dos principais motivos do sofrimento contínuo do povo palestino. Muitos mais de agora em diante.

Aaron não era um observador superficial. Ele não se sentia à vontade nas forças armadas e, após o assassinato de George Floyd, começou a pesquisar a história da violência infligida pelos EUA tanto em casa – contra seus próprios cidadãos – quanto em todo o mundo, contra terceiros.

Seu exame de consciência o levou a considerar a possibilidade de deixar as forças armadas. Seu sonho de uma carreira estava intrinsecamente ligado ao seu desejo de ganhar dinheiro suficiente para ajudar as causas justas em que acreditava.

Não só não devemos nos esquecer de Aaron.

Ainda não sabemos o nome e a identidade da corajosa mulher que se incendiou em frente ao consulado israelense em Atlanta em dezembro passado. Nesse caso, uma bandeira palestina também foi encontrada no local.

Aaron nos lembra de Norman Morrison, que fez o mesmo em frente ao escritório de Robert McNamara, o político sênior dos EUA responsável pelo caos causado no Vietnã em meados da década de 1960.

E houve outros nos EUA, como Wyne Alan Bruce, que se incendiou em abril de 2022 em Washington, no Dia da Terra, como uma expressão de protesto contra a inação internacional diante das catástrofes ambientais e das mudanças climáticas.

E além dos EUA, todos nos lembramos de Thich Quang Duc, o monge budista que se incendiou em 1963 em protesto contra a perseguição pró-EUA aos monges budistas no Vietnã do Sul.

E também nos lembramos de Mohamed Bouaziz, o vendedor de alimentos tunisiano que, em seu ato de sacrifício, deu início ao que é conhecido como Primavera Árabe.

Indo mais a fundo, fiquei surpreso ao saber que quase ninguém nas forças armadas dos EUA expressou qualquer preocupação, muito menos críticas, ao envolvimento dos EUA no genocídio israelense em Gaza. Portanto, podemos entender como Aaron deve ter se sentido sozinho. Gostaria que todos nós pudéssemos ter falado com ele para que soubesse que sua experiência seria muito útil para a causa em que todos nós acreditamos. O mínimo que podemos fazer agora é nos lembrarmos dele.

Esperamos que um dia, em uma Palestina libertada, haja uma rua para homenagear esses jovens corajosos que mostraram ao mundo que o que está acontecendo na Palestina é uma injustiça intolerável.


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Pedro Micussi