Descobrindo a multidimensionalidade de Marx
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Descobrindo a multidimensionalidade de Marx

Uma análise sobre a obra “Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais”, de Kevin Anderson

Jaime Pastor 21 maio 2024, 10:54

Via Viento Sur

O livro analisado abaixo tem sua versão em português, “Marx nas margens: nacionalismo, etnias e sociedades não ocidentais”, publicado no Brasil pela Boitempo Editorial. Para mais informações, consulte o site da editora.

A recente publicação em espanhol dessa obra pela Verso, originalmente publicada em inglês em 2010 e depois em 2016, é uma notícia muito boa. Ela ajuda a tornar disponível para o mundo de língua espanhola um ambicioso trabalho de pesquisa sobre os escritos de Marx durante o período de 1869 a 1883, prestando atenção especial àqueles que incluem suas notas e comentários sobre sociedades não ocidentais e pré-capitalistas, embora também se refira a períodos anteriores. Lembremos que até recentemente, quando surgiram muitas contribuições interessantes sobre esse período (como as de Marcello Musto ou Álvaro García Linera), dificilmente poderíamos contar em espanhol com a edição de 1988 da Siglo XXI de Los apuntes etnológicos de Karl Marx, de Lawrence Krader, ou a edição de 1990 da Editorial Revolución de El Marx tardío y la vía rusa, coordenada por Teodor Shanin.

Kevin B. Anderson pertence a uma corrente singular dentro do marxismo, a Organização Internacional Marxista-Humanista, cujas referências incluem Raya Dunayevskaya (autora, entre outras obras, de Rosa Luxemburg, Women’s Liberation and the Marxist Philosophy of Revolution) e C. L. R. James (cuja obra mais conhecida é Os Jacobinos Negros), sem esquecer a influência que Frantz Fanon e W. E. B. Du Bois tiveram na evolução pessoal do autor.

Nessa obra, ele concentra sua atenção, entre outros assuntos, na evolução das reflexões de Marx sobre a questão nacional na Irlanda e na Polônia; nos artigos sobre a Guerra Civil na América; no papel que a comuna camponesa pode desempenhar na Rússia dentro de um projeto socialista; na sua preferência pela edição francesa de O Capital de 1872-1875 escrita por Marx, que lhe permite esclarecer certas interpretações; e também seus cadernos etnológicos inacabados de 1879-1882 sobre formas agrárias e comunais na Índia, nas Américas, no norte da África e na Roma antiga, incluindo notas interessantes sobre gênero e família, nas quais também é possível encontrar diferenças com o que seu grande amigo Engels escreveria. É também uma contribuição relacionada à sua colaboração no projeto de publicação em andamento MEGA (Marx-Engels Gesamtausgabe) de 32 volumes, que lhe deu acesso a arquivos de escritos ainda não publicados.

Anderson argumenta, após essa jornada documentada, que, embora em um sentido diferente do que Althusser argumentou, é fácil demonstrar que houve uma evolução do Marx tardio em direção a uma concepção multilinear da história, nem determinista nem economicista e, ao mesmo tempo, muito distante da visão eurocêntrica que pode tê-lo caracterizado em estágios anteriores, principalmente com relação à questão colonial. Essa interpretação o leva a justificar a tese que defende no final de sua obra, segundo a qual.

“Marx desenvolveu uma teoria dialética da mudança social que não era nem unilinear nem exclusivamente baseada em classes. Assim como sua teoria do desenvolvimento social evoluiu em uma direção mais multilinear, sua teoria da revolução começou a se concentrar cada vez mais na interseção de classe, etnia, raça e nacionalismo. Para deixar claro, Marx não era um filósofo da diferença no sentido pós-moderno, já que a crítica de uma única entidade global, o capital, estava no centro da totalidade de seu projeto intelectual. Mas centralidade não significa univocidade ou exclusividade” (p. 369)1

Essa percepção de um Marx interseccional pode parecer muito brusca, mas acredito que há razões suficientes para considerar com Anderson que o conjunto dessas obras como um todo nos permite afirmar que o falecido Marx apontou para uma visão abrangente das diferentes formas de exploração, opressão e dominação, de um ponto de vista internacionalista e sempre centrado na crítica do capital.

Mas vamos dar um passo de cada vez. Anderson começa relembrando os primeiros escritos sobre o impacto europeu na Índia, Indonésia e China, sem negar a influência de Hegel sobre Marx em sua visão da inevitabilidade do colonialismo. Ele aborda as críticas desenvolvidas mais tarde, entre outros, por Edward Saïd, mas também as contrasta com o efeito que a rebelião Taiping de 1850-1864 na China e a rebelião dos “insurgentes” Sepoys em 1857 na Índia viriam a ter sobre Marx, após o que ele viria a escrever que “a Índia é agora nosso melhor aliado” (p. 88).

Suas reflexões sobre a Rússia e a Polônia também mudariam, pois Marx passou a reconhecer o papel da Polônia como um “termômetro externo da revolução europeia”, especialmente desde a insurreição polonesa de 1863. Isso fica evidente no discurso inaugural de Marx na fundação da Primeira Internacional, em 1864, e em sua polêmica com os proudhonianos e seu niilismo nacional.

Outro capítulo de interesse é o dedicado à Guerra Civil nos Estados Unidos, no qual ele enfatiza o forte apoio de Marx à luta pela abolição da escravidão, no contexto da qual ele passou a ver os afro-americanos como sujeitos potencialmente revolucionários (lembre-se também de sua afirmação de que “o trabalhador americano de pele branca não pode ser emancipado enquanto o de pele negra permanecer marcado a fogo”), embora mantendo algumas diferenças com Engels, por exemplo, com relação à Proclamação de Emancipação de Abraham Lincoln.

A questão da Irlanda também é tratada em profundidade, uma vez que Marx e sua família, assim como Engels, estiveram direta e ativamente envolvidos nela. Sua evolução sobre essa questão é mais conhecida, pois o levou a modificar sua posição inicial sobre a relação a ser estabelecida entre a luta pela independência irlandesa e a do proletariado inglês. Em 1869-1870, ele passou a argumentar que, dada a predominância do racismo entre os trabalhadores ingleses em oposição aos imigrantes irlandeses, deveria ser a luta do povo irlandês a “alavanca” da revolução na Inglaterra, e não o contrário.

Em relação às sociedades não ocidentais, Anderson observa como, em seus Manuscritos Econômicos de 1861-1863, Marx já reconhece a singularidade do modo de produção asiático em relação ao feudalismo ocidental e, em seguida, observa como “a perspectiva de Marx sobre o ‘sistema comunal asiático’ e suas aldeias havia evidentemente mudado em relação à insistência no ‘despotismo oriental’ e na letargia vegetativa que ele observou anteriormente” (p. 263). Essa evolução também se refletiria em sua rejeição de qualquer filosofia teleológica da história, como pode ser visto na atualização de Marx da edição francesa de 1872-1875 de O Capital: nela ele afirma que “O país mais desenvolvido industrialmente mostra apenas a imagem de seu próprio futuro àqueles que o seguem na escada industrial” (ênfase de Anderson) (p. 276). Assim, ele deixou de fora dessa concepção unilinear os países que não se enquadravam nessa estrutura, como a Rússia ou a Índia, e estava comprometido com uma visão multilinear da história, diferente daquela que poderia ser interpretada no Manifesto Comunista e em outros artigos seus sobre a questão colonial.

Assim, sob a influência dos escritos de Kovalevsky sobre as formas de propriedade comunal em particular, Marx passou a reconhecer o papel que elas desempenhavam em diferentes países, como Índia, Argélia, América Latina e, acima de tudo, Rússia. Assim, referindo-se à Rússia em sua conhecida correspondência com Vera Zasulich, mas estendendo suas reflexões a outras regiões, ele expressou sua esperança de que as comunas rurais fossem “pontos de partida para o desenvolvimento comunista”. No entanto, Anderson não deixa de ressaltar que Marx considera que, para que isso aconteça, elas teriam de estar ligadas às “incipientes revoluções da classe trabalhadora no desenvolvimento industrial ocidental” (p. 341).

Igualmente interessante é a referência aos seus escritos de 1879-1882 sobre a questão de gênero por meio de seus estudos sobre os povos indígenas, mas também sobre a sociedade romana e suas anotações sobre o trabalho de Morgan. Nessas notas, Anderson enfatiza como Marx analisa em termos dialéticos as formas alternativas de relações de gênero que existiam nessas comunidades, situando-as em suas respectivas épocas e evitando “idealizações simplistas”.

Essas obras como um todo fornecem, portanto, razões suficientes para apoiar a tese de que é possível encontrar em Marx a elaboração progressiva de uma “teoria dialética da mudança social que não era nem unilinear nem exclusivamente baseada em classes”.

No prefácio escrito para a edição em espanhol, Anderson também explica que, com esse livro, ele tentou “preencher a lacuna entre duas correntes”: a que se concentra na dominação de classe, por um lado, e a que luta contra outras opressões ou a destruição ambiental, por outro. Essa última dimensão, que certamente é fundamental nestes tempos de capitalismo de desastre, está fora do escopo deste trabalho, mas o autor não ignora sua relevância ao se referir a algumas contribuições sobre o assunto, especialmente as de Kohei Saïto, que, no entanto, não são isentas de controvérsia.

Não faltam exemplos da utilidade dessa visão multidimensional de Marx para que se possa abordar os conflitos e debates atuais com melhores ferramentas, superando as falsas oposições binárias. Esperemos, então, que esta obra não seja recebida como algo estranho às preocupações das novas gerações que hoje estão comprometidas em “repensar as lutas e a revolução” nestes tempos de emergência global, seja a partir do marxismo ou em diálogo com ele.2

  1. As citações são da edição em espanhol da Verso. ↩︎
  2. Para obter mais informações sobre esse livro e seu novo projeto, veja aqui. ↩︎

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