Lições da “Crítica do Programa de Gotha”
Karl-Marx

Lições da “Crítica do Programa de Gotha”

Uma contribuição para a leitura do texto marxista clássico de 1875 frente ao oportunismo estatal do século XXI

Bruno Magalhães 17 maio 2024, 12:39

Foto: Domínio Público

A Crítica do Programa de Gotha, escrita por Marx em 1875, é um de seus textos clássicos que mantém grande atualidade. Composto por um conjunto de comentários sobre o programa que seria apresentado no Congresso de Unificação dos Sociais-Democratas da Alemanha, realizado na cidade de Gotha no final de maio de 1875, a Crítica feita por Marx poucas semanas antes à proposta de documento fundacional do futuro Partido Operário Alemão é curta, porém muito densa.

Nela são tratados temas centrais como a relação entre o programa e a ação política, as perspectivas estratégicas dos partidos proletários, o definhamento do Estado burguês e a “libertação nacional”, o caráter da natureza como fonte de valor assim como o trabalho, entre outros.

Perante os grandes desafios dos revolucionários dos nossos dias, que enfrentam tanto a ascensão da extrema direita derivada da crise capitalista como as mesmas velhas demagogias dos oportunistas para responder a este cenário, voltar à Marx é uma tarefa imprescindível. E, nesse movimento de retorno, a releitura e a reflexão sobre a Crítica do Programa de Gotha nos ajudam bastante a indicar perspectivas para os desafios que vivemos. 

O contexto da Crítica

O documento aprovado no Congresso de Gotha representava o programa resultante da unificação dos dois partido operários alemães da época: a Associação Geral dos Trabalhadores Alemães, fundada por Ferdinand Lassalle, e o Partido Social-Democrata dos Trabalhadores, fundado na cidade de Eisenach por August Bebel, Wilhelm Bracke e Wilhelm Liebknecht (o pai do dirigente comunista assassinado com Rosa Luxemburgo).

Lassalle era filho de um próspero comerciante judeu e colaborou com Marx na Nova Gazeta Renana. Foi parte da revolução de 1848, sendo preso e inocentado no ano seguinte, e morreu num duelo em 1864 (mais de 10 antes do congresso realizado na cidade de Gotha). Ele nutria profunda confiança nas possibilidades da transformação social através do Estado e chegou até mesmo a buscar o chanceler Bismarck para alcançar, através da ação da monarquia prussiana, objetivos de seu programa como o sufrágio universal e a socialização da economia através do financiamento estatal de cooperativas.

Marx escreveu o texto à contragosto devido a sua deteriorada situação de saúde na época. Porém, perante a unificação, retomou o trabalho para criticar as fortes características lassallianas no esboço do programa que seria aprovado, que representavam um retrocesso perante o “programa de Eisenach” anterior. Além de alertar para tais erros do programa de Gotha, naquele momento Marx pretendia também se desvencilhar das críticas dos anarquistas pelas movimentações do grupo de Eisenach que eram atribuiam diretamente a ele.

O texto completo reúne tanto o próprio comentário de Marx sobre o esboço que seria apresentado, as Glosas marginais ao programa do Partido Operário Alemão, como cartas dele e de Engels à outros dirigentes sobre o tema. Apesar de suas intenções originais, seus comentários não circularam amplamente naquele momento devido ao receio de Liebknecht sobre como tais escritos poderiam atrapalhar a construção da unidade com os lassallianos. Mesmo que a publicação do texto tenha ocorrido somente décadas depois (em 1891), sua Crítica teve certa eficácia porque resultou em mudanças na versão final aprovada em Gotha.

Conforme Michael Löwy escreve em seu prefácio à edição brasileira:

O projeto de programa proposto no congresso de união privilegiava as teses de Lassalle, o que suscitou críticas virulentas da parte de Marx na forma de uma carta enviada a Bracke, com a solicitação de que fosse repassada aos outros dirigentes do grupo de Eisenach. Em nome da unidade, Liebknecht impediu sua difusão, mas ainda sim ela teve efeito: algumas das fórmulas criticadas desapareceram da versão definitiva, aprovada no Congresso de Gotha.1

A importância do programa

A citação mais célebre da Crítica ao Programa de Gotha curiosamente é também uma das mais descontextualizadas da obra, retirada da mesma carta à Bracke:

É também minha obrigação não reconhecer, com um silêncio diplomático, um programa que, como estou convencido, é absolutamente nefasto e desmoralizador para o partido. Cada passo do movimento real é mais importante do que uma dúzia de programas. Se, portanto, não se podia – e as circunstâncias do momento não permitiam ir além do Programa de Eisenach, então era melhor ter firmado um acordo para a ação contra o inimigo comum. Mas, ao se conceber programas de princípios (em vez de postergar isso até que tal programa possa ser preparado por uma longa atividade comum), o que se faz é fornecer ao mundo as balizas que servirão para medir o avanço do movimento do partido. [grifo nosso]2

Quando retirada de seu contexto, a frase grifada acima pode ser facilmente utilizada para intenções contrárias ao que Marx pretendia no texto: ressaltar a importância do programa político de um partido. É óbvio que qualquer movimento real tem mais importância do que uma dúzia de programas porque, ainda que as ideias possam ter força material, não existe nenhuma relação obrigatória entre aquilo que um partido escreve em seu programa e aquilo que realmente faz em sua prática política. Porém, Marx chama atenção para a importância do programa como definidor dos objetivos, indicando a rota para estes objetivos e suas necessárias correções ao longo do trajeto. Essa distorção da posição marxista cai como uma luva nas tentativas de diluição do programa a partir de certos disfarces “populares” utilizados, por exemplo, nas barganhas entre direitos sociais e programas assistenciais promovidas pelos diversos governos do chamado “progressismo”.

Em outubro daquele ano, após o texto final definido em Gotha ser modificado a partir da pressão de Marx, Engels mantém uma posição dura e esclarecedora sobre o texto aprovado:

O programa, em sua redação final, consiste de três partes:

1. Fraseologias lassallianas e termos que não poderiam ter sido adotados sob nenhuma condição. Se duas frações se unem, não se põe no programa de união aquilo que é controverso. Ao permitir que isso ocorresse, nossos homens se submeteram espontaneamente ao mais degradante jugo.

2. Uma série de reivindicações vulgar-democráticas, concebidas no espírito e no estilo do Partido Popular.

3. Um grande número de frases sobre o dever ser do comunismo, em sua maioria apoiadas no Manifesto [Comunista], porém tão distorcidas em sua redação que, quando vistas de perto, revelam as mais revoltantes asneiras. Quando não se entende dessas coisas, deve-se desistir de escrever sobre elas ou copiar literalmente daqueles que entendem delas.

Por sorte, o programa acabou melhor do que merecia. Os trabalhadores, assim como os burgueses e pequeno-burgueses, leem nele o que deveria estar escrito e não o que está lá, e a nenhum lado ocorre pesquisar abertamente o real significado de qualquer uma daquelas maravilhosas frases. (…) [grifo nosso]3

Tanto Marx como Engels afastaram-se do programa de Gotha naquele momento, mas, segundo Löwy, os dois tinham projeções diferentes a respeito do futuro da unificação e o segundo era muito mais pessimista sobre o futuro do partido unificado. Apesar das reservas de Engels, o partido se tornaria o embrião do futuro SPD (Partido Social Democrata Alemão), com os lassallianos cada vez mais minoritários nos anos seguintes e derrotados totalmente com a aprovação do programa de Erfurt em 1891.

Tal desfecho poderia suscitar outra posição oportunista, defendendo a aprovação do programa de Gotha original como um mal menor frente à tarefa da unificação. Essa foi a posição de Liebknecht, quando obrigado a retornar ao assunto mais de 15 anos depois por discordar da publicação da Crítica mesmo depois da morte de Marx. Na Carta a Bebel (1981), Engels escreve:

Acabei de ler o texto novamente. É possível que uma ou outra coisa pudesse ter sido deixada de fora, sem prejudicar o todo. Mas com certeza não muita coisa. Qual era a situação? Nós sabíamos, tanto quanto vocês (…) que com a divulgação do esboço do programa a questão já estava decidida. Por isso, Marx escreveu a crítica para salvar sua consciência (…) e sem qualquer esperança de sucesso. E a afirmação de Liebknecht, de que teria havido um categórico “não”, nada mais é do que uma pretensão descabida, e ele sabe disso. Assim, se vocês cometeram um grande erro na eleição de seus representantes e agora, para não deixar que a unificação seja destruída, são obrigados a engolir o programa (…). (grifos no original)

Nos dias de hoje, onde boa parte da esquerda mundial procura definições ecléticas para justificar suas próprias saídas limitadas, este debate é muito atual. Não foram poucas as vezes nas quais a questão programática foi deixada de lado como algo menor perante pretensos movimentos reais que se desviam totalmente dos objetivos originais. Tanto ontem como hoje, as enormes pressões do Estado burguês sobre os partidos socialistas e movimentos sociais radicais fazem com que boa parte de seus elementos programáticos sejam propositalmente diminuídos ou até mesmo abandonados.

Constatar esse verdadeiro movimento real não significa, para nada, cair em seu contrário para agitar uma solidez programática estéril. O programa é uma ponte permanente para a ampliação das ideias revolucionárias em todos os lados onde elas possam ser permeáveis, com seus elementos táticos e estratégicos sempre a serviço das situações históricas concretas nas quais as organizações revolucionárias se constroem. Seguindo a posição marxista, de nada adianta um ótimo programa político se o partido que o levanta não for capaz de massificá-lo através de suas bandeiras de luta.

Mas, frente à ameaça fascista, o erro mais comum é o contrário, com os revisionistas atuais utilizando a necessidade da unidade antifascista para diluir elementos programáticos e acabando por confundir duas tarefas distintas: a da unidade de ação e a da frente única. Como diz o próprio Marx na carta a Bracke, se não era possível ir além do programa de Eisenach, “era melhor ter firmado um acordo para a ação contra o inimigo comum.” A unidade de ação é justamente esta tarefa partilhada entre aqueles que não possuem grandes acordos programáticos, enquanto toda frente única se faz através de acordos programáticos mínimos que vão além da simples ação comum.

Vejamos um exemplo concreto. Toda a esquerda radical brasileira fez parte do amplíssimo movimento democrático – unificado com setores da burguesia – que elegeu Lula em 2022. Esta unidade de ação eleitoral, seja no primeiro ou no segundo turno, foi essencial para colocar a extrema direita na defensiva que se desenvolveu depois com a inelegibilidade de Bolsonaro, a punição jurídica aos golpistas do 8 de janeiro, etc. Entretanto, tal vitória antifascista não significou nenhum avanço estrutural para a classe trabalhadora porque o novo governo de conciliação nunca propôs tais avanços, sendo apoiado por estes setores burgueses justamente como uma tentativa de normalizar a situação de exploração capitalista.

Ao acreditar na miragem de grandes acordos programáticos com o governo Lula, inclusive agitando que sua eleição representou a vitória nas urnas de um programa radical, parte importante da esquerda brasileira alimenta ilusões a respeito de uma unidade programática com o petismo que nunca existiu. Ao transformar a unidade eleitoral em uma frente programática através da força de vontade, exige-se do atual governo burguês que este cumpra promessas que nunca fez, desarmando o movimento em defesa das reais necessidades programáticas do povo brasileiro. Esta confusão é muito similar à armadilha que Marx alertava quando de sua crítica à Gotha porque também se inicia com a confusão programática e também termina semeando ilusões estatais.

Vejamos agora um exemplo de debate programático de natureza bem diferente. A discussão entre Trotsky e os dirigentes do SWP norte-americano a respeito do projeto do Programa de Transição nos dá bons elementos metodológicos para este mesmo tema:

O significado do programa é o significado do Partido. O Partido representa a classe operária. Compõe-se de uma seleção dos elementos mais conscientes, avançados e devotos à causa do proletariado. Pode ter um papel político e histórico importante sem relação direta com sua força numérica. Pode ser um pequeno partido, numericamente falando, e representar um grande papel. (…)

Agora pergunto, o que é o Partido? Em que consiste sua coesão? Ora, esta coesão consiste na compreensão comum dos acontecimentos e das tarefas, e é esta compreensão que representa o programa do Partido. Da mesma forma que os operários não podem trabalhar sem instrumentos, para o Partido o programa é o seu instrumento. Sem programa cada membro do Partido vê-se obrigado a improvisar sua ferramenta, a buscar ferramentas improvisadas, uma em contradição com a outra. A vanguarda só pode agir quando se organiza em função de uma concepção comum.4 [grifos nossos]

Em primeiro lugar, longe de minimizar sua importância, Trotsky trata o programa como o próprio significado do Partido, seguindo a posição marxista sobre a impossibilidade da organização revolucionária desprovida de um programa ou diluída em um programa confuso. Da mesma forma, perante a questão programática, o elemento quantitativo é subordinado ao qualitativo porque o segundo determina o primeiro. Um grande partido sem um programa claro tem muito menos condições de promover mudanças revolucionárias do que um grupo menor e mais coeso programaticamente simplesmente porque não o primeiro não declara onde quer chegar e, sem definir isso, estará completamente suscetível as mais variadas pressões oportunistas oriundas do Estado burguês, tal qual os lassallianos.

Dois exemplos do Brasil atual nos ajudam a enxergar tal processo. O primeiro é o movimento do próprio PSOL e de algumas organizações radicais que o compõe que, como parte de um processo geral de diluição programática, se apresentam publicamente da forma mimetizada com o governo burguês e incorporam inclusive certos slogans entre os quais o “reconstruir o Brasil” é o mais evidente de tal falência programática. E o fazem por necessidades eleitorais que se colocam a frente dos princípios programáticos, esvaziando de sentido a principal ferramenta política construída pela esquerda radical brasileira nos últimos 20 anos.

O segundo é a diluição programática dos movimentos sociais frente ao mesmo governo burguês, que ampliou o financiamento para ONGs e projetos do terceiro setor como forma de equilibrar uma política de austeridade que garante a manutenção dos mesmos padrões de exploração de sempre, desta vez pintados com o verniz “progressista”. Também fruto da diluição programática, temos testemunhado o mesmo processo de cooptação e adaptação de militantes desses movimentos que transformam tais fontes de financiamento em meio de vida e tentam reorientar organizações combativas da mobilização de massas para a simples concorrência de editais e emendas parlamentares, transformando a luta pela construção de uma maioria social revolucionária na defesa de uma reprodução econômica particular.

Não por acaso, nos dois exemplos acima, os elementos programáticos são deixados de lado em prol das facilidades para poucos abertas pelo atual governo e suas estruturas de financiamento, seja eleitoral através dos fundos gigantescos, seja através do terceiro setor através de políticas cosméticas. A propaganda da ruptura urgente com a ordem ecônomica vigente é deixada de lado, trocada por acenos eleitorais ou financiamento para iniciativas “populares” com as devidas logos estatais.

A falácia do “Estado popular”

Todo esse processo de adaptação e rebaixamento programático está diretamente ligado a outro ponto central do texto de Marx: as confusões lassallianas a respeito do Estado burguês. Nele, Marx contrapõe as consignas a respeito de um “Estado popular” com a necessidade do processo de definhamento do Estado como única forma possível de enfrentamento ao Estado burguês, a forma política capitalista por natureza. Vejamos como o esboço de Gotha se assemelha muito as posições estatistas da esquerda “radical” citada acima:

(…) o Partido Operário Alemão ambiciona, por todos os meios legais, alcançar o Estado Livre e a sociedade socialista (…)

O Partido Operário Alemão exige, para conduzir á solução da questão social, a criação de cooperativas de produção com subvenção estatal e sob o controle democrático do povo trabalhador (…)

O Partido Operário Alemão exige, como base econômica do Estado: um imposto de renda único e progressivo para o Estado e os municípios, no lugar de todos os impostosindiretos atualmente existentes (…).

Tais formulações imprecisas sintetizam a concepção estatista desse programa, projetanto um futuro “Estado livre” e apontando o papel do Estado como subvenciador da “solução da questão social” através das cooperativas e do imposto único. Não por acaso, uma posição que se assemelha às saídas da esquerda brasileira citadas acima, seja na garantia do vultuoso financiamento eleitoral, seja na esperança de projetos do terceiro setor subfinanciados para fins cosméticos. A ideia do Estado como mediador-garantidor-financiador da ação de mudança social que os lassallianos tanto apostavam foi derrotada teoricamente na história do movimento comunista, mas os elementos objetivos que desenvolveram tais posições estão cada vez mais vivas a medida que o Estado burguês se consolida e se fortalece, com sua influência atingindo inclusive espaços antes mais autônomos (como os movimentos sociais independentes).

Mas, voltando as tais definições de Gotha sobre o Estado, Marx escreve:

Estado livre, o que é isso?

Tornar o Estado livre não é de modo algum o objetivo de trabalhadores já libertos da estreita consciência do súdito. (….) A liberdade consiste em converter o Estado, de órgão que subordina a sociedade em órgão totalmente subordinado a ela, e ainda hoje as formas de Estado são mais ou menos livres, de acordo com o grau em que limitam a “liberdade do Estado”.

O Partido Operário Alemão – no caso de adotar esse programa – mostra que as ideias socialistas não penetraram nem sequer a camada mais superficial de sua pele, quando considera o Estado um ser autônomo, dotado de seus próprios “fundamentos espirituais, morais, livres”, em vez de afirmar a sociedade existente (e isso vale para qualquer sociedade futura) como base do Estado existente (ou futuro, para uma sociedade futura).

Tais erros lassallianos estão completamente conectados com os desvios enumerados no ponto anterior. A diluição programática não se dá por acaso, é sempre combinada com a pressão de adaptação exercida pelo Estado burguês a partir de suas ferramentas de cooptação já citadas acima. Para os movimentos e organizações radicais, não é um processo rápido, ao contrário, é um movimento pouco perceptível como a lenta subida de uma maré. Aos poucos, o Estado que antes representava o principal adversário político de uma organização revolucionária torna-se um grande parceiro e financiador, não para ações estruturais que atinjam grandes massas e mudem concretamente a realidade, mas para projetos que permitam a reprodução das próprias iniciativas destas organizações e a reprodução econômica de seus membros com melhor localização em suas estruturas internas.

Se tal pressão já se fazia sentir na autoritária monarquia prussiana, o que dizer dessa situação durantes os “aliados” governos social-liberais? Este é um grande dilema enfrentado hoje pelos revolucionários em sua relação com o Estado entrecortada pela dupla dinâmica da “unidade antifascista” e da “frente única programática”. E perante esse dilema continua muito atual a obra de Lênin, O Estado e a Revolução (1918), na qual retoma o debate feito na Crítica para polemizar tanto com anarquistas como com outros social-democratas da época a respeito do caráter do Estado para Marx:

A sociedade capitalista, considerada nas suas mais favoráveis condições de desenvolvimento, oferece-nos uma democracia mais ou menos completa na República democrática. Mas, essa democracia é sempre comprimida no quadro estreito da exploração capitalista: no fundo, ela não passa nunca da democracia de uma minoria, das classes possuidoras, dos ricos. A liberdade na sociedade capitalista continua a ser, mais ou menos, o que foi nas repúblicas da Grécia antiga: uma liberdade dos senhores fundada na escravidão. Os escravos assalariados de hoje, em consequência da exploração capitalista, vivem pro tal forma acabrunhados pelas necessidades e pela miséria, que nem tempo têm para se ocupar de “democracia” ou de “política”. (…)5

Este é o caráter do estado “democrático” para Lênin, diferindo totalmente tanto dos lassalianos em Gotha quando dos oportunistas no movimento político e social dos dias de hoje. Enquanto é possível traçar uma mesma linha ligando as exigências de financiamento das cooperativas de crédito no esboço de Gotha com os editais progressistas do século XXI, também é possível traçar uma outra linha ligando a posição marxista e a posição leninista com uma armação de independência contra tais mecanismos de cooptação estatal que já existem há séculos.

Frente à ideia do “Estado popular” tão agitada nos dias de hoje, nos resta combater denunciando o caráter de cooptação cada vez mais presente nos movimentos sociais e organizações políticas. Contra cada ilusão semeada na forma de financiamento estatal que tenha como fim último a reprodução social daqueles os operam, é necessário denunciar este mecanismo de compensação na qual pequenos projetos são subfinanciados enquanto as denúncias dos grandes problemas estruturais se mantém tímidas porque aqueles que as deveriam fazer são os mesmo que recebem tais financiamentos.

Por estes e outros elementos, a Crítica do Programa de Gotha continua extremamente atual e nosso combate programático – principalmente na defesa das ferramentas construídas pelas classe trabalhadora, seus partidos e movimentos sociais – é mais importante do que nunca.

Notas

  1. Karl Marx. Crítica ao Programa de Gotha. Boitempo Editorial (2012). ↩︎
  2. Carta de Karl Marx a Wilhelm Bracke. Idem. ↩︎
  3. Carta de Friedrich Engels a August Bebel. Idem ↩︎
  4. Leon Trotsky. Discussão com Trotsky sobre o Programa de Transição. Kairós (1979) ↩︎
  5. Vladimir Lênin, O Estado e a Revolução. Expressão Popular (2007) ↩︎

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