Parte 2: Salvar o mundo e o St. Pauli do sionismo 

Parte 2: Salvar o mundo e o St. Pauli do sionismo 

Parte 2 do texto “Por que os antifascistas comemoram a volta do St. Pauli à Bundesliga?”

Júlio Pontes 15 maio 2024, 14:31

No afã de festejar o histórico acesso do St. Pauli à Bundesliga, clube reconhecido mundialmente mais por suas posições políticas e menos pelos seus volantes e atacantes, cometi um erro. Escolhi o caminho oposto: a partir da temporada marcante do líder da segunda divisão alemã, exaltei sua história de combate ao fascismo, racismo e homofobia, especialmente nos anos 1980 e 1990. Acontece que, advertido por amigos e leitores mais atentos, descobri que o St. Pauli e sua torcida – não sem divisões e críticas – abraçaram-se ao sionismo. Ao que não cabe tergiversar, porque a defesa da causa palestina é a régua moral da humanidade, separando os que estão no lado certo e aqueles cujo destino é a a lata de lixo da história. Não há, portanto, coexistência entre sionismo e antifascismo, o mundo e o St. Pauli precisam do último para derrotar o primeiro. 

A defesa de “Israel” é uma razão de Estado para Alemanha, como afirmou Angela Merkel. David Ben-Gurion sustentou desde o recém fundado Estado de Israel a perspectiva de “uma outra Alemanha”. Já em 1964 a Alemanha enviava armas ao Estado de Israel, intervindo em conflitos no Oriente Médio. O que chamam de “responsabilidade histórica” – em referência ao nazismo – é, no fundo, o reposicionamento geopolítico de uma potência capitalista frente ao colapso do imperialismo britânico. Algo de fácil assimilação ao sionismo, para o qual a empreitada colonial e racista depende de sustentação imperialista até os dias de hoje. 

Há na formação social alemã, portanto, um profundo envolvimento ao redor desse tema. O pesadelo anti-semita, com presença perturbadora na consciência social alemã, produziu posições esquemáticas e binárias, que uma vez mais levadas adiante se traduzem na cumplicidade de uma nova tragédia humanitária. Mesmo porque, como disse Breno Altmann, o Estado de Israel copia a cartilha dos carrascos antessemitas. A reserva moral sobre a qual os alemães e os mundo devem se apoiar está na esquerda judaica anti-sionista, com presença combativa nos acampamentos pró-Palestina em universidades estadunidenses. 

Nada disso significa, no entanto, que não há na Alemanha um movimento vivo em defesa do causa palestina. Inspirados no exemplo dos acampamentos nos EUA, estudantes acamparam na Universidade de Colônia, a mesma universidade que “puniu” Nancy Fraser por suas posições públicas contra o sionismo [1]. Há pouco menos de um mês aconteceu em Berlim o Congresso Pela Palestina, brutalmente reprimido pela governo alemão. Com um cerco de 2500 policiais, energia e internet foram cortadas, ativistas foram presos e convidados internacionais foram impedidos de entrar em território nacional. Ainda assim,  enfrentando a repressão, sobretudo a comunidade muçulmana e árabe – vítima da implacável xenofobia da extrema-direita ligada a AfD – tem tomado o protagonismo dos protestos contra o genocídio. 

Isso é ilustrado, por exemplo, pela revelação feita por um meio de comunicação alemã, segundo a qual membros do partido de extrema-direita AfD estavam reunidos em novembro com grupos neonazistas planejando a deportação em massa de imigrantes. A resposta contundente veio das ruas com uma manifestação que reuniu mais de 1 milhão de pessoas [2]. Prevaleceu, no entanto, o silêncio da esquerda alemã em relação ao genocídio promovido pelo Estado de Israel aos olhos do mundo, ao qual a AfD é aliada de primeira hora – chegando a propor em outubro o fim da ajuda humanitária aos palestinos. Há raras exceções, como da ex-deputada do Die Linke Buendnis Sahra Wagenknecht e Christine Buchholz. Mas ambas, como repercutiu o Monitor do Oriente [3], estão nadando contra a correnteza sionista que assola não só o partido delas, mas a esquerda alemã de maneira geral – onde faltam posições firmes em defesa da liberdade do povo palestino. 

Dito tudo isto, inclusive para que não cairmos na armadilha ideológica que separa o futebol da sociedade, a violência das torcidas do mundo ao qual elas se inserem, chegamos ao St. Pauli. O St. Pauli, a quem chamei de indomesticável no texto anterior, domesticou-se pela posição sionista dos demais clubes alemães. Na arquibanca do Millerntor, passou-se a ver cartazes “contra o antisemitismo” e “contra o Hamas”, ou seja, alinhados a cartilha cínica e cruel que reveste a tragédia humanitária pela qual os palestinos estão passando – com 35 mil assassinados, dos quais 14 mil são crianças. Os fãs clubes do St. Pauli em Atenas e Bilbao reagiram com revolta, frustrados ao verem o clube por quem se apaixonaram, dentro e fora de campo, defenderem valores antagônicos aos de sua própria história recente. 

O que divide o mundo do futebol não é exatamente a causa palestina. Aí, infelizmente, a maioria esmagadora dos clubes e torcidas joga um papel regressivo. Mas é especialmente frustrante ver o St. Pauli engrossar o caldo da “ordem”, rasgando sua própria história contra o fascismo, o racismo e a homofobia. Não por outro motivo os torcedores do Celtic romperam sua velha amizade com o clube alemão, espalhando faixas que diziam “Fuck St. Pauli” e “Free Hamburg from Hipsters” – numa clara referência a uma faixa utilizada no Millerntor que estampava os dizeres “Free Palestina From Hamas”.  

Aqueles que são apaixonados por futebol e dedicam parte importante de suas vidas à transformação do mundo, por um mundo em que povo palestino seja livre do rio ao mar, certamente perderam o encanto e já não festejam o acesso do St. Pauli. Ao contrário dos clubes que torcemos em nosso país, onde nos formamos torcedores – em regra – por motivos alheios aos nossos valores, o St. Pauli havia se constituído numa referência distinta, em que os resultados, títulos e jogadores não tinham tanta importância assim. Ao contrário, nós buscávamos o que nos faltava aqui, conhecendo assim, por exemplo, clubes como Rayo Vallecano e Livorno – distantes do lugar onde pisamos mas próximos do que pensamos. Como no poema de Thiago de Mello: faz escuro mas cantamos. Cantamos com o marroquino Raja Casablanca e sua intransigente defesa da palestina. Vibramos com os gols do chileno Palestino na Copa Libertadores da América. Palestina livre!

[1] https://blogdaboitempo.com.br/2024/04/17/nancy-fraser-alemanha-me-censurou-por-apoiar-a-palestina/

[2] https://movimentorevista.com.br/2024/01/a-alemanha-contra-o-fascismo/

[3] https://www.monitordooriente.com/20240311-como-a-esquerda-alema-falhou-com-os-palestinos/


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