“Como é razoável matar mais de 200 pessoas por causa de quatro?”
Bombardeios incessantes, hospitais transbordando, soldados em caminhões de ajuda: sobreviventes relatam o massacre no campo de refugiados de Nuseirat durante o resgate de reféns por Israel
Foto: Khaled Ali/Flash90
Via +972
Tudo começou sem aviso. “Os aviões estavam bombardeando. Tanques estavam atirando. Os drones quadricópteros estavam atirando. As pessoas estavam correndo e gritando. Parecia o Dia do Julgamento, como se estivéssemos vivendo nossos últimos momentos.”
Essa era a cena por volta das 11 horas da manhã de sábado, 8 de junho, no campo de refugiados de Nuseirat, no centro de Gaza. O bombardeio aéreo, conforme descrito por um jornalista do campo que preferiu permanecer anônimo, foi acompanhado pela entrada de dezenas de militares e policiais israelenses das forças especiais que saíram de caminhões de ajuda humanitária. “Não conseguíamos entender o que estava acontecendo”, acrescentou o jornalista.
Como ficou claro mais tarde, uma grande operação militar israelense estava em andamento para resgatar quatro reféns que o Hamas havia sequestrado do festival de música Nova quase exatamente oito meses antes. Ao fazer isso, as forças israelenses desencadearam uma devastação no campo de Nuseirat, matando pelo menos 276 palestinos e ferindo aproximadamente 700 outros.
“A intensidade do bombardeio parecia um terremoto”, contou Enas Al-Louh, 45 anos, da Cidade de Gaza, que buscou refúgio no campo. “Pensei que minha vida acabaria ali mesmo. Eu gritava para meus filhos não saírem do meu lado para que pudéssemos morrer juntos. Por mais de uma hora, vivemos o horror de bombardeios e bombardeios ininterruptos.”
Para Amjad Al-Majdalawi, um homem de 40 anos que estava no campo de Nuseirat com sua família desde o início da guerra, o som das explosões e os gritos das pessoas no mercado o levaram a um estado de pânico. “Minha mente parou e eu corri para ver como estava minha família”, disse ele ao +972. “Enquanto corria, vi os mártires e os feridos deitados no chão, e os sobreviventes implorando por ajuda.
“Quando cheguei em casa, encontrei meus filhos e minha família gritando de medo”, continuou. “Tentamos encontrar algum alívio para o choque do evento, mas ele continuou a se tornar cada vez mais violento. A ocupação enganou o campo com o estado de calma em que vivemos por vários dias [antes da operação], sem ouvir o som de aviões de reconhecimento. Então veio o ataque, com tamanha brutalidade. Todos no campo perderam alguém de sua família.”
“Somos sangue barato neste mundo hipócrita”
Quando centenas de palestinos feridos começaram a chegar ao Hospital Al-Aqsa Martyrs, na vizinha Deir al-Balah, o exército israelense ligou para a equipe do hospital e ordenou que evacuassem, ameaçando bombardear o hospital. A equipe transmitiu o aviso aos que puderam, mas a maioria estava desesperada demais para prestar atenção. O ataque não se concretizou, e parece que a ameaça tinha a intenção de semear mais caos e confusão à medida que a operação israelense se desenrolava.
“Todos os fotógrafos e jornalistas decidiram ficar”, contou o jornalista. “Ao cobrir os eventos dentro do hospital – que continuou a receber um número incontável de pacientes feridos – cumprimos nosso trabalho. Não nos importamos com a ordem de evacuação, porque o que vivenciamos foi mais terrível do que qualquer outro pensamento ou sentimento. O choro das mães e das crianças era muito intenso.”
Khalil Al-Dakran, porta-voz do hospital, disse ao +972 que a maioria dos feridos que chegaram naquele dia eram mulheres e crianças. Mas, devido aos contínuos ataques do exército israelense à região central de Gaza nas semanas anteriores, explicou ele, o hospital não tinha condições de receber um número tão grande de pessoas.
“Tratamos os feridos no chão dos corredores e do lado de fora, nas tendas, porque não havia leitos vazios para receber os feridos”, continuou Al-Dakran. “Eles chegaram em ambulâncias, carros civis e veículos puxados por animais.” A situação era tão terrível que o hospital foi forçado a enviar pacientes para o Hospital Maternidade Al-Awda, que ficava mais perto do massacre em Nuseirat, apesar de estar mal equipado para acomodar pacientes com ferimentos graves.
Os recursos cada vez menores do Al-Aqsa limitaram ainda mais a capacidade do hospital de admitir o fluxo de pacientes. “Algumas delegações médicas chegam a Gaza com suprimentos que podem ajudar nossos pacientes, mas o exército israelense os confisca e os impede de entrar em Gaza”, explicou Al-Dakran. “Isso inibe a entrada de combustível e equipamentos médicos nos hospitais e impede que os feridos busquem tratamento para salvar vidas no exterior.”
A operação de Nuseirat marcou apenas a segunda vez desde 7 de outubro que as forças israelenses libertaram reféns com vida. A primeira, em 12 de fevereiro, também teve um alto custo para as vidas palestinas, matando pelo menos 74 pessoas no campo de refugiados de Shaboura, em Rafah, para criar uma “distração”.
Al-Louh ainda está lutando para entender o que testemunhou. “Como é razoável matar mais de 200 pessoas por causa de quatro? Somos sangue barato nesse mundo hipócrita que não conhece o significado de humanidade, não fala sobre as centenas de mártires e feridos e não expressa sua raiva por esse massacre.”