Rebelião em Bangladesh
O caldo sociopolítico por trás da convulsão social no país asiático
Foto: Reprodução
Centenas de mortos, protestos de rua, convulsão social. Seguindo este roteiro, acontece uma furiosa rebelião social em Bangladesh. O desfecho da sua primeira etapa não poderia ser mais cinematográfico: a primeira-ministra, Sheik Hasina, fugiu de helicóptero, renunciando ao cargo. Dezenas de milhares saíram para festejar nas ruas. Nesse momento, o movimento estudantil, protagonista central da rebelião, discute que não irá aceitar um governo de transição controlado pelos militares.
Diante desses acontecimentos, enormes, duas questões se articulam e merecem ser respondidas. Em primeiro lugar, por óbvio, é: o que está acontecendo? Num país distante, pouco conhecido e sem fluxo migratório para o Brasil, fica difícil entender à primeira vista qual a dinâmica do processo. Recordo de minhas idas a Portugal, que o bairro de Alfama, próximo a sede do Bloco de Esquerda, tem uma tradição de imigrantes da região de Bengala. Lá, vi restaurantes com bandeiras de Bangladesh, além de forte presença paquistanesa e mesmo hindu.
E, como um segundo tema, esse tipo de rebelião é uma exceção improvável ou uma dinâmica possível? Como articular isso, num mundo caótico, convulsionado e com uma extrema direita crescente e protagonista.
Bangladesh, um gigante proletário
Se equivocam aqueles que pensam que Bangladesh, por ser distante, é um país menos importante. Hoje é o oitavo país mais populoso do mundo, com cerca de 171 milhões de habitantes, ocupando um lugar estratégico na produção internacional. Mais que isso, é um dos países mais povoados do mundo, em termos de densidade demográfica, ficando atrás apenas dos países minúsculos e principados em áreas muito diminutas. A capital, Daca, tem 7 milhões de habitantes em sua área central, chegando a cerca de 19 milhões se somarmos a região metropolitana. Uma megalópole como a Cidade do México, São Paulo, Tóquio.
Isso se relaciona com seu tamanho, sua localização como polo têxtil e sua proximidade dentro do novo arranjo asiático, com o crescimento da Índia se impondo como realidade mundial. As atuais fronteiras de Bangladesh remetem à guerra de libertação, completada nos anos 70, após o fim do domínio britânico da região. Na verdade, em 1947, a região de Bengala se dividiu em duas: uma foi parte foi incorporada como região da Índia, sendo uma das mais dinâmicas, com capital Calcutá; outra teve como nome Paquistão Oriental, até a sua independência completa, após a vitória na guerra, em 1971, sob a direção nacionalista de Liga Awani.
Bangladesh é o segundo maior exportador de roupas do mundo. Caríssimas grifes têm como base a produção de vestuário em Bangladesh, aproveitando os baixos salários, sendo uma verdadeira “rota do tecido”, sobretudo nos últimos 15 anos. A concentração de operárias fabris em Bangladesh é impressionante. Por sua condição demográfica, é um proletariado extremamente concentrado (em 2019 e em 2023, tivemos grandes greves em fábricas com até 30 mil funcionários), jovem e feminino.
O símbolo da localização de Bangladesh como ponta de lança na indústria da moda foi o desastre de Rana Plaza em 2013. Abastecendo as grandes marcas mundiais, as trabalhadoras e trabalhadores do vestuário, submetidos a condições desumanas de superexploração, protagonizaram o trágico episódio do desabamento do prédio que abrigava a central de fábricas de roupas, na periferia industrial de Daca. As degradantes condições de trabalho chocaram o conjunto da cadeia de produção têxtil no mundo, repercutindo nos altos círculos da indústria da moda, no colapso que resultou na morte de 1138 pessoas, com milhares de feridos graves. A resposta furiosa do movimento operário de Bangladesh trouxe o crescimento das greves e da condição associativa e sindical no ramo têxtil.
A entrada em cena da juventude
A juventude, através das entidades do movimento estudantil, foi a grande protagonista da rebelião. Foram meses de enfrentamento, primeiro contra a injusta lei de cotas que favorecia o apadrinhamento no serviço público de membros da casta do partido governante, depois contra a própria repressão do regime. Para entender o estopim vale retomar o artigo do analista político indiano, membro do CADTM, que seria um dos principais convidados para a Conferência Antifascista de Porto Alegre (adiada para 2025), Sushovan Daar:
“Os recentes protestos começaram com a mobilização de estudantes, no início de julho, para exigir o fim do sistema de cotas para empregos públicos. As origens desse sistema remontam ao período em que Bangladesh teve de lutar por sua independência contra os governantes e o exército do então chamado Paquistão Ocidental. Em 1972, quando o país saiu da Guerra de Libertação, foram criadas reservas de emprego para os combatentes da liberdade, em reconhecimento aos seus sacrifícios.
Esse sistema foi alterado várias vezes nas décadas seguintes, resultando em 30% dos empregos no serviço público reservados para os filhos e netos dos combatentes da liberdade. Outros 26% são reservados para mulheres, pessoas de distritos subdesenvolvidos, comunidades indígenas e portadores de deficiências. Isso significa que apenas 44% dos empregos estão abertos a candidatos em geral.
Os empregos no serviço público são altamente cobiçados em Bangladesh, em um cenário de emprego desanimador, com cerca de 3 milhões de bangladeshianos sem emprego. Como resultado, o sistema de cotas gerou uma onda de descontentamento e frustração.”
A fagulha que incendiou o país foi a ação histórica independente da juventude contra a lei de cotas, que tocava em feridas abertas na história, sobretudo ligados ao partido do regime, a Liga Awami i, que querendo evitar o desgaste que acumulava desde a crise motivada pela pandemia de Covid-19 apelou para um suposto retorno à tradição, o que na verdade era apenas legalizar uma nova forma de cabide de empregos.
A Liga teve dois ciclos virtuosos à frente do governo de Bangladesh. O primeiro foi a consagração de seu líder fundador, após a heroica vitória na guerra de 1971, quando Mujibur Rahman chegou ao poder. A segunda versão, agora nas mãos de sua filha e herdeira política, Sheik Hasina, começa em 2009, num período que dura 15 anos, prometendo levar Bangladesh a condição de potência regional. Na verdade, o que se aprofundou foi um regime de maior controle do aparelho de estado, ancorado no patrimonialismo do partido governante, combinado com um modelo neoliberal que assegurou taxas de crescimento com base na superexploração do trabalho. A resultante foi o descolamento de uma nova elite, por um lado; e de outro, a crescente desigualdade, tanto no mundo urbano – marcado pela brutal exploração da força de trabalho e pelo enorme peso da juventude – quanto no mundo rural, com agricultores pobres sem qualquer incentivo governamental.
O “pequeno milagre” de Bangladesh foi contestado com a repercussão do desastre de Rana Plaza, em 2013, mas entrou em colapso com a pandemia de Covid-19, que trouxe uma grave crise econômica, desnudando a falácia do crescimento do governo de Sheik Hasina. Em 2023, protestos de agricultores e greves operárias levaram a uma mudança no clima social.
Para evitar uma derrota eleitoral, em um momento em que a oposição à direita e fundamentalista se postulava como alternativa ao descontentamento, Sheik Hasina e a Liga fizeram manobras e fraudes na eleição do começo de 2024.
A combinação de todos esses fatores levou à eclosão do movimento, encabeçado pela juventude, em defesa de emprego e futuro, ao qual o governo e seus braços responderam com mais repressão. Um dos pontos que gerou indignação foi a declaração de que os estudantes eram netos dos “Razakars”, termo depreciativo cunhado para os colaboracionistas a favor do Paquistão na guerra de 1971. Trocando em miúdos, Hasina chamou os estudantes de traidores.
O desenlace veio após uma feroz batalha no domingo, 4 de agosto que deixou mais de cem mortos, sendo o alarme final para o governo. Manifestantes entraram no palácio presidencial, nas sedes do partido de governo e, enfurecidos, destruíram símbolos de ostentação do regime e do partido dominante. Uma rebelião que terminava um capítulo infame na história do país.
Uma rebelião caótica em meio ao caos geopolítico
A rebelião de Bangladesh se insere no contexto internacional de caos geopolítico, no qual se combinam processos de crise e revolta. Por um lado, temos a agudização das guerras, com a ocupação da Ucrânia, a ampliação orçamentária da Otan e o massacre em Gaza; o crescimento e articulação de uma extrema direita com posições neofascistas; e a crise ambiental global dando um salto. Por outro, revoltas e protestos sacodem os cinco continentes, muitas vezes sem um programa nítido, nem uma direção capaz de organizar a “pulsão rebelde”.
O tipo de revolta em curso em Bangladesh se assemelha com outros processos que estamos vivenciando no mundo, particularmente depois de 2008. Tivemos dois grandes ciclos desde então: o primeiro, com ênfase na Primavera Árabe, que derivou no Movimento dos Indignados na Espanha, no Occupy Wall Street, que chegou ao Brasil sob a forma das jornadas de junho de 2013, Um segundo ciclo, a partir de 2019, e combinado com a pandemia de Covid-19, envolveu novos países do mundo árabe como Argélia e Sudão, rebeliões no Equador e Chile, e agora toca países na África e na Ásia.
Nos últimos dias, tivemos levantes populares com características similares em países populosos e centrais como Quênia, Nigéria e, agora, em Bangladesh. Com protagonismo na juventude, por fora dos setores tradicionais, de forma radicalizada e fazendo vocalizar demandas de amplas massas populares. Martial descreve a revolta Queniana como expressão da “geração Z na luta”.
Algo similar ocorreu em 2022, no Sri Lanka, também na Ásia Meridional. Com cenas idênticas a dos manifestantes que ocuparam a sede do governo de Bangladesh nos últimos dias, a revolta cingalesa derrubou o governo, fazendo com que o presidente Gotabaya Rajapaksa renunciasse, fugindo às pressas, para escapar da fúria dos manifestantes.
A outra cara da crise orgânica que vivem os regimes políticos nas primeiras décadas do século XXI são os golpes e guerras civis. Isso aconteceu em Mianmar, outro país importante da região, alguns anos atrás.
Também não se descarta a apropriação de setores de extrema-direita das revoltas e descontentamentos populares.
Se atualiza a definição de Lenin de período convulsivo – não apenas a extrema direita, senão os riscos de guerras civis , golpes e revoluções – de forma dramática para os nossos dias.
Índia, “player” central do capitalismo contemporâneo
Os marcos fundamentais desse processo foram a superação da China em termos populacionais, e o projeto liderado pelo primeiro-ministro indiano Narendra Modi de conduzir a Índia à condição de potência global. Importante levantar alguns elementos centrais da discussão acerca da Índia como um ator central no capitalismo dos dias de hoje.
Em termos populacionais, a Índia passou a China há dois anos; se somarmos com os outros maiores países da região, como o próprio Bangladesh e o Paquistão, teremos um contingente humano de cerca de 2 bilhões de pessoas concentradas na mesma região. É impressionante!
O projeto de Modi e do seu partido – o BJP, nacionalista religioso de direita, no poder desde 2014 -, é impulsionar a Índia como potência, diante da competição entre Estados Unidos e China. Hoje, quinta maior economia do mundo, com uma participação de 3,59% no PIB global, a Índia de Modi almeja utilizar sua localização na Ásia para chegar em 10 anos à terceira economia, apenas atrás dos dois grandes imperialismos dominantes. Além do ramo farmacêutico, o investimento é na indústria de tecnologia digital, na fabricação de softwares e outros produtos ligados à área informática.
O resultado da recente eleição foi um freio para uma maioria absoluta a favor de Modi. O projeto expansionista do capitalismo indiano engendra contradições maiores, onde o polo de extrema direita também enfrenta uma resistência de vulto, como se viu nas greves gerais de trabalhadores e na mobilização dos agricultores que paralisaram o país por algumas semanas. As revoltas sociais nos países vizinhos impactam no conjunto da consciência do povo indiano.
Para saber mais sobre a dinâmica política e social da Índia, sugiro o seguinte texto de Carlos Magno (clique aqui para ler).
Primeiras lições
Em Bangladesh, o processo apenas começa. A renúncia do governo corrupto foi saudada com festas nas ruas. O exército, apoiado nos setores da oposição de direita, ensaiou um governo de transição, dissolvendo o Parlamento. Foi libertada da prisão domiciliar a principal liderança da oposição burguesa, a ex-primeira-ministra Khaleda Zia.
O intelectual paquistanês Tariq Ali escreveu uma carta aos estudantes, publicada em sua conta no X, saudando sua vitória:
“Estudantes de Bangladesh, foi a sua coragem e consistência que lhes valeu esta vitória. Algumas palavras de conselho. Não confiem no Exército. Não confiem nos chamados partidos de oposição. Eles não são diferentes. Confie na sua própria força. Crie uma assembleia popular na qual vocês estejam amplamente representados. Não acabou. E se o Exército anunciar um governo interino, exija que você seja maioria nele. Se recusarem, saiam às ruas novamente. Esta é uma vitória histórica. Não deixe ninguém roubar isso de vocês.”
A recusa dos estudantes em aceitar o governo militar manteve o impasse. Como saída provisória, se nomeou uma figura pública reconhecida internacionalmente para chefiar o governo de transição: Nobel da paz e banqueiro conhecido por suas propostas de microcrédito e economia solidária, Muhammad Yunus.
Sem entrar no mérito das ilusões geradas pela proposta central de Yunus, chamado pela imprensa de “banqueiro dos pobres”, sua presença é uma concessão dos militares ao movimento, que clama por ampliação de liberdades democráticas, eleições e mais participação da sociedade civil.
Sugiro o seguinte artigo do CADTM sobre a discussão específica das teses econômicas de Yunus (clique aqui para ler).
A esquerda no país se encontra em estado de recomposição. A entrada massiva do movimento estudantil despertou para a cena política toda uma nova geração. Vale registrar a presença combativa da Federação “Kishok” de agricultores, dirigida por Badrul Alam, filiada à Via Campesina. E as centrais e sindicatos que se posicionaram firmes ao lado dos estudantes. No caso, do antigo governo, um setor reformista de esquerda- Partido social-democrata e os ex-maoistas do PTB – faziam parte, emprestando apoio a Sheik Hasina. Organizações da esquerda radical, dentro e fora do PC de Bangladesh tomaram parte junto às federações estudantis e se fortaleceram na luta contra o governo.
Os dados estão lançados. A rebelião, sem forma e direção, é um exemplo para os oprimidos da região e deve ser disputada para que não seja apropriada por oposicionistas demagógicos. Vale estudar e apoiar a juventude de Bangladesh.
Para saber mais sobre a questão, recomendamos os seguintes artigos:
- Entrevista de Pierre Rousset com Badrul Alam
- Os estudantes de Bangladesh estão desafiando um sistema opressor
- Protesters in Bangladesh Want an End to State Repression
- After Hasina’s resignation, the struggle over the power vacuum continues in Bangladesh