Cidades em Moratória: parar a destruição, organizar a regeneração
Uma reflexão sobre os rumos para a construção de urbanismos ecossocialistas organizados e praticados por comunidades
Imagem: Cidade Lírica (Marcio Bravo)
Este artigo foi criado por uma pessoa humana ao som de música. Sua leitura pode ser integrada a Time Lapse, Burning, Run e Experience, de Ludovico Einaudi.
Panorama da terra arrasada
Imagine que você viva numa pequena rua de qualquer cidade brasileira. Pode ser no centro; em bairros próximos ou distantes dele, no limite com a zona rural ou mesmo a áreas de natureza preservada -campos, floresta, cerrado, sertão, mangue, praia.
De repente, tapumes são instalados em vários terrenos próximos de sua casa. Dias depois, tratores e outras máquinas começam a operar. Em pouco tempo, derrubam tudo que havia ali: árvores, casas, fábricas, armazéns, estruturas antigas. Transitam carregados de vestígios da destruição; a poeira sobe e se espalha, o barulho aumenta. Vai começar uma grande construção na área.
Você pergunta: alguém sabe de algo? Uma parte desconhece; entre quem diz saber, os relatos variam. Você pensa: “como vai impactar minha vida, da família, da vizinhança, da comunidade?” Para saber ao certo, você decide ir à Prefeitura para saber: o quê? Quem? Para quem? Por quê? Como?
O roteiro acima é até trivial. A depender da cidade, o “novo” pode ser um condomínio, um galpão logístico, um aterro, uma usina, um “shopping”, um prédio de 15, 20 andares. Mas se repete com frequência nas realidades brasileiras: obras em escala desproporcional ao que já existe começam de repente, sem que as pessoas imediatamente afetadas sejam consultadas e tenham poder de veto ou mesmo opinar. Nunca de fato foi diferente; o licenciamento urbanístico antidemocrático é norma nos estados de exceção.
Casas, ruas, praças, vizinhança e natureza constituem bens em que nos referenciamos desde que nascemos, enquanto crescemos, moramos, brincamos, circulamos, nos encontramos, estudamos, trabalhamos, amamos, relaxamos, partilhamos e envelhecemos. Mas esse bem comum, o ambiente urbano e seus vínculos, têm simplesmente sido mutilados, da noite para o dia.
Desde fins da década de 2000, a degradação das condições de vida acelera-se a olhos bem abertos. Das pequenas às grandes cidades, na maioria dos bairros, construções fechadas/abandonadas proliferam-se; várias são depredadas-demolidas, lenta ou rapidamente, sob ações legais ou ilegais; impõem-se estacionamentos, galpões, prédios espelhados, baixos ou altos; cidades de muros.
A escala e a gravidade dos prejuízos de mudanças bruscas nas cidades recaem, como sempre, sobre os corpos que já sofrem, interseccionalmente, opressões de classe, racialização, gênero-sexualidade, capacitismo e especismo. Basta ver o terrorismo estatal-privado instaurado a cada novo empreendimento e “gestão” municipal sobre favelas, cortiços ou áreas centrais estrategicamente nomeadas “cracolândias”.
Esse enredo é, não raro, traumático para milhares de pessoas, disparando indignação, insegurança, intolerância, medo e violências. Estamos em 2024 e segue o apartheid nacional, ancorado no controle e licenciamento da terra. A “gestão” urbana hoje é a gestão do medo, controlando milhões de corpos pela instabilidade emocional individual e coletiva. Mas, ao final desse filme distópico, arrisco propostas para regenerar nossas cidades.
Fundações da destruição
Nos últimos quinze anos, um conjunto de políticas e normas legais que incide sobre as cidades brasileiras sofreu, paulatinamente, alterações substanciais, na esfera municipal, estadual, federal e/ou constitucional. O estouro da bolha imobiliária nos EUA em 2008/9 intensificou a flexibilização e a financeirização das terras urbanas para sua entrega ao circuito internacional – um dos setores mais influentes sobre agentes políticos no mundo -, aumentando a dependência colonial do Brasil de interesses estrangeiros. O licenciamento urbano entrou na mira, para permitir o aumento da exploração predatória do solo.
O controle e a administração de terras urbanas e a extração de “mais-valia” constituem, ao menos desde a Lei de Terras de 1850, um centro nevrálgico do capitalismo brasileiro e dos regimes político-institucionais que o sustentam até hoje. A terra é a estrutura que ancora as condições para esse modo de produção triunfar.
As cidades são basicamente agenciadas sob interesses de oligarquias regionais, mesmo que a serviço de interesses estrangeiros a elas. Mediante o uso da força estatal (e armada), impõem há cinco séculos o cercamento das terras e a tratam de forma absoluta, como se estivesse descolada de seu entorno. A propriedade privada está acima da vida, a Maioria sabe.
E o povo da rua? E o povo sem posses? E o povo sem terra? A esses, no máximo, nada. Nem mesmo opinar quanto a mudanças em ruas, terras comuns e natureza onde vivem. Milhões de corpos destituídos de direitos territoriais, que se somam a outros milhões dos povos da classe trabalhadora. Entre essa maioria brasileira avassaladora e o 1%, uma minoria média se intoxica de discursos de que “as instituições democráticas estão funcionando” (para quem?) e “de recorrer à Justiça” (sic), quando vizinhanças começam a ser ameaçadas ou adulteradas. Quem prioritariamente se beneficia dessa forma de governar é o 1% da população, a classe dominante em suas várias frações. A terra é organizada por e para quem tem dono.
Essa condição tem implicado a transformação radical da paisagem de cidades brasileiras, de pequenos núcleos antigos nos interiores do Brasil a, sobretudo, centros e periferias das metrópoles. A atualização colonial do urbanismo brasileiro renova a produção precária de intervenções urbanísticas e arquitetônicas horizontais ou verticais, que não se referenciam nem mesmo em critérios de habitação do início do século XX.
Em São Paulo, por exemplo, torres de 20, 30 andares são erguidas em qualquer rua estreita, comercializadas a milhares de reais o metro quadrado, enquanto muitas outras antigas permanecem “ocas”, abandonadas. Desocupadas total ou parcialmente por anos ou décadas, às vezes servem a serviços imobiliários de aluguel caro, de curta a longa temporada, exceto quando são devida e ecolegitimamente ocupadas por pessoas sem abrigo.
No lado de fora das terras cercadas da maior cidade do Hemisfério Sul, cresce vertiginosamente o número de vítimas da desestruturação familiar, da carestia, da precarização dos serviços públicos, das condições urbanas de vida e do aumento descontrolado dos preços da terra. Mais de 55 mil pessoas, população maior que a de 90% dos municípios brasileiros (IBGE, 2022), sobrevivem nas ruas da Capital do estado supostamente mais “desenvolvido”, “rico” e “cosmopolita”.
Em parceria com universidades privadas ou setores de públicas, governos induzem à destruição ambiental e a construção desenfreada de empreendimentos em quaisquer bairros, independentemente da demanda de quem mais precisa, das características ecológicas e das capacidades infraestruturais. Produzem o contexto ideal para colapsos socioambientais urbanos nessa etapa do capitalismo de desastres.
Com efeito, para a maioria da população nas cidades, são mais palpáveis o realismo cruel de Cidade de Deus, Tropa de Elite, O Som Ao Redor, Aquarius e Bacurau, do que milhares de palavras não-aplicadas de centenas de leis e normas brasileiras.
Engenharia da farsa
Todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente (…). (Art. 1º, § único, CFB, 1988.) Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (Art. 225, CFB, 1988.)
Os enunciados acima soam a ficção no urbanismo atualmente praticado em cidades brasileiras, de vários tamanhos ou regiões. O licenciamento urbanístico, conjunto de procedimentos que deve avaliar os impactos de mudanças sutis a drásticas nas cidades, está a séculos de distância de atender a essas palavras constitucionais. As comunidades afetadas dispõem de pouco ou nenhum poder e garantias de que a produção da mudança trará benefícios coletivos.
A degeneração socioambiental depende de formas específicas de licenciamento urbanístico nos 5.570 municípios brasileiros. Cada cidade tem uma estrutura e organização distintas, e os estados também. Mas um padrão é perceptível: Prefeituras cada vez mais tornam-se a caricatura de um carimbo viciado, aprovando todo tipo de obra incompatível, insustentável e mesmo inútil no contexto onde é executada, afetando centenas a milhares de pessoas em sua rota destrutiva. Em São Paulo, o governo aprova automaticamente mudanças, sem análise técnica de impactos socioculturais e ambientais a quem vive no entorno. O licenciamento, pelo que nos informam as paisagens de nossas cidades de sucessivas aberrações arquitetônicas e urbanísticas, tornou-se uma farsa protocolar.
No entanto, não faltam teses, estudos e avaliações críticas de experiências fracassadas (e das poucas bem sucedidas), nacionais e internacionais, no licenciamento arquitetônico e urbanístico; nem de princípios e diretrizes constitucionais, leis gerais, complementares e específicas, normas técnicas e administrativas. Na academia e em alguns setores de planejamento urbano-territorial (em extinção, precarização ou “reforma”, “modernização”), a literatura técnica é vasta, produzida por pesquisadoras/es e servidoras/es há décadas nas mais diversas regiões, universidades e administrações do país.
Já o arcabouço jurídico pós-1988 nacional é com frequência elogiado como “robusto”, “potente”, inspirado em ou inspirando recomendações e práticas internacionais. São vários dispositivos constitucionais, Códigos e Leis Ambientais, Estatuto da Cidade, “Planos Diretores”, Estatuto da Metrópole etc. Há uma miríade de órgãos públicos: de secretarias municipais e estaduais a autarquias federais, de conselhos locais de política urbana aos de categorias profissionais.
Sobram espaços, escopos, competências, atividades e poder (inclusive de polícia administrativa) para atuação pelo interesse público de fato, em respeito às pessoas no território sob mudança. Mas, historicamente, a emissão de autorizações para intervenções nas áreas urbanas brasileiras – da ampliação de casas a novos loteamentos, de elite ou populares, passando por centros comerciais e estádios – não é democrática, participativa ou transparente. Os governos tratam de uma maneira as “áreas formais” (onde se praticam contratos capitalistas do mercado de terras) e, de outra, as “informais” (onde formas semi-contratuais e precárias de posse predominam, assim como a (auto)construção em técnicas tradicionais). Em específicos territórios, as autorizações atendem eventualmente ao interesse de quem ali reside: o 1% – classe que, por sua vez, controla a maioria das propriedades do restante das cidades.
Há gestão distinta da terra (e dos corpos). Como há anos cantam Racionais MC’s, “o mundo é diferente da ponte para cá”.
A realpolitik urbanística
No caso de grandes empreendimentos, decisões são, na realidade, tomadas em gabinetes do Executivo e Legislativo, ou fora deles, sobre lustradas mesas de CEO’s de corporações e consultorias (inter)nacionais. Depois, são traduzidas em inacessível juridiquês por operadores legais. Projetos são protocolados e aprovados com um nível de representação gráfica e detalhamento que sequer seria tolerado no 3º ano das Faculdades de Arquitetura e Urbanismo.
O papel tudo aceita, até mentiras e esquemas criminosos. É corriqueira a aceitação tácita de desejos de agentes particulares e estatais com “auto-avaliações” (sic) de impactos ambientais, sem fé pública. Falsas análises “técnicas” recortam arbitrariamente trechos de Leis e Normas, atropelam diretrizes e determinações consagradas em documentos doutrinários nacionais e internacionais e ignoram jurisprudências e a ciência. Deveria ser óbvio que nenhuma avaliação é “técnica” apenas porque quem a assina está num cargo permanente ou temporário na burocracia estatal.
Agentes comissionados temporários se apropriam da caneta pública e deixam profundas consequências por gerações nos territórios. A impessoalidade, princípio constitucional da Administração Pública, torna-se uma miragem.
Muitos projetos são vendidos como “Parcerias Público-Privadas” (PPP). Na realidade, são a Privatização do Poder Público: contratos tão discricionários quanto obscuros são redigidos para escapar a qualquer controle de legalidade e responsabilização por desvios (recorrentes), sob a leniência ou lentidão (intencional ou prática) e o constitunegocialismo de órgãos de controle interno e externo municipais, estaduais e federais – sejam seus nomes Controladorias, Ministérios Públicos ou Judiciários.
A formação acadêmica nas faculdades de Arquitetura e Urbanismo, com fragilíssimo ensino, quando existente, de Direito, Economia Política e Administração Pública, produz gerações pouco conscientes e/ou mobilizadas quanto ao caráter estratégico da terra para a democracia e do caráter do licenciamento urbanístico na acumulação capitalista de poderes e reprodução de desigualdades.
Apesar de Leis e milionárias arrecadações de taxas de “responsabilidade técnica” profissional, Conselhos de Arquitetura e Urbanismo (CAUs) e Engenharias (CREAs) também assistem ao colapso do licenciamento e a destruição socioambiental, com ações até agora muito aquém de seu pleno poder. Tornam-se instituições de interesses e disputas corporativistas, espelhando Judiciários país afora, enquanto as hecatombes socioambientais se amplificam em todas as regiões.
Audiências públicas, se realizadas, são pró-forma: não alteram o já decidido. Obras públicas-e-privadas em total desconsideração a quem e ao que já existe no território, mesmo quando flagrantemente negativas, polêmicas e superfaturadas, adquirem chancela da Administração Pública, sob a observância de Ministérios Públicos, nas comarcas da “Justiça”. O volume morto da moralidade, ética e transparência se reflete na destruição ambiental e urbana.
Estão armados o autoritarismo e os conflitos de interesse em processos administrativos e alvarás de fachada. Transformações são impostas de cima abaixo, manu militari se assim os Poderes escolherem. A qualidade do resultado nós sentimos em nossa experiência nas ruas das cidades brasileiras.
O licenciamento, como hoje praticado hegemonicamente, fracassa e continuará fracassando.
Redes de interesses
O urbanismo neo(social)liberal azeita as engrenagens do licenciamento nas cidades. Sua defesa ideológica e produção real articulam uma vasta rede de interesses diretos ou indiretos: o extrativismo mineral e vegetal, seja de corporações transnacionais, o mercado paralelo ou agrupamentos paramilitares nas pontas, em terras indígenas e áreas de proteção ambiental; a indústria da transformação (siderurgia, metalurgia etc.); indústria automobilística; grandes empresas de infraestrutura e produção imobiliária (distinta da pequena e artesanal construção civil, atuante em boa parte das áreas “informais”, à margem do licenciamento urbanístico); empresas privadas de “gestão de segurança” de condomínios e bairros; operadores de transporte coletivo privatizado; concessionárias de grandes serviços (de transporte metropolitano, saneamento etc.); consultorias de planejamento estratégico e “soluções” urbanas; escritórios de arquitetura, urbanismo e engenharia; o complexo financeiro nacional-estrangeiro, com destaque para bancos, fundos de investimento e agências de avaliação; empresas de entretenimento urbano, como grandes eventos, turismo e consumo de bens e “experiências”; plataformas de aluguel e venda de imóveis, especialmente de curta temporada; universidades privadas e setores das públicas; o aparato de propaganda, de agências de publicidade e marketing; e grandes empresas de imprensa.
Essa articulação de poderosíssimos agentes da economia política capitalista evidencia a função estratégica do licenciamento, e afeta a maioria da população. Especialmente após Junho de 2013, o golpe de 2016, a pandemia da Covid-19 e em todas as eleições, governar cidades significa, para todos os partidos políticos, a entrega dos setores de licenciamento, urbanismo, obras e engenharia à gestão público-privatizada de parceiros e consultores externos à Administração, que têm sido bem sucedidos em demonstrar o autoritarismo e cinismo de sua atuação. A porta-giratória de pessoas e interesses roda incessantemente.
A cada campanha eleitoral e governo, cada segmento se organiza em torno de candidaturas, apresentando-se como “parceiros” da sociedade e do setor público. São na verdade quem paga a banda, para depois escolherem a música da política de destruição de cidades.
A música do status quo negacionista de nossos colapsos urbanísticos expressa-se na imprensa hegemônica, que sempre atribui culpa à natureza (água, ao fogo, ao vento e a terra), mas jamais aos seres humanos dominantes no controle dos Poderes. Não à toa, propagandas políticas dominantes fundam a “desregulamentação”, “burocracia”, “flexibilização”, “modernização”, “licenciamento express” ou “acelera SP”, aprofundando a degradação das cidades e os riscos às vidas diante da emergência climática.
Esse filme se repete, através de uma vasta rede de tentáculos, inclusive intelectuais, em tantas cidades brasileiras quanto possível para governar-extrair a acumulação ilimitada da terra e dos corpos controlados. A atuação combinada em três níveis (municipal, estadual e federal) e cinco esferas de Poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário, Forças Armadas e Imprensa) coloniza e embota a imaginação da maioria da população, de que qualquer realidade melhor e sustentável pode ser pensada e praticada em seu cada vez mais curto horizonte de vida(s).
Impostas de cima abaixo, essas decisões têm reforçado as desigualdades locais, regionais e nacionais, pois são guiadas por interesses obscuros, corporativismo, patrimonialismo, colonialismo e outros fenômenos históricos da sociedade brasileira. Nossas cidades hoje cristalizam valores e práticas supremacistas cispatriarcais brancas da classe dominante.
A crise é estética. A retórica das decisões e projetos de grandes transformações urbanísticas e empreendimentos civis ou industriais inclui chavões como “desenvolvimento”, “geração de empregos” e “inovação”. Na prática, ocorre o oposto: subdesenvolvem os territórios, porque destroem construções que já consumiram matéria-prima mineral e vegetal e trabalho humano, com impactos já causados à natureza e aumentam as desigualdades; geram menos empregos por metro quadrado que a recuperação e o restauro de qualquer edificação pré-existente, que remuneram maiores salários; e são anacrônicas e arcaicas, pois não respondem à necessidade de reciclagem e redução drástica de consumo de energia e bens naturais diante da emergência climática.
A participação política, com o poder emanado do povo da terra, e o cuidado com o meio ambiente aliado às ciências, podem garantir um meio ambiente ecologicamente equilibrado para o futuro para as presentes e as próximas gerações. Mas esses princípios constitucionais simplesmente não atendem (mais) a interesses de extração de mais-valia do trabalho dos corpos e da terra urbanos.
A polis está privatizada e a destruição da urbanidade está em metástase.
Desenhando a transformação
Esbocei acima um esquema da produção-destruição arquitetônica e urbanística em cidades no Brasil, sob a emergência climática do regime petrossexorracial do capitaloceno (Preciado, P. Dysphoria Mundi). Mudo o enfoque agora para circular ideias e sugerir caminhos. Se, como busquei ilustrar, existe amplo arcabouço legal, institucional e teórico e conhecimento científico para enfrentarmos a terra arrasada e a farsa, enfatizo que o imaginário e o poder das comunidades nos territórios ainda estão controlados e censurados.
Para desbloquear a imaginação, as artes oferecem inspiração. No cinema, Aquarius e Bacurau oferecem referências para a resistência e a formulação de outros urbanismos. Por um lado, na escala do sujeito individual, uma potente mulher resiste à expulsão de sua morada por métodos asquerosos e escatológicos de pressão do setor imobiliário; por outro, o sujeito coletivo se organiza em aliança entre todas as pessoas nativas de uma cidade — tão fictícia quanto real há 524 anos. Articulam-se em unidade na diversidade, para traçar uma linha de defesa de seu território originário diante do invasor-colonizador-predador e do seu preposto, o Prefeito-candidato.
Na literatura, já são muitas as escritas em defesa de mundos contra-coloniais para mudarmos o sistema. Lembro, por exemplo, de Ailton Krenak, Silvia Federici, Nego Bispo e bell hooks. Krenak, assim como tantas/os pensadoras/es indígenas, argumenta como precisamos urgentemente, por nossa sobrevivência, des-hierarquizar nossa existência, nos percebermos e agirmos como parte da natureza, e não acima dela. E que o acúmulo de propriedade está nos levando ao colapso ambiental climático. Mátria.
Federici demonstra em O Calibã e a Bruxa que a privatização da terra foi pari passu acompanhada pela sujeição do corpo da mulher, e de todos os outros corpos considerados desviantes da norma dominante, para garantir as fundações do capitalismo, desde a Inquisição. Revelar a dominação do cisheteropatriarcalismo supremacista branco no controle da terra é fundamental para, em nossas cidades, produzir alianças de gênero, raça e classe e desatar as lutas urbanas de suas amarras de 1850, instituindo o controle por quem está na terra.
Em A terra dá, a terra quer, o pensamento revolucionário contra-colonial de Antonio Bispo dos Santos (viva! Presente!) aponta para o autogoverno, caro a territórios quilombolas. Vislumbro um horizonte de aquilombamento em cada um dos milhares de bairros populares de 5.570 cidades. Comunidades auto-organizadas sempre serão mais eficazes, através de seus laços culturais ancorados na terra que pisam, para identificar e decidir as reais necessidades de trans-formação urbanística e arquitetônica de seus territórios, com práticas locais ecológicas, acessíveis e democráticas.
bell hooks (viva! Presente!) nos lembra que amor é prática, que pode ser revolucionária, livre e emancipatória – o que também nos evoca a práxis de Paulo Freire. As alianças que precisamos forjar pressupõem que pessoas amem-se e amem a Terra. E amor só o é se mistura reconhecimento, respeito, compromisso, confiança, carinho, afeição, honestidade e comunicação aberta, não-violenta.
Essas referências me inspiram a propor outros urbanismos e controles da terra, humanizados, ecológicos e democráticos. Podemos refundar as práticas urbanas e sermos raízes de regeneração das nossas terras arrasadas, que nos são legadas por uma rede de interesses que perfura fundações de destruição em sua política real de engenharia de farsas.
Semear a regeneração
A Terra só será livre se for para o bem comum. Acredito ser possível uma pedagogia e ação urbanísticas inéditas no Brasil, organizada no amor entre seres viventes contra-coloniais, para enfrentar a minoria do 1% do ódio e da mentira. A consciência de alteridade na organização de liber(t)ação de todos os corpos fortalecerá a unidade na diversidade.
Nossa transformação será pelo cuidado coletivo cotidiano, cocriando o bem viver. Algo próximo já foi rascunhado no Brasil em 1988, para constituir o rés público dessa federação de povos:
assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento [sic], a igualdade e a justiça
como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem
interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias.
Em vez de um licenciamento estatal-privado pseudotécnico e pseudemocrático, imposto por secretários-gestores estrangeiros aos territórios que afetam, a transformação de nossas vidas virá por outras licenças da terra: comunitárias e ecológicas. Refundaremos os processos e a administração da terra, sob os princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência na Administração Pública (como no Artigo 37).
Faremos os urbanismos se aproximarem de atender aos objetivos fundamentais de I – construir uma sociedade livre, justa e solidária; II – garantir o desenvolvimento nacional; III – erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e IV – promover o bem de tod[e]s, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
A adaptação do licenciamento a parâmetros democráticos de arquitetura, urbanismo e de justiça socioambiental é possível com análises multidisciplinares e por olhares, vozes e lugares plurais. Como o impacto de cada transformação urbana, em terra pública ou privada, depende de suas dimensões projetadas, o processo de debate e avaliação segue até a legitimação ser alcançada na terra. É possível extrapolar essa lógica para novas obras de arranha-céus, avenidas, metrô, ferrovias, rodovias, barragens, usinas, linhas de transmissão e outros empreendimentos que afetam áreas urbanas imediatas ou adjacentes. Quanto maiores e mais complexos são, também serão seus potenciais impactos no meio ambiente construído, natural e cultural local, e até nas relações de trabalho.
Todas as pessoas potencialmente deverão ter garantidas as condições materiais e subjetivas em processos de consultas livres, prévias, informadas e em linguagem acessível quanto a mudanças em sua terra, especialmente as induzidas por agentes estrangeiros à comunidade. Qualquer autorização deverá ser emitida em colegiados na base dos territórios afetados, acompanhados de serviço técnico permanente e reconhecido socialmente.
Um licenciamento livre e humanitário é no tempo em que a população afetada precisa e decide, não do tempo acelerado do capital e do governo. A pressa pela destruição é inimiga da democracia e da Terra. A emergência envolve deslocarmo-nos do urbanismo neo(social) liberal rumo a urbanismos ecossocialistas.
Essa efetiva refundação dos urbanismos e do controle da terra no Brasil começará com a moratória da destruição.
Moratória: rumo a urbanismos ecossocialistas organizados e praticados por comunidades
A destruição de qualquer construção é uma ofensa ética-moral, autoritária e ecológica: por causa de setores dominantes, vemos o desperdício de muito material extraído da natureza e com muito trabalho humano, ao longo de séculos – especialmente por mãos negras, indígenas, de trabalho doméstico e de reprodução social – para nos legar o que está construído diante de nossos olhos. A construção mais verde é a que já existe. Todo edifício existente deve ser utilizado, atualizado, preservado e ressignificado, em vez de abandonado, depredado, destruído e apagado. Todo reuso de edificação existente gera mais trabalho e renda por metro quadrado do que qualquer construção nova. No licenciamento urbano, ambiental e cultural, como em qualquer política pública para a emergência climática, a inovação real é que o futuro é ancestral. A economia circular democrática é dinâmica. Para isso, precisamos declarar a moratória de qualquer nova destruição e de novos empreendimentos imobiliários nas cidades.
A moratória deve ser sucedida pelo condicionamento de qualquer autorização de novas obras à demanda real, por quem precisa de moradia em cada cidade. Qualquer autorização de destruir o pré-existente só será emitida após análise minuciosa das construções já existentes em cada cidade, seu grau de ociosidade, sua inclusão em listas de prioridade de reciclagem arquitetônica e sua localização-condição frente às demandas de trabalho e integração comunitária em cada microrregião – na escala do bairro.
Toda demolição de construção deve antes ser mensurada em tudo que já consumiu e ainda consumirá, e tudo de memória que apagará; só então avaliada, e altamente tributada, se vier a ocorrer. Só autorizar qualquer novo prédio apenas quando todos os existentes estiverem em uso é uma medida lógica. Deve haver veto à operação de empresas de destruição urbanística e imobiliária que não estejam sediadas na própria cidade, sempre identificadas no espaço público.
O licenciamento urbanístico será operado no próprio território, sob práticas comunais de democracia direta, e parâmetros científicos de justiça socioambiental. Superaremos as hierarquias e fechadas instâncias governamentais, que servem para obstruir condições realmente democráticas de exercício de poder. Nesses espaços de diversidade, novas linguagens, vocabulários e repertórios de lutas pelas Vidas florescerão, neutralizando adversidades. Cada destruição deverá ser abertamente debatida e avaliada. É uma medida econômica, eco-lógica, ecossistêmica. Eco.
A gestão urbana de medo só será superada se houver conhecimentos livres. O licenciamento urbanístico deverá ser balizado pela avaliação, em tempo real, de bases de dados alimentados e cruzados disponíveis em sistemas de bancos, cartórios, locadoras de imóveis, cadastros fiscais e fundiários municipais, estaduais e federais. Sua automatização por algoritmos em código aberto, de acesso responsável e identificável, permitirá indicar a desocupação e o descumprimento diários dos parâmetros oficiais daquele território. Como tudo que é feito em cada pedaço de terra tem o potencial de afetar quem vive ao lado e ao redor, toda terra tem interesse público. Saber os nomes de quem a detém servirá para equalizarmos as condições de transformação. Paz entre nós.
Um licenciamento urbano refundado é condicionado pela demanda real, não especulativa, da terra, identificada, debatida e aprovada em colegiados eleitos diretamente pela população que vive no território. Qualquer novo empreendimento deve ser precedido de respostas, cientificamente embasadas e coletivamente avaliadas e deliberadas, a questões como:
● Existem construções desocupadas ou abandonadas nesse(s) território(s)?
● Se sim, quais instrumentos de Justiça redistributiva de terras adotaremos imediatamente, comunicando seus responsáveis, antes de autorizar qualquer nova destruição?
● A demanda por destruição resultará na construção de edifícios acessíveis a pessoas em condições subalternizadas, mediante comprovação científica e controle social?
Com tais informações básicas, a ciência urbanística terá um salto de qualidade técnica. E nós, de democracia e saúde. Equilibraremos a distribuição das terras para o cumprimento de suas funções constitucionais.
Simultaneamente, nossas políticas urbanas ecossociais devem deslocar diametralmente a tributação municipal, estadual e federal. Conselhos de eleição direta de democratização de impostos precisam debater, em assembleias permanentes, a tributação pesada de atividades e serviços de destruição, de especulação, de propaganda de novas construções, de uso de combustíveis fósseis e de consumo supérfluo e antiecológico. Precisam também aplicar os ônus às pessoas físicas que promovem esses desserviços às vidas humanas e não-humanas. Com o controle popular direto de orçamentos hoje bilionários, poderão ser sistematizadas cronologicamente as mudanças que cada aquilombamento humano decidir necessárias e urgentes em seus bairros e cidades.
Esses círculos de democracia poderão também decidir beneficiar finalmente os serviços e trabalhos de preservação e cuidado com as vidas, redistribuindo o excedente do 1% para trazer essa fração ao mesmo patamar da Maioria. Na Arquitetura e Urbanismo, isso significa valorizar as técnicas tradicionais e a conservação e ressignificação do legado material e imaterial nos edifícios e espaços das cidades. Sua transmissão intergeracional de modos de viver e linguagens escritas, corporais e simbólicas, incorpora a pluralidade de corpos que habitam cada território.
A economia (política) das pessoas e organizações da construção civil de pequeno porte – historicamente precarizadas em tantos territórios brasileiros – integra-se muito melhor ao tecido social local e ao meio ambiente. Incentivar Projetos de Escolas de Consciência, Artes e Ofícios, independentes e comunitários, ajudará as cidades dos brasis a serem as terras do futuro no presente. Isso significa também transformar a Regeneração de cada Construção Comum em ato de Festa, pulsando a diversidade de vidas e culturas que constituem nossas cidades.
Enfim, urbanismos só serão ecossocialistas se orientados e praticados com antirracismo, antimilitarismo, anticolonialismo, antipatriarcalismo, anticapacitismo, antiespecismo e por um ecotransfeminismo queer. O caminho rumo à sociedade do Bem Viver pressupõe a autodeterminação dos corpos e povos.
Eu sei. É muito. Mas agora o verbo e as palavras estão em circulação, ensaiando outros filmes. Para facilitar a comunicação, a organização e a agitação, deixo algumas propostas iniciais em “8 Códigos abertos 1.0 para desatar lutas urbanísticas”:
Parece revolução.
E é.