O que aprender com Gramsci em 2024?
030818-15-antonio-gramsci-history-science-1024x576-66984416_0

O que aprender com Gramsci em 2024?

Considerações sobre o legado de Antonio Gramsci para a atualidade

Carlos Carujo 14 set 2024, 10:53

Foto: brewminate/CC

Via Esquerda.Net

Apresentação realizada no Fórum Socialismo 2024. O título desta comunicação retoma o título proposto para a sessão.

1. Antes de tirar lições sobre Gramsci sejam elas mais ou menos definitivas é preciso começar por duas advertências.

1.1. Em primeiro lugar, habitualmente chegamos a Gramsci através de alguns outros autores e da citação de um conjunto (muito limitado) de trechos. Esta conjugação, assim como a história dos usos políticos a que foi sujeito, forjou as imagens dominantes de um Gramsci culturalista, inscrito num campo que tendencialmente se afasta da política, ligeiramente marxista ou já nem sequer isso, palatável para a academia, que, contudo, não colam bem com o que o autor era. Ele que há exatamente cem anos, em 1924, assumiu a direção do Partido Comunista de Itália por uns breves dois anos e que nunca renegou a sua filiação.

Felizmente, tem-se desenvolvido um trabalho enorme de análise fina que nos desvelou um outro Gramsci, diferente do herdado das leituras mais ligeiras, e até mesmo, por exemplo, de críticas mais apuradas como as de Louis Althusser e Perry Anderson (feitas aliás muito antes daquele trabalho mas que continuam a ser as determinantes para a forma como tem sido lido o nosso autor ao longo das últimas décadas).

1.2. Uma segunda dificuldade está ligada com a estrutura interna dos próprios escritos mais importantes de Gramsci, os Cadernos do Cárcere. Empreendimento gigantesco, escrito nas condições difíceis da prisão fascista, do isolamento político e do crescente mal-estar causado pelo avanço da doença. Incompleto, feito de notas mais ou menos desenvolvidas, escritas para si próprio e que não chegam a uma conclusão definitiva, a nenhuma forma finalizada.

Para ler de forma produtiva estes cadernos é preciso por isso dedicar muita atenção ao contexto e à linguagem. O contexto enciclopédico das inúmeras referências diretas que percorrem séculos da história e cultura italiana e europeia. Mas também e sobretudo o contexto das discussões políticas e culturais a que respondem a cada momento sem, as mais das vezes, o referirem explicitamente.

A linguagem utilizada levanta-nos igualmente problemas. Gramsci respiga conceitos de outros autores e tradições políticas e filosóficas, desloca-os, amplia-os e usa-os em sentidos diferentes ao longo dos textos, complicando-nos a tarefa. A sua leitura implica portanto (em sentido diferente do que se possa dizer genericamente sobre qualquer autor) um cuidadoso estudo filológico e genealógico que escave muito para além da leitura direta ou da tomada das suas palavras pelo seu valor facial.

1.3. Não queria com isto, de forma alguma, desanimar o leitor prospetivo de Gramsci. Antes pelo contrário, apesar do que possa parecer. E também não queria fazer o papel arrogante de quem vem dizer que isto tudo é afinal muito mais complicado do que vocês pensavam que era. Queria apenas começar por dizer que, antes de aprender com Gramsci, se calhar teremos que desaprender muito do que nos tem sido dito que ele foi. E que isso não o podemos fazer aqui hoje no espaço que nos é reservado.

2. Dito isto, saliente-se que há toda uma caixa de ferramentas conceptuais gramscianas que tiveram e continuam a ter sucesso. Filosofia da Praxis, classes subalternas, hegemonia, intelectuais orgânicos, revolução passiva, guerra de movimentos, guerra de posições, Príncipe Moderno são alguns dos conceitos que ganharam vida própria, tantas vezes apesar do autor.

Nada contra, obviamente, com que sejam utilizados de forma distante da dele. São até índices da sua inventividade e fertilidade. São possibilidades de caminhos proveitosos abertos em áreas muito diversas. Mas não são o pensamento do Gramsci. E é preciso fazer esta distinção.

Chegados aqui, o que posso fazer é apenas sobrevoar algumas das suas ideias muito breve e imprecisamente. Não propriamente para ensinar algo sobre o pensador sardo mas para sugerir pistas.

2.1. Ponto de partida: Gramsci foi um pensador marxista e um dirigente político comunista. O que escreveu na prisão são textos inequivocamente a partir desta perspetiva por mais que muitos se tenham dedicado ao exercício pseudo-ortodoxo de comparar alguns desses trechos mais conhecidos ou daquelas imagens de Gramsci mais difundidas com a sua própria imagem de Marx. O resultado destes exercícios costuma dizer mais sobre a imagem de Marx que este tipo de críticos têm do que daquilo que Gramsci tenha sido ou defendido.

2.2. O seu é um marxismo que nos consegue interpelar ainda hoje por ser aberto, crítico, anti-determinista, anti-economicista. Chocava portanto corajosamente com o que era o pensamento dominante na IIª e IIIª Internacional e com toda uma tradição política que persiste e que há que não negligenciar ainda que as suas expressões na academia e a sua influência na “intelectualidade” não tenham hoje o papel que já tiveram.

Por um lado, Gramsci criticou as bases daquilo que vai passar a ser conhecido sob o estalinismo como “diamat”, uma forma de materialismo dialético estrito. Fê-lo, ironia da História, através da crítica ao pensamento de alguém que se vai tornar vítima do estalinismo, Bukharine, concretamente da leitura do seu “manual de Sociologia”, a quem criticou nomeadamente o materialismo vulgar e o cientismo grosseiro.

Por outro lado, convém não esquecer, também criticou os “desvios” idealistas e subjetivistas dos teóricos socialistas e comunistas que enxertavam outras filosofias no marxismo ao partirem do princípio que este não é, nem tem, uma Filosofia própria. Ao mesmo tempo que desenvolveu uma crítica detalhada do pensamento do expoente do hegelianismo e do liberalismo da sua época, Benedetto Croce.

2.3. Gramsci apresentou a sua perspetiva como uma Filosofia da Praxis (termo que retoma de Antonio Labriola). Esta ancora-se no que designa como um historicismo absoluto, uma imanência absoluta e um humanismo absoluto e tem como uma das suas principais facetas não se fechar em si como busca de uma verdade última.

Para ele, a linguagem e as “conceções do mundo” vivem num campo de disputas permanentes de relações de forças sociais. Gramsci via no senso comum conjuntos de aglomerados diversos, mutáveis, confusos e contraditórios, contradições estas que se manifestam ao nível individual ou ao coletivo e que são derivadas dos “sedimentos” de várias conceções do mundo que nele se foram acumulando e das dinâmicas dessas lutas de ideias (e não só claro) que o atravessam. Mas, ao contrário das leituras reducionistas e caricaturais deste, leva-o muito a sério, considerando que há um “núcleo saudável” no seu interior com que há que contar.

Filosofia da Praxis e senso comum terão assim uma relação dialética complexa. E o objetivo desta não será criar um sistema absoluto de pensamento. É tornar este núcleo são mais unitário e coerente. É ser ao mesmo tempo crítica imanente do senso comum e da Filosofia dos filósofos profissionais. É manter a consciência da necessária incompletude do seu projeto, da sua historicidade, através de uma capacidade auto-reflexiva e do trabalho de desmistificação dirigido não apenas contra adversários mas voltado também para si própria. É uma contribuição precária para a capacidade emancipatória de agir das pessoas exploradas que não se vê como separada das suas vidas.

2.4. Com a ideia das conceções do mundo como construções sociais no meio de relações de força entrámos já em pleno domínio da análise da hegemonia enquanto conceito simultaneamente filosófico e político, como não podia deixar de ser. Gramsci defende que “a Filosofia da Praxis concebe a realidade das relações humanas de conhecimento como um elemento da hegemonia política”. As relações de poder não se esgotam obviamente no exercício da coerção, envolvem igualmente os dispositivos de consenso que moldam estas conceções e influenciam ações e inações.

2.4.1. Diga-se, em primeiro lugar, que Gramsci não sacou a hegemonia como um coelho da cartola. Trata-se um conceito amplamente debatido na IIIª Internacional. Na sua formulação leninista inicial dizia respeito à relação do operariado com o campesinato, à forma de construir uma aliança das classes subalternas, para o dizer em linguagem gramsciana, que conquistasse (e aguentasse) o poder político. Do ponto de vista do proletariado, Gramsci projeta-o para as questões que levanta o momento pós-revolucionário mas também isso não é novidade e, apesar da ideia de hegemonia não ser de uso tão corrente então, o que lhe estava subjacente era equacionado na União Soviética nas discussões sobre “liderança” e sobre a relação entre o partido, o operariado no poder e toda a sociedade.

Longe de ditadura do proletariado e hegemonia serem opostos que se jogam em domínios que não se cruzam, são elementos em relação dialética que se pressupõem um ao outro. Assim, há que não esquecer, a hegemonia está também na base do poder soviético.

2.4.2. Isto conduz-nos, em segundo lugar, à ideia de que a hegemonia é um conceito eminentemente de classes e não meramente uma análise vaga sobre uma forma de poder soft na sociedade civil que vai para além do poder político. Nos Cadernos do Cárcere procura-se uma teoria da hegemonia do proletariado para que possa ser aplicada e analisam-se os mecanismos da hegemonia burguesa para encontrar maneiras de a derrubar.

2.4.3. Em terceiro lugar, o conceito de hegemonia, em sentido lato, remete-nos para uma análise histórica concreta. A preponderância do papel da hegemonia nas sociedades ocidentais nasce para Gramsci no âmbito de uma onda expansiva do poder burguês que vai desde a Revolução Francesa até 1848. Uma época na qual o Estado passa a investir em todos os níveis, intensifica-se esta produção de consenso e a integração das classes subalternas, desenvolve-se o que se chama a sociedade civil.

Com a Primavera dos Povos, em 1848, e a seguir com a Comuna de Paris, em 1871, abre-se um período de crise orgânica deste poder burguês. É neste contexto que se pode aqui aplicar outro conceito importante para Gramsci, a “revolução passiva” (termo emprestado a Vincenzo Cuoco que o usou num sentido limitado para explicar a revolução napolitana de 1799). Gramsci experimentará a noção em reflexões sobre experiências diferentes e esta terá níveis diferentes de abrangência. Mas, num sentido mais amplo, aplicar-se a este período histórico de transformações de cima para baixo, de “revolução sem revolução” de movimentos em que “tudo deve mudar para que tudo fique como está”, parafraseando a célebre frase do romance “Il Gattopardo” de Giuseppe Tomasi di Lampedusa.

2.4.4. Em quarto lugar, a hegemonia é um conceito político-estratégico

2.4.4.1. A indicação deste seu carácter estratégico pode limitar-se ao habitualmente sublinhado: a necessidade de uma forma diferente de assalto do proletariado ao poder no Ocidente. Colocada desta forma, não será propriamente uma revelação. A distinção “político-geográfica” entre “Ocidente” e “Oriente” e a ideia de que não se pode reproduzir a Ocidente a experiência da revolução russa já tinha sido sublinhada por Lenine, Trotski e tantos outros.

Gramsci aprofunda esta reflexão através da metáfora (que também não é sua e vai buscar às discussões da Internacional) da passagem da “guerra de movimentos” para a “guerra de trincheiras” (mudança da forma de guerra que ocorreu na Iª Guerra Mundial). A fraqueza da sociedade civil a Oriente faz com que o assalto puro e simples ao poder de Estado possa triunfar. A Ocidente há um intrincado sistema de trincheiras (na sociedade civil) que impede que esse triunfo seja tão “fácil” (entre todas as aspas possíveis dados os sacrifícios que implicou a revolução bolchevique).

Aconteceu que uma certa leitura desta metáfora deu azo a que (mais uma vez apesar de Gramsci) se passasse a uma visão ultra-“defensiva”, a um abandono da perspetiva revolucionária, à ideia de que aquela luta prolongada pela hegemonia se faz meramente através da entrada nos aparelhos da hegemonia burguesa.

Apesar de tudo, o pensamento de Gramsci não autoriza as leituras mais reformistas que dele foram feitas. A guerra de posições é uma estratégia defendida em determinado contexto, entendida como uma luta ofensiva num terreno difícil, não escolhido. Não afirma a inexistência da possibilidade de crises profundas (orgânicas) do poder burguês. Não é nunca uma desistência.

2.4.4.2. Mas este debate estratégico não pode deixar de ser visto no âmbito da discussão estratégica concreta da IIIª Internacional e da sua viragem para a teoria do “terceiro período” do capitalismo, para as teses da social-democracia ser um “social-fascismo” e para a ideia de que se estava então na iminência de uma onda revolucionária.

A metáfora da máquina de guerra liga-se pois ao “problema” que ocupava muitas mentes comunistas na altura: porque não aconteceu a revolução nas sociedades capitalistas avançadas. Se a questão que já era colocada antes, ela foi acentuada com a crise económica que começou em 1929. Um caminho economicista determinista parecia implicar que o colapso capitalista estaria agora ao virar da esquina e determinou a sua política por isso.

Gramsci coloca a questão da relação de forças de uma forma mais elaborada, não acompanha a viragem estalinista e continua (na prisão, afastado na prática de qualquer influência prática) a defender a posição leninista da “frente única da classe trabalhadora” (que é fundamental não confundir com a tática da “frente popular” que marcará um período posterior da Internacional Comunista).

É através deste prisma que se podem entender as críticas à política do “assalto frontal” ao poder do Estado nos Cadernos, curiosamente dirigidas muitas vezes ao conceito trotskista de “revolução permanente” e não à política estalinista que passou a estar em vigor ao nível internacional.

2.4.4.3. Ressalve-se ainda, apenas como nota, que Gramsci não se limita a aderir a uma leitura “geográfica” abstrata de uma cisão político funcional Ocidente/Oriente. As suas análises concretas levam-no a olhar por exemplo para os EUA, onde “a hegemonia nasce na fábrica”, o poder burguês precisava de menos intermediários e a sociedade civil não estava desenvolvida da mesmas forma, e para a Itália onde sociedade civil era fraca comparativamente com países como a França ou a Alemanha.

2.4.4.4. A rematar esta parte reforce-se portanto uma ideia que não se conjuga com a visão mais simplista de Gramsci: o conceito de hegemonia não implica um binarismo (ou “antinomia”) entre consenso/coerção separados entre si e muito menos a escolha de fazer a luta só do lado de uma disputa das ideias que se tomaria como uma condição necessária mas sempre por realizar para um avanço revolucionário que nunca iria acontecer.

Hegemonia implica dialética. Na base desse poder político que tem o monopólio da coerção está a hegemonia (a qual pode não estar isenta de momentos de força). É a partir dela que este se constitui (como no caso bolchevique como já se afirmou) e é ela que o mantém. Funções hegemónicas encontram-se a todos os níveis da política nacional e internacional, imbricando consenso e coerção. Pelo que, em última análise, guerra de trincheiras e de movimento não se haverão de excluir eterna e definitivamente.

2.5. E para entender a questão da hegemonia seria necessário ainda analisar (de forma bem detalhada do que aqui o poderemos fazer) o papel do conjunto de agentes sociais a que se chama intelectuais.

2.5.1. Comece-se por clarificar que Gramsci não se remetia ao conceito tradicional de intelectuais. Parte de uma noção alargada de intelectuais que afirma que todos os seres humanos são, em certo sentido, intelectuais, apesar de nem todos ocuparem socialmente funções intelectuais. Estas, as que definem assim o chamado intelectual, são funções organizativas. Daí que o intelectual em Gramsci não seja apenas o grande académico ou opinador profissional. Os intelectuais são organizadores e mediadores na criação e transmissão de hegemonia. São “a camada social encarregue de gerir a superestrutura do bloco histórico”. Ou, como alguém disse, são os “funcionários da superestrutura”.

2.5.2. Para ele, cada classe essencial “cria” os seus intelectuais. É a este propósito que nasce a distinção entre intelectuais orgânicos (estes, que são expressão orgânica da classe) e os tradicionais (que são os antigos intelectuais orgânicos de classes outrora dominantes, sendo o exemplo mais fácil de apresentar os eclesiásticos que tinham sido intelectuais orgânicos do sistema feudal). Assim, ao contrário do sentido em que por vezes o termo é utilizado, “intelectual orgânico” não remete para um “intelectual engajado na luta” (muito menos para o “académico que assina abaixo-assinados”).

Gramsci está aqui interessado praticamente nos dois tipos de intelectuais. Para compreender e derrotar a hegemonia burguesa é preciso compreender os papéis específicos dos seus intelectuais orgânicos (e as trincheiras que escavam). E é necessário construir uma camada de intelectuais orgânicos da classe trabalhadora. Sendo a sua natureza necessariamente diferente das estruturas intelectuais dominantes e permanecendo em grande medida uma tarefa ainda por realizar.

Por outro lado, os intelectuais tradicionais não têm um papel imediato do ponto de vista da estrutura económica, afirmam-se até como independentes desta e veem-se muitas vezes como classe à parte a partir do seu “espírito de corpo”. Mas guardam influência política e social, sendo peças nestes tabuleiros cruzados dos combates hegemónicos. Apesar dos intelectuais orgânicos da classe dominante influenciarem em grande medida os outros intelectuais, há uma contenda em aberto pela sua influência.

2.5.3. Não acreditando numa determinação direta e imediatista da estrutura económica sobre todos os processos sociais, Gramsci pensava ser necessário compreender o papel dos intelectuais no desenlace de processos históricos anteriores e os seus efeitos na relação de forças atual da sociedade sua contemporânea.

A questão dos intelectuais surge assim historicamente situada. O filósofo comunista dedicou parte do seu tempo nos últimos anos de vida à investigação das vicissitudes do Risorgimento, o processo de unificação tardia de Itália que, acreditava, continuaria a marcar a política do seu país. A análise do papel dos intelectuais no Risorgimento serviu para responder à questão sobre porque não houve um jacobinismo italiano, porque então os “moderados” venceram o Partido da Ação” determinando uma construção estatal à volta da solução piemontesa. Para lhe responder e para compreender a forma específica da intelectualidade italiana, a sua análise recua até Renascença italiana e à sua incapacidade de produzir hegemonia popular ao contrário do processo da Reforma luterana. E à influência da Igreja Católica, determinante no “papel cosmopolita” assumido pelos intelectuais italianos que os afastou da construção de uma “vontade coletiva nacional-popular”.

2.5.4. Hegemonia e criação da “vontade nacional-popular” levam-no ainda a analisar domínios como o folclore e a literatura popular por um lado, e aquilo a que chama “aparelhos de hegemonia”, dispositivos, públicos ou privados, que incluem o sistema educativo, os jornais, instituições religiosas, sindicatos ou até grupos como o Rotary Club entre outros.

2.5.5. Sublinhe-se por fim que a compreensão da hegemonia burguesa na Itália da época não pode ser dissociada da temática que já ocupava Gramsci antes de ser preso, a “questão meridional”, isto é a divisão de Itália entre o norte rico e industrializado e o sul pobre e rural costurada pela aliança entre burgueses do norte e grandes proprietários rurais do mezzogiorno.

Neste esquema de poder, destaca-se a importância dos intelectuais. Os pequenos e médios intelectuais do sul assumiam um papel mediador fundamental entre camponeses e Estado, afastando-os da possibilidade de unidade com os operários do norte. Aquela camada intelectual estava sob influência dos grandes intelectuais do sul que protagonizavam os partidos locais controlados pelos interesses dos grandes proprietários (com os interesses dos quais se cruzavam e cuja classe tantas vezes integravam diretamente). Os intelectuais eram pois peças essenciais na manutenção do status quo que impedia a revolta dos camponeses que, por sua vez, não conseguiam produzir os seus próprios intelectuais orgânicos.

Destaca-se neste âmbito a importância de Croce, o “Papa laico” dos intelectuais italianos e figura de proa do bloco intelectual do sul servindo materialmente a sua influência para cooptar intelectuais fazendo-os participar da cultura hegemonizada pela burguesia.

Para romper tudo isto, é preciso unidade entre operários do norte e camponeses do sul, o que nos faria retornar ao tema da hegemonia.

2.6. Um último ponto sobre a ideia de partido revolucionário em Gramsci.

2.6.1. Do ponto de vista organizativo, o dirigente do Partido Comunista de Itália faz questão de distinguir entre centralismo burocrático e centralismo democrático. O primeiro é descrito como uma forma organizativa ligada à execução irrefletida de ordens de um/uns “iluminado”/s e surge ligado à conceção mecanicista da história.

O segundo implicaria uma adaptação contínua ao processo histórico e social, o mergulhar na classe, podendo-se traçar a este propósito o paralelo com a forma como se relaciona a Filosofia da Praxis com o núcleo são do senso comum. Gramsci vinca, aliás, que a relação da hegemonia é sempre pedagógica e utiliza em vários momentos a formulação de Marx de que “o próprio educador tem de ser educado”. A relação entre partido e classes subalternas nunca deverá ser externa nem unidirecional face às classes subalternas e implica portanto uma ligação “orgânica” entre “dirigentes e dirigidos”.

A distinção serve para polemizar com Bordiga ao qual é atribuída uma conceção “burocrática” e dirigista de centralismo na qual se separa núcleo dirigente das massas. Apesar disso, as lições que transmite poderiam facilmente alargar-se ao estalinismo então dominante. Soa assim premonitória a afirmação de que “a burocracia é a força costumada e conservadora mais perigosa; se acaba por constituir-se como um corpo solidário, que se afirma separadamente e se sente independente da massa, o partido acaba por se tornar anacrónico, e nos momentos de crise aguda esvazia-se do seu conteúdo social e mantém-se como se se sustentasse no ar.”

2.6.2. Gramsci reflete igualmente sobre o papel do partido revolucionário. Tomando como base uma leitura de que o “Príncipe” de Maquiavel seria uma forma de construir um “mito”, no sentido de Sorel, que despertasse paixão e mobilizasse o imaginário de mudança, o nosso autor apresenta o partido como uma forma de “Príncipe Moderno” porque considera que só o coletivo poderá despertar e condensar este poder da imaginação e avançar para a formação de uma “vontade coletiva”.

O partido tem ainda como tarefa empreender uma “reforma moral e intelectual”. Esta “não pode não estar ligada a um programa de reforma económica” que muda a posição das classes subalternas e deve ter sempre em conta a dialética educador/educado.

Ao mesmo tempo, afirma-se o partido como o campo onde a organização e a unificação política da classe já acontecem. Este “Príncipe Moderno” não pode ser visto como uma teoria acabado do partido político mas nele se pode encontrar um apelo a uma nova prática da política, a um presente de experimentação histórica de elaboração de uma nova conceção do mundo e a prefiguração de um futuro.

3. Esboçado este concentrado imperfeito de temas do Cadernos do Cárcere, continuo a não estar em condições de vos dar lições sobre o que aprender com Gramsci. Prefiro terminar avançando algumas das muitas coisas que aprendi com ele.

Aprendi que o trabalho da Filosofia para ser revolucionário não tem de desvalorizar o senso comum mas que é preciso sempre fintar o intelectualismo. Que esta deve ser humildade, laboriosidade, tensão permanente, em vez dos sistemas egóticos. Aprendi que há certezas absolutas que levam aos becos sem saída do atentismo e da passividade e que a vontade de revolução está muito para além do fatalismo. Que o otimismo da vontade não substitui o pessimismo da razão mas que se devem complementar. Que a disputa hegemónica é bem mais do que um braço de ferro sobre as questões da agenda definida pela burguesia. Que o partido é coletivo ou não o será. Que é uma experiência social ou petrificará as formas que pretende suplantar. Que será democrático profunda e permanentemente ou recairá nos perigos da burocracia. Aprendi muito mais. Mas talvez isto que vos trouxe aqui já não seja pouco.


TV Movimento

O Impasse Venezuelano

Debate realizado pela Revista Movimento sobre a situação política atual da Venezuela e os desafios enfrentados para a esquerda socialista, com o Luís Bonilla-Molina, militante da IV Internacional, e Pedro Eusse, dirigente do Partido Comunista da Venezuela

Emergência Climática e as lições do Rio Grande do Sul

Assista à nova aula do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento, com Michael Löwy, sociólogo e um dos formuladores do conceito de "ecossocialismo", e Roberto Robaina, vereador de Porto Alegre e fundador do PSOL.

Desenvolvimento Econômico e Preservação Ambiental: uma luta antineoliberal e anticapitalista

Assista à Aula 02 do curso do canal "Crítica Marxista", uma iniciativa de formação política da Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, do PSOL, em parceria com a Revista Movimento. Acompanhe nosso site para conferir a programação completa do curso: https://flcmf.org.br.
Editorial
Israel Dutra e Roberto Robaina | 17 set 2024

O Brasil está queimando

As queimadas e poluição do ar em todo país demonstram a insuficiência das medidas governamentais e exigem mobilização popular pela emergência climática
O Brasil está queimando
Edição Mensal
Capa da última edição da Revista Movimento
Revista Movimento nº 53
Nova edição da Revista Movimento debate Teoria Marxista: O diverso em unidade
Ler mais

Podcast Em Movimento

Colunistas

Ver todos

Parlamentares do Movimento Esquerda Socialista (PSOL)

Ver todos

Podcast Em Movimento

Capa da última edição da Revista Movimento
Nova edição da Revista Movimento debate Teoria Marxista: O diverso em unidade