Em São Paulo, dois caminhos para o SUS
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Em São Paulo, dois caminhos para o SUS

Para a trabalhadora da saúde e vereadora Luana Alves, a reeleição do atual prefeito aprofundará a privatização e o desmonte da rede pública na capital paulista. Já a vitória de Boulos pode iniciar um processo de “retomada da gestão pública e popular do SUS”

Guilherme Arruda 25 out 2024, 11:54

Foto: Luana Alves/Reprodução

Via Outras Palavras

Em agosto, uma pesquisa realizada pelo Datafolha revelou que a Saúde é a segunda maior preocupação dos cidadãos de São Paulo e uma das áreas consideradas prioritárias para a atuação do próximo prefeito da metrópole. Não por coincidência, os candidatos que passaram ao 2º turno da eleição municipal na capital paulista, o atual mandatário Ricardo Nunes (MDB) e Guilherme Boulos (PSOL), possuem visões bastante distintas sobre os rumos da saúde pública no município.

Psicóloga do SUS e reeleita para uma cadeira da Câmara Municipal de São Paulo no início deste mês, a vereadora Luana Alves avaliou em entrevista a Outra Saúde que, durante a gestão de Nunes, “a grande marca dos últimos quatro anos foi a aceleração do processo de privatização da gestão do SUS” no município. De fato, como este boletim cobriu diversas vezes, as Organizações Sociais da Saúde (OSS) ampliaram sua presença nos equipamentos de saúde da cidade nesse período – com resultados como a precarização das condições de trabalho, a degradação do controle social e uma total falta de fiscalização financeira da Secretaria Municipal de Saúde sobre os recursos transferidos às OSS, reconhecida pelo Ministério Público.

Do outro lado da disputa, opina a vereadora, seu colega de partido Guilherme Boulos tem “um projeto de mudança e retomada da gestão pública e popular do SUS” e conseguiu agregar em sua campanha figuras que “têm comprometimento com o projeto do SUS de 1988 e com a garantia do acesso”, como o sanitarista e fundador da Anvisa Gonzalo Vecina. Questionada pela reportagem a declaração de Boulos em uma sabatina com donos de hospitais privados rejeitando um rompimento mais enfático com as OSs, Luana destaca que diverge neste ponto e propõe um programa de transição que as retire da gestão, mas defende que o essencial em um primeiro momento é “recuperar a governança, acabando com essa relação em que o SUS está a serviço das OSs, e não o contrário”.

Na conversa com Outra Saúde sobre os desafios da saúde pública em São Paulo, Luana também trouxe detalhes sobre o desmonte da saúde mental e dos serviços de aborto legal no município ao longo dos últimos anos. Deu ênfase a um alerta: um segundo mandato de Nunes “deve seguir a tendência de deixar as OSs fazerem o que elas querem, colocando o SUS não na posição de um sistema para garantir acesso à saúde para a população, mas de um sistema que vai seguir sendo uma galinha dos ovos de ouro para meia dúzia”, além de ampliar a presença do bolsonarismo nos cargos de confiança da Saúde.

A despeito da relação histórica da esquerda com a formulação e construção do SUS, Luana Alves foi a única trabalhadora da saúde eleita pelo campo democrático para a Câmara de São Paulo. Nesse cenário, ela acredita na importância de “criar e fortalecer as formas de organização para os trabalhadores que são de OS”, já que “uma parte dos sindicatos não dialoga e não busca dialogar com esse trabalhador”, bastante vulnerável à demissão arbitrária. Além disso, em um contexto de desfinanciamento e questionamentos ao projeto do SUS, é preciso “acolher e dialogar com muita tranquilidade com as inseguranças da população” em relação à saúde pública, defende a psicóloga.

Leia, a seguir, a íntegra da entrevista de Outra Saúde com Luana Alves, psicóloga do SUS e vereadora em São Paulo. O texto foi levemente editado para garantir a clareza.


Luana, antes de tudo, eu gostaria de ouvir uma avaliação sua sobre o estado dos serviços municipais de saúde depois desses últimos anos da gestão do Ricardo Nunes. Que balanço você faria desse período para o SUS em São Paulo?

Esses últimos quatro anos foram de aceleração do processo de privatização da gestão do SUS, eu acho que essa é a grande marca. E o que acontece é que essa gestão cada vez mais privatizada vai resultar em uma completa falta de governança. É até difícil a gente fazer uma avaliação da Secretaria Municipal de Saúde porque, de fato, ela não tem mais governança sobre os equipamentos. Está uma situação muito difícil, é muito ruim. 

Mas para além de uma gestão ruim, é uma não-gestão, porque hoje você tem as gestões locais fragmentadas. Cada OS vai comandando conforme sua linha. A SPDM faz uma coisa, a Santa Marcelina faz outra, a CEJAM faz outra e tem pouco diálogo entre elas, até porque é uma disputa de mercado. É difícil que haja diálogo, porque não tem um objetivo comum. Do ponto de vista institucional, as OSs não são como o Estado, que deve ter interesse em uma política pública unificada de saúde. O interesse delas é conseguir mais contratos, ponto. Não é uma política global. Por isso, de saída, já é difícil que haja uma gestão minimamente conversada, pelos próprios interesses das OSs.

Por outro lado, a Prefeitura tenta demonstrar ações de governança que só se expressam como mais pressão sobre os trabalhadores, na forma da entrega de resultados numéricos que não tem a ver qualidade. Tem o exemplo da Portaria 333, que felizmente foi revogada graças à luta de muitos trabalhadores. Era uma portaria que colocava metas de atendimento irreais e totalmente quantitativas. Se exige que as equipes multiprofissionais dos CAPS e UBS atendam tantos grupos, os procedimentos sejam tantos, as consultas sejam tantas, mas não se procura ter nenhuma meta de qualidade que possa ser realmente acompanhada.

Outro problema é a falta de fiscalização financeira. Na prática, a Prefeitura não tem capacidade de fiscalizar tantos contratos firmados na área da Saúde. Isso é um assunto sobre o qual o próprio Ministério Público já se manifestou, não é uma coisa que a vereadora do PSOL está dizendo. Isso é algo que o Ministério Público mesmo comprovou. Teria que ser feito um concurso muito amplo e mudar os fluxos, porque a secretaria não tem nem pessoal o suficiente para fazer essa fiscalização hoje.

Além disso, nos últimos anos tem acontecido muita perseguição política aos trabalhadores. Eu sempre comento com as pessoas que eu estou constantemente recebendo demitidos políticos das OSs. São pessoas que questionaram minimamente a gestão, ou que querem trabalhar conforme os princípios do SUS e que acabam sendo retiradas. Teve demissão em que o trabalhador ouviu da OS que “não estava alinhado com os princípios da empresa”. Veja bem, que empresa? Não tem princípio de empresa coisa nenhuma, isso é o SUS!

Para finalizar, eu diria que nesses quatro anos de gestão também houve uma degradação do controle social. Com toda essa privatização da gestão, o controle social fica muito para trás. São esses os elementos que eu colocaria em um balanço geral.

Nesse sentido, então, a principal característica da gestão Nunes seria o avanço das OSs sobre a saúde municipal, certo? Porque me parece que essas demais questões – a sobrecarga e a perseguição dos trabalhadores, a falta de controle sobre os recursos, o enfraquecimento do controle social – são decorrentes do crescimento da presença delas.

Sim. Claro que isso não acontece de uma maneira uniforme. Existem nuances também. Existem OSs piores do que outras, isso é muito evidente para qualquer um que conhece o sistema. Existem gestões muito mais incompetentes e outras que tentam fazer um trabalho ali, mesmo no modelo de gestão privatizado. Existem algumas que são abertamente pilantras, eu vi coisas inimagináveis nos últimos meses. Com a eleição se aproximando, teve todo tipo de coisa que você pode imaginar, e nem todas eu posso falar em público.

Tudo isso tem a ver com a escolha da Prefeitura de fatiar a máquina pública em áreas de influência, inclusive na Saúde. Se você fragmenta a gestão, se você deixa tudo sob o controle local – que, principalmente nas quebradas, vai ficar à mercê de quem tem mais poder na área –, você, na prática, abre mão de fazer gestão e de governar. Abre mão de colocar em prática as políticas públicas de saúde que consigam, digamos, “dar a linha” para o atendimento em determinada região. Hoje não tem nada disso, tudo fica à mercê dos interesses locais e a perseguição política aos trabalhadores é visível.

Além disso, a população está bastante insatisfeita. A Prefeitura faz muita propaganda sobre o aumento de recursos para a saúde, e de fato houve esse aumento, mas ele veio na forma de muito mais grana para as OSs. Essa verba não se transforma em melhoria do atendimento, e o usuário do SUS sente isso e sabe disso. É uma situação muito grave. Tem muita demanda que não está sendo atendida, como as de saúde mental das crianças, por exemplo.

Nesse âmbito da saúde mental, em agosto, o Sindsaúde, o Sinpsi e a Frente Antimanicomial de SP fizeram uma manifestação na frente da Prefeitura denunciando um “desmonte da saúde mental em São Paulo”. Você concorda que há um desmonte? No que ele consiste?

Eu concordo. Primeiro, existe um desmonte no sentido de que você parou de abrir novas unidades, principalmente de CAPS. Há muito tempo, o ritmo de abertura dos CAPS tem sido muito lento, mais lento que das UBS, inclusive. Ou seja, não tem a ver com uma decisão geral de gestão: não é que parou de abrir equipamentos, parou de abrir CAPS especificamente. 

Tem a ver também com o fortalecimento de políticas de saúde mental que não são baseadas na Reforma Psiquiátrica e na luta antimanicomial. São muitas políticas baseadas na repressão, no moralismo, no proibicionismo – e inclusive na abstinência, no caso da política de álcool e drogas. Existem alguns CAPS que começaram a abrigar serviços praticamente clandestinos criados pela Prefeitura, que são os Serviços de Cuidados Prolongados (SCP). Se você vai no CAPS AD III que fica na Barra Funda, ele agora abriga um SCP, que funciona ali dentro com gestão própria, trabalhadores próprios – contratados via OS – e pautado numa proposta contrária à luta antimanicomial. Não tinha nem placa na frente e nem CNES [Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde]. Isso não passou por lugar nenhum, entende? Tem a ver com um desmonte bastante forte.

Penso também que o fato de não se contratar mais via concursos públicos é algo que compõe o desmonte na saúde mental. É o caso dos Centros de Convivência e Cooperativa (CECOs), que são serviços de administração direta do poder público criados como uma inovação da gestão da Luiza Erundina e ainda se mostram muito importantes. O que acontece é que os servidores estão se aposentando e os CECOs estão fechando. Tem vários CECOs que eu visitei durante o mandato que só funcionam porque os funcionários ainda não se aposentaram, mesmo já podendo, porque tem uma relação de muito afeto e muita responsabilidade com o serviço.

Existe um desmonte geral, é muito perceptível.

Você comentou também sobre as condições de trabalho, que estariam piorando na rede municipal de saúde nesse último período. Mais concretamente, como isso acontece?

As más condições de trabalho têm a ver com sobrecarga, principalmente. Está ocorrendo um aumento grande da demanda, tanto no sentido de mais pessoas usando o SUS quanto no sentido de mais queixas, ou seja, as pessoas usando mais o SUS. A gente tá vivendo uma situação de crise climática. Olha o que foi o último período em São Paulo, com a fumaça das queimadas e outros problemas. A demanda por atendimento nas UPAs e UBSs explodiu e não houve um aumento correspondente da oferta. Isso gera sobrecarga pro profissional, junto com aquelas metas quantitativas que eu comentei antes, que não permitem fazer um trabalho de qualidade.

Vou dar um exemplo. Você sabe que, na atenção básica aqui de São Paulo, existe a meta de 15 minutos por atendimento para o médico, inclusive para pré-natal. No começo do meu mandato, nós tentamos abrir um diálogo com a Prefeitura para que o atendimento da gestante em pré-natal fosse de pelo menos 30 minutos. A resposta foi não, porque você tem que atender o máximo de pessoas e isso ia gerar estresse.

Sem contar que existem OSs que tiveram problema com o pagamento dos seus trabalhadores. Não chega a ser o caso da maioria, mas foi uma questão com algumas das OSs menores. É uma situação que gera um ambiente de trabalho muito ruim, e muito violento também. Além disso, na medida que você vai desmontando o controle social e tirando a autonomia que os conselhos gestores costumavam ter, esse ambiente vai ficando inclusive hostil.

Nesse último período, os dados do DataSUS apontam que houve uma diminuição da participação da prefeitura na realização do aborto legal na cidade, depois que o Hospital Municipal da Vila Nova Cachoeirinha deixou de oferecer esse serviço. Como que se deu esse embate em torno dos direitos reprodutivos nos últimos quatro anos?

Principalmente de dois anos pra cá, essa gestão visivelmente teve uma guinada para o conservadorismo, que coloca em risco os direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e das pessoas que gestam. O serviço de aborto legal ter fechado no Cachoeirinha foi só a ponta do iceberg, porque já vinham acontecendo uma série de mudanças de gestão que estavam colocando em risco esse direito. Os hospitais municipais que fazem aborto legal começaram a pedir Boletim de Ocorrência, por exemplo, e isso começou a acontecer antes do fechamento do Cachoeirinha. O nosso mandato chegou a receber relatos disso acontecendo no Hospital Mário Degni, no Rio Pequeno. Isso não existe, está na lei que a palavra da mulher basta. 

Aí teve o fechamento do Cachoeirinha, que foi violentíssimo. Esse caso envolveu uma articulação podre entre a Secretaria Municipal de Saúde e o Conselho Regional de Medicina, que começou a perseguir trabalhadoras que estão há anos na Prefeitura. A gestão do Ricardo Nunes foi covarde de não só não defender suas funcionárias como inclusive apoiar a perseguição do CRM, passando dados de pacientes. O que acontece é muito grave. O Cachoeirinha era o único serviço que fazia o procedimento de assistolia fetal, quando a gravidez é de mais 20 semanas – algo que, na verdade, nem deveria acontecer, porque se nós tivéssemos uma rede mais completa de serviço de aborto legal, em que a mulher não fosse julgada assim que entra no serviço e não fosse mandada pra lá e pra cá, talvez essa gravidez nem chegasse a 20 semanas. Deixar uma mulher estuprada chegar a 20 semanas de gravidez é inadmissível.

De toda forma, nessas condições, só quem aceitava era o Cachoeirinha, e na prática se está condenando milhares de mulheres e meninas a serem mães de forma forçada. É muito cruel. A primeira menina que ficou desassistida depois do fechamento do Cachoeirinha tinha 12 anos.

Você chegou a comentar sobre uma “degradação” da participação social no SUS durante esse período. Como foi a relação da Prefeitura com os conselhos de saúde nos últimos anos?

A participação social está muito precarizada e a gente está vendo muita interferência do poder público. Recentemente, por exemplo, houve uma eleição no Hospital Sorocabana em que a Prefeitura claramente tentou interferir no resultado do processo eleitoral porque não queria aceitar a vitória de uma determinada chapa. Isso nunca tinha acontecido antes, é uma novidade da gestão Ricardo Nunes: interferência nos resultados eleitorais e ameaça para que as pessoas votem conforme o que mandam assessores de vereadores da direita.

O que eles fazem é uma nova forma da velha política. Aquilo que sempre aconteceu na disputa eleitoral a cada dois anos agora também está se repetindo nas disputas de conselhos de saúde, o que é um problema do ponto de vista democrático. Esses espaços deveriam ser livres para a população utilizar sem pressões e inclusive para ser uma força crítica, mas estão sendo cooptados para serem claque para a prefeitura e os vereadores da direita. Eles cooptam uma base social pelas vias mais podres possíveis, comprando as pessoas e ameaçando para que elas tenham lealdade a esses caras, obrigando a votar em quem eles querem.

Isso tem acontecido bastante e é uma ameaça a uma diretriz do SUS desde a sua origem, que é o controle social.

Há dois meses, uma pesquisa identificou que a saúde é a segunda maior prioridade dos moradores de São Paulo nessa eleição. Agora, no segundo turno, a disputa se afunila em dois projetos. Quais você avalia que são as diferenças entre os projetos do Ricardo Nunes e do Guilherme Boulos para o SUS em São Paulo?

Há uma diferença total. A primeira coisa é que o projeto do Ricardo Nunes não é nem a continuidade: é piorar uma gestão que já é ruim. Esse é o ponto mais importante. Se acontecer um eventual segundo mandato do Ricardo Nunes, ele vai ser muito pior do que o de agora, porque foram firmados novos acordos políticos. Eles vão envolver muito mais gente do bolsonarismo nas secretarias, e a gente sabe que a Saúde é sempre uma das pastas mais cobiçadas. Desde que o Bolsonaro perdeu a Presidência, já se começou a costurar o apoio do setor bolsonarista ao nome do Nunes, em especial do PL. A gente que é da área da saúde já ficou mais atento e eu como vereadora busquei acompanhar. Ficou visível como eles tiveram que alocar gente do bolsonarismo nos espaços. É o caso de uma gestora de hospital que foi candidata do PL, por exemplo. A tendência é que isso piore em um segundo mandato.

Ele também deve seguir a tendência de deixar as OSs fazerem o que elas querem, colocando o SUS não na posição de um sistema para garantir acesso à saúde para a população, mas de um sistema que vai seguir sendo uma galinha dos ovos de ouro para meia dúzia.

Já o projeto do Boulos é um projeto de mudança e de retomada da gestão pública e popular do SUS. O Boulos está junto com gente que de fato entende de saúde pública e que inclusive é de muitos espectros políticos diferentes. Um bom exemplo é o do Gonzalo Vecina, que não é um cara exatamente da esquerda, foi do governo FHC, mas tem comprometimento com o projeto do SUS de 1988 e com a garantia do acesso e da gestão pública. É muito importante não deixar o sistema público de saúde de São Paulo ser dilapidado e fatiado como está sendo hoje.

Uma vez eu falei uma coisa para o atual secretário de saúde [Luiz Carlos Zamarco] em uma audiência e ele ficou ofendido, mas foi com toda a sinceridade. Se ele sumisse por uma semana, ninguém ia reparar. Ele pode tirar férias por um mês que não vai mudar nada no sistema de saúde em São Paulo, porque não é mais o secretário municipal que está no comando, são as OSs. Recuperar a governança é o mínimo que se pode fazer.

Na verdade, para mim, tem que haver um programa de transição que retire as OS da saúde, mas existem diferenças dentro da esquerda em relação a isso. Eu acho que a gestão deve ser pública. De toda forma, num governo Guilherme Boulos, não vai ter essa relação de hoje em que o SUS está a serviço das OS. Vai ser o contrário, as OS é que vão estar a serviço do SUS. Eu acho que é importante a gente entender isso.

Em uma sabatina com o setor hospitalar privado no final de agosto, o Boulos chegou a mencionar que não iria romper impediatamente os contratos com as OS, mas fazer algo como um “pente fino”. Você acha, então, que as OS ficam mas a relação muda, é isso?

Pessoalmente, eu vou batalhar para que elas saiam. Não que o trabalhador da OS saia, é claro. Uma pauta que eu defendo é que haja um novo concurso público para o SUS em São Paulo – o último foi em 2017 –, mas que esse processo tenha uma pontuação diferenciada para quem já está na rede. Isso não seria nenhuma novidade, a Secretaria Municipal de Educação faz isso o tempo todo. Assim, quem já é contratado tem mais facilidade para entrar como efetivo.

Tem algumas coisas básicas que é preciso fazer numa transição em relação às OSs. É importante que haja um mínimo de isonomia salarial. Não dá para uma enfermeira na ASF [uma das OS que atua em São Paulo] ganhar 25% a mais que a da SPDM ganha. Isso gera uma espécie de “plano de carreira” bizarro, em que o trabalhador da OS vai ficando estafado, tentar mudar para outra que paga melhor e isso se torna o plano de carreira dele. A meta é terminar na que paga mais, passando por vários processos seletivos.  Na prática, isso gera rotatividade, falta de vínculo e fragmentação dos serviços e fluxos. No mínimo, quem faz o mesmo serviço tem que ganhar o mesmo salário.

Já em alguns serviços, como os hospitais municipais, eu acredito que tem que tirar, não tem que ter OS mesmo. Mas, claro, é muito importante não fazer o processo de trás para frente. Não dá para tirar de repente as OSs da atenção básica, que já funciona nesse modelo há 10 anos. Isso seria irresponsável, é não conhecer a rede. Se você tira as OS, o sistema desmonta no dia seguinte, porque não tem quadros na Secretaria Municipal de Saúde para gerir. Eles estão todos nas OSs.

Na minha opinião, tem que haver essa transição, mas independentemente disso, eu penso que só com Guilherme Boulos é que não vamos ter mais essa relação bizarra de entrega total da Saúde às OSs que existe hoje.

Para além desse embate eleitoral imediato, pensando na agenda de lutas do próximo período de forma mais ampla, que medidas você considera essenciais para fortalecer o SUS em São Paulo?

É muito importante retomar a nossa força para impulsionar o controle social e fortalecer os conselhos gestores. Fazer mais atividades, mais formações para os conselheiros e retomar isso fazendo de baixo pra cima. Também considero fundamental criar e fortalecer as formas de organização para os trabalhadores que são de OS. 

Hoje, a gente vê uma grande parte dos sindicatos mais antigos virando as costas pro trabalhador de OS, quase tratando como se fosse culpa dele. Fazendo pouco esforço para ser um sindicato que faça sentido na vida desse trabalhador, entende? Eu acho que esse esforço tem que ser feito. Tanto que a gente vê aí coletivos e fóruns aparecendo e defendendo os trabalhadores por fora da forma mais tradicional do sindicalismo, já que uma parte dos sindicatos não conversa com esse trabalhador, que se sente um pouco entre a cruz e a caldeirinha. Muitas vezes, ele não sabe quem procurar e, se ele abre a boca, a gestão demite. É preciso pensar formas seguras de organizar esses trabalhadores, preservando os empregos deles. Essa deve ser uma nova proposta que a gente tem que formular.

Dentro da esquerda, às vezes eu tenho fama de ser anti-OS, mas tenho muito orgulho de uma parte grande da minha base de votos ser de trabalhadores das OSs, porque o diálogo é constante. A minha companheira é trabalhadora de OS, os meus amigos próximos são todos trabalhadores de OS. Na minha geração de profissionais de saúde, pouquíssimos conseguem ter outro vínculo. 

Em um sentido mais geral, a gente tem que dialogar e ter paciência para conversar com as pessoas. Por exemplo: muitas vezes, o nosso modelo de atenção básica, que não leva o usuário do SUS diretamente ao especialista, é percebido como desmonte. Recentemente, eu estive em uma situação muito difícil mas bastante ilustrativa. No final do ano passado, um grupo de conselheiros de saúde da Zona Leste, todos bem antigos e de esquerda, chegaram pra mim falando que agora queriam que acabasse a Estratégia de Saúde da Família. Pedi que eles me explicassem. Eles falaram que eram contra o médico de família, contra o agente comunitário de saúde e queriam a volta dos especialistas, porque a população dos bairros periféricos não estava conseguindo ter acesso a eles. Eu acho que, com o desmonte do SUS, esse tipo de sentimento vai acontecer cada vez mais. 

Claro que a solução não é acabar com a Estratégia de Saúde da Família, mas ela precisa ser mais qualificada. Não dá pra jogar no bairro um monte de recém-formado sem orientação e sem recurso, que tem dificuldade de dialogar com o povo, muitas vezes é até racista, e dizer que eles vão ser a solução. Desse jeito, as pessoas vão querer de volta o especialista de mil anos atrás. É uma insegurança que a gente tem que acolher e dialogar com muita tranquilidade. A proposta do Poupatempo da Saúde que o Boulos apresentou, por exemplo, dialoga nesse sentido.


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